Funções de verdade

Cap. 2 de “Logic: A Very Short Introduction” (Graham Priest, 2000)

niva
Anotações de Filosofia
7 min readAug 19, 2020

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A definição de validade dedutiva — não existe situação em que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão não seja — dada no cap. anterior parte do conceito de situação. Uma situação consiste na atribuição de valor de um valor de verdade para cada sentença básica relevante.

Uma sentença básica é uma sentença da qual nenhuma parte é sentença; que não é composta de outras sentenças. Ela pode ser também chamada de sentença simples, ou sentença atômica. Alguns exemplos são “Mona é um gato” e “Dotty é um cachorro”.

Para formarmos uma sentença, precisamos associar um indivíduo a uma propriedade; um sujeito a um predicado. Indivíduos, ou sujeitos, ou objetos, são qualquer coisa sobre a qual você possa pensar ou à qual possa se referir por meio de um nome. Não é preciso que esse indivíduo seja uma pessoa, ou que seja um objeto físico. O sol é um indivíduo, por exemplo, assim como os números, os conceitos de beleza e de alma, a economia de mercado, etc. Pessoas mortas ou ficcionais também são indivíduos — Sherlock Holmes, Machado de Assis.

Um objeto (ou indivíduo, são sinônimos) pode ser simples ou composto. Um objeto simples não pode ser decomposto, dentro de um certo universo, em partes que também sejam objetos. Por “dentro de um certo universo” entende-se um conjunto de objetos. Se temos um conjunto de objetos que inclui automóveis, panelas e gatos, um automóvel é um objeto simples, já que não é formado por outros objetos desse universo. Mas em um conjunto que inclui automóveis, faróis, rodas e tudo mais, um automóvel seria um objeto composto.

Já as propriedades, ou predicados, são qualquer coisa que se diga sobre o indivíduo. Ser professor, ser gato, ser azul, estar sentado. Cada situação determina um conjunto de indivíduos, que são os sujeitos de quem se está falando; dentro desse conjunto, cada propriedade determina um subconjunto, formado pelos indivíduos que satisfazem essa propriedade. Dentre os gatos da minha casa, um é preto e dois são pardos; no conjunto de gatos da minha casa, há o subconjunto de gatos pretos (que inclui um gato) e o de gatos pardos (que inclui dois). O subconjunto de gatos cinzas, por outro lado, está vazio.

Voltando à atribuição do valor de verdade, tomemos como exemplo a sentença “O cobertor da tia é azul”. Esta sentença pode ser verdadeira ou falsa; ou o cobertor é azul, ou não é. Caso o cobertor seja azul, atribuímos a esta sentença o valor V — de verdadeira. Caso seja de qualquer outra cor, atribuímos um valor F — de falsa. Assim, atribuindo valor V às premissas “O cobertor da tia é azul” e “José só dorme com cobertores verdes”, vemos que a conclusão “Logo, José não dorme com o cobertor da tia” também é verdadeira, o que torna esse argumento válido.

Se há um conjunto finito de sentenças, há um conjunto finito de situações, correspondente ao número de possíveis valores de verdade (sempre 2, verdadeiro e falso) elevado ao número de sentenças. No exemplo acima, cada premissa foi composta de apenas uma sentença. Digamos que “O cobertor da tia é azul” seja a sentença a e “José só dorme com cobertores verdes” a sentença b — temos aí duas premissas e duas sentenças. Seguindo a fórmula, podemos extrair daí ²² possíveis situações: a:V b:V, a:V b:F, a:F b:V e a:F b:F.

Podemos demonstrar as possíveis situações mais claramente por meio de uma tabela da verdade:

Assim como os objetos podem ser compostos de vários objetos, também as sentenças podem ser composta de várias sentenças. “Mona é um gato e Dotty é um cachorro”, por exemplo, é uma sentença formada a partir de duas outras sentenças. Assim são as sentenças complexas, ou sentenças moleculares. Mas para formar as sentenças complexas precisamos de uma conexão entre as sentenças básicas. É como erguer um muro. Não basta empilhar os tijolos; precisamos usar argamassa. No caso das sentenças complexas, a “argamassa” entre sentenças toma a forma de certas palavras especiais, que compõem um ferramental lógico. Esse ferramental inclui a negação, a disjunção e a conjunção.

