O que é o pecado?

Parágrafos 4 a 19 do Livre Arbítrio

niva
Anotações de Filosofia
5 min readOct 31, 2020

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RESUMO

Como definir o pecado? O pecado não está no ato cometido ou na intenção de cometer o ato, mas no desejo de cometê-lo. Aí diferencia-se a lei humana e a divina; a lei humana pune o fato, e a divina, o desejo. Além disso, a lei humana permite a autodefesa, enquanto a divina condena o sacrifício de bens espirituais por bens contingentes; e a lei humana é temporal e mutável, enquanto a divina é eterna e imutável. Da mesma forma que a lei humana se submete à divina, também o instinto humano deve se submeter à razão, capacidade exclusivamente humana de determinar uma escala de valores e distinguir escolhas morais.

Posto que Deus é a causa de todas as coisas, e que os homens, criados por Deus, são a causa do mal, como evitar que Deus seja a causa do mal por intermédio dos homens? Basta que os homens não sejam completamente determinados por uma causa anterior. É preciso romper a cadeia de causas determinantes e inserir, no ponto de ruptura, a liberdade humana.

Então a existência de ações más será justificada pela vontade; mas, antes disso, é preciso definir o que é uma ação má.

O QUE É UMA AÇÃO MÁ? [4–9]

A ação má, ou pecado, não pode ser definida apelando-se à lei [6]. Primeiro porque cairíamos em um raciocínio circular — é pecado porque diz a lei, e a lei o diz porque é pecado. Segundo, porque a lei humana não é critério para a identificação do mal [7], já que pune com frequência aqueles que professam a fé (os mártires e apóstolos). Nem sempre é o que se condena é pecado [7].

Tampouco se pode apelar à regra de ouro [6] — não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a ti — , presente negativamente em quase todas as religiões e positivamente em Mateus 7, 12. Supondