O dialeteísmo enquanto solução a paradoxos abstratos e empíricos

Dissertação

niva
Anotações de Filosofia
7 min readAug 19, 2020

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Em sua autobiografia (p.64), Bertrand Russell apresenta o filósofo George Edward Moore com uma anedota:

“In my third year I met G.E. Moore, who was then a freshman, and for some years he fulfilled my ideal of genius. (…) He had a kind of exquisite purity. I have never but once succeeded in making him tell a lie, and that was a subterfuge. ‘Moore’, I said, ‘do you always speak the truth?’ ‘No’ he replied. I believe this to be the only lie he ever told.”

A anedota em questão pode ser interpretada como uma brincadeira com o paradoxo do mentiroso. Descoberto pelo filósofo grego Eubulides, o mentiroso consiste em afirmar que esta sentença que você está lendo é falsa. Se a sentença é verdadeira, então deve ser falsa; e se é falsa, deve ser verdadeira. A este tipo de paradoxo, em que um elemento faz referência a si mesmo, damos o nome de paradoxo de autorreferência.

Dentre os paradoxos de autorreferência, temos os semânticos — como o do mentiroso — , os epistêmicos e os ligados à teoria de conjuntos, que encontram seu exemplo mais famoso no próprio Russell. Alguns conjuntos são membros de si mesmos. Outros, não. E o conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmos — é também um membro de si mesmo? Se não é, é. Se é, não é.

Tanto o paradoxo de Eubulides quanto o de Russell levam à contradição; isto é, a duas sentenças que negam uma à outra (PRIEST, BERTO & WEBER, 2018). De fato, um paradoxo consiste justamente em um raciocínio sólido, baseado em premissas verdadeiras, cuja conclusão seja contraditória (BOLANDER, 2017).

Segundo W. V. Quine, um paradoxo pode ser resolvido de duas maneiras. Ou encontramos um defeito no argumento, podendo este ser tanto uma falácia em seu raciocínio quanto uma falsidade em suas premissas — e aí temos um paradoxo falsídico — , ou verificamos que a conclusão era verdadeira de fato — encontrando um paradoxo verídico. Um exemplo, usado pelo autor em seu artigo The ways of paradox (1976, p.1), é o do enigma de Frederic. Na ópera Os Piratas de Penzance, Frederic chega aos 21 anos em apenas cinco aniversários. Esse cenário, aparentemente absurdo, se mostra verdadeiro quando descobrimos que o aniversário de Frederic ocorre em 29 de fevereiro. Assim, desfaz-se a impressão inicial de contradição e o paradoxo se resolve. Por outro lado, caso Frederic houvesse nascido em qualquer outra data, o argumento se mostraria defeituoso, seja por falácia ou inverdade. Como não é de se estranhar que um argumento defeituoso resulte em contradição, aí também se desata o paradoxo.

No entanto, alguns enigmas resistem à resolução. Além dos paradoxos verídicos e falsídicos, Quine aborda uma terceira categoria, denominada antinomia, que abrange paradoxos inarredáveis; aqueles que apontam a necessidade de uma revisão drástica em nossa maneira de abordar problemas. Esta é a classificação aplicada pelo autor ao paradoxo de Russell (QUINE, p.12), já que este paradoxo nos força a abrir mão de noções matemáticas fundamentais. Apenas com o evoluir do pensamento, quando as novas noções matemáticas tomam ares de senso comum, diz Quine, é que o paradoxo de Russell poderá ser visto como verídico.

Partindo do raciocínio do autor de que um paradoxo suficientemente desafiador pode exigir que algum princípio, até então considerado fundamental, torne-se obsoleto, entendemos a oposição à Lei da Não Contradição (ou LNC) como caminho necessário à solução de diversos paradoxos. Esta oposição chama-se dialeteísmo.

The [dialetheic] solution to the paradoxes is to claim that what the paradoxes show is just what they seem to show — that certain contradictions must be accepted. Certain propositions really are paradoxical. They really are both true and false. (READ, p .158)

Dentro da lógica clássica — uma teoria de validade dedutiva, amplamente aceita, inventada ao fim do século dezenove pelo lógico alemão Gottlob Frege — , a validade de uma inferência depende da relação entre a verdade da conclusão e a verdade das premissas. Se, em toda situação em que as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o for, tem-se aí uma inferência válida.

Tal lógica aceita como ortodoxa a Lei da Não Contradição, introduzida por Aristóteles no Livro I da Metafísica como “o mais seguro de todos os princípios” (1005b24, citado por PRIEST, BERTO & WEBER, 2018). Segundo a LNC, nenhuma sentença contraditória pode ser verdadeira.

A este princípio junta-se um outro, denominado princípio de explosão, ou ex contradictione quodlibet: “de uma contradição, tudo se segue”. Segundo este princípio, se as premissas afirmadas se contradizem — isto é, se as premissas incluem, digamos, p e não p — , então qualquer outra proposição pode ser afirmada também. Ao partir de premissas contraditórias, um argumento explode e passa a afirmar tudo. Por exemplo: se afirmamos que o Rio de Janeiro está no Brasil e que não está no Brasil, então a sentença “O Rio de Janeiro não está no Brasil ou Moscou é a capital americana” está correta, já que sabemos que a primeira parte é verdadeira. No entanto, sabemos também que o Rio de Janeiro não está no Brasil, e que então a primeira parte é falsa; ou seja, a segunda deve ser verdadeira, e Moscou é a capital americana.

Este raciocínio é rejeitado pelo dialeteísmo (SAINSBURY, p. 151) — visão heterodoxa que subscreve a paraconsistência, uma propriedade das lógicas que não aceitam o princípio de explosão. Em uma lógica paraconsistente, ao contrário da lógica clássica, uma contradição não implica todo argumento ser verdadeiro. Qualquer lógica que não seja explosiva é paraconsistente (PRIEST, TANAKA & WEBER, 2018).

Isso não significa que toda lógica paraconsistente seja dialeteísta. Além de rejeitar o princípio de explosão, o dialeteísmo rejeita também a Lei da Não Contradição — isto é, a ideia de que uma sentença não possa ser, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa. Para o dialeteísta, algumas contradições são verdadeiras.

A dialetheic solution is one that accepts the contradiction. (PRIEST, 2017)

Dentre as contradições verdadeiras, também chamadas dialeteias, sustentadas pelo dialeteísmo, encontramos a solução de diversos paradoxos de autorreferência. O paradoxo do mentiroso, por exemplo, consistiria em uma contradição verdadeira, assim como o de Russell; o conjunto de Russell é e não é um membro de si mesmo.

Além destas dialeteias ligadas a noções abstratas, como a teoria de conjuntos e conceitos semânticos, temos também contradições verdadeiras que afetam objetos concretos e a dimensão empírica (PRIEST, BERTO & WEBER, 2018). Um exemplo célebre é a questão do movimento nos paradoxos de Zenão. Num dado instante, uma flecha não pode se mover para onde está, pois já está ali; e também não pode se mover para outro lugar, visto que não há tempo para se deslocar — do contrário, não seria um instante. Assim, uma flecha em movimento está, ao mesmo tempo, onde está e onde não está.

Uma solução ortodoxa, formulada por Russell em 1903, diz que:

Motion consists in the fact that, by the occupation of a place at a time, a correlation is established between places and times; when different times, throughout any period, however short, are correlated with different places, there is motion (…). (citado por PRIEST, 2006, p.176)

Isto é, um objeto em movimento é o que ocupa diferentes locais em diferentes momentos. Porém, como aponta Graham Priest (2006, p.174), isto não resolve a questão, já que se em nenhum instante do intervalo temporal a flecha se moveu, nenhum progresso pode ser feito ao todo, somando os instantes. Do contrário, estaríamos dizendo que uma soma de vários nadas daria algo além de nada.

Uma outra solução é aventada por Hegel ao afirmar que o movimento é a existência imediata da contradição. “[M]ovement means to be in this place and not to be in it, and thus to be in both alike; this is the continuity of space and time which first make motion possible” (1840, citado por PRIEST, 2006, p.176). Segundo autores como Priest, esta solução consiste em uma contradição verdadeira.

CONCLUSÃO

A fim de expor a via dialeteísta enquanto solução paraconsistente a diversos paradoxos, como os de autorreferência e de movimento local, este trabalho se dividiu em três partes. Em primeiro lugar, apresentamos a categorização de Quine, que divide os paradoxos em verídicos, falsídicos e antinomias. A seguir, partindo do raciocínio de que a solução de uma antinomia pode exigir a revisão de princípios fundamentais, passamos à exposição da lógica clássica e dos princípios de explosão e de não contradição, e então à definição negativa da lógica paraconsistente — toda lógica que não atende à LNC. Por fim, a terceira e última seção apontou a contradição verdadeira como possível solução a certos paradoxos de autorreferência e ao paradoxo da flecha de Zenão, como entendido por Hegel.

REFERÊNCIAS

BOLANDER, Thomas. “Self-Reference”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/self-reference/>.

PRIEST, G. In Contradiction. Oxford: Oxford University Press, 2006.

PRIEST, G. Graham Priest — 6. Paradoxes [arquivo em vídeo]. Acessado em <https://www.youtube.com/watch?v=BlOyKhvFK40>.

PRIEST, Graham, BERTO, Francesco e WEBER, Zach. “Dialetheism”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/dialetheism/>.

PRIEST, Graham, TANAKA, Koji e WEBER, Zach. “Paraconsistent Logic”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/sum2018/entries/logic-paraconsistent/>.

QUINE, W. V. The Ways of Paradox and Other Essays, Revised and Enlarged Edition. Cambridge: Harvard University Press, 1976.

READ, S. Thinking About Logic. Oxford: Oxford University Press, 1995.

RUSSELL, B. The Autobiography of Bertrand Russell (Volume I, 1872–1914). Londres: George Allen and Unwin, 1971.

SAINSBURY, R. M. Paradoxes. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2009.

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