Partindo do pressuposto de que cada sentença pode ser ou falsa ou verdadeira, mas nunca falsa e verdadeira, se “o cobertor é azul” é verdadeiro, “o cobertor não é azul” é falso; e vice-versa. A isto chamamos de negação. Na negação, o valor de verdade de uma sentença é o contrário de outra. Se uma sentença é verdadeira, a negação é falsa; se a sentença é falsa, a negação é verdadeira. Podemos negar, por exemplo, a sentença “Mona é um gato”, como quem diz “Não é verdade que Mona é um gato”. Isto é representado pelo símbolo ; se a é verdadeira, ㄱa é falsa, e se a é falsa, a é verdadeira.

Já a disjunção consiste no conectivo “ou”, representado pelo símbolo . Uma disjunção pode ser excludente ou inclusiva. A disjunção excludente só é verdadeira se exatamente uma de suas sentenças for verdadeira; ou uma, ou outra. Por exemplo, na disjunção “Ou está de noite, ou está de dia”, não se pode estar tanto de noite quanto de dia. É preciso que uma sentença seja verdadeira, e a outra, falsa.

Por sua vez, a disjunção inclusiva equivale ao e/ou; isto é, ela ainda é válida mesmo que ambas sentenças sejam verdadeiras. É o caso de “Para não passar fome, ou eu cozinho um almoço, ou eu como um salgado na esquina”. Ao contrário do exemplo da noite/dia, aqui não é contraditório imaginar que uma pessoa coma em casa e então lanche um salgado na rua — e isso não faria com que ela passe fome (muito pelo contrário). Assim, para não passar fome, “eu cozinho um almoço e/ou como um salgado na esquina”. Esta é a disjunção inclusiva. Ao contrário da disjunção excludente, o único cenário em que uma disjunção inclusiva pode ser falsa é quando ambas sentenças forem falsas.

Neste texto, o ou, representado por ∨, corresponde sempre a uma disjunção inclusiva.

Por fim, a conjunção consiste no conectivo e, representado pelo símbolo & ou . Uma conjunção associa os valores de verdade de a e b tal que a & b só é verdadeira se tanto a quanto b também forem. Isto é, uma conjunção só é verdadeira se todas as sentenças conjuntas também forem. Por exemplo: “José é loiro e tem 13 anos” só é verdadeira se “José é loiro” for verdadeira e “José tem 13 anos” também. Caso uma ou ambas sentenças básicas forem falsas, a conjunção também é falsa.

Considerando estes instrumentos lógicos e o uso das tabelas da verdade, podemos agora atualizar a definição de validade dedutiva para: um argumento é válido se não existe linha da tabela do argumento em que as premissas são verdadeiras e a conclusão é falsa.

Como exemplo, vejamos se o argumento que tem como premissas p, q e r e conclusão p&(ㄱr ∨ q) é válido:

A linha grifada em verde é a única em que as premissas (p, q, r) são verdadeiras. Se nessa linha a conclusão (p&(ㄱr ∨ q)) fosse falsa, o argumento seria inválido. [Diz-se que um argumento é inválido por causa da primeira linha, por exemplo, e não na primeira linha, já que a linha faz com que todo o argumento seja inválido.] Mas como a conclusão é verdadeira, segue-se que o argumento p, q, r / p&(ㄱr ∨ q) é válido.

Para verificar mais rápido a validade do argumento, basta considerar a conclusão como falsa e averiguar se isto é possível a partir de premissas verdadeiras.

Este ferramental que contempla negação, disjunção e conjunção não é adequado a todos os problemas lógicos. Ele não consegue distinguir, por exemplo, um vínculo causal. Tomemos as situações “João caiu e bateu a cabeça” e “João bateu a cabeça e caiu”. Em ambos os casos, tanto João caiu como João bateu a cabeça são sentenças verdadeiras, mas há um vínculo causal implícito. Implica-se, na primeira sentença, que João bateu a cabeça porque caiu, e na segunda, que caiu porque bateu a cabeça. A isto chamamos implicatura conversacional. No entanto, como o ferramental em questão não enxerga vínculo causal, ele não seria capaz de diferenciar as duas situações.

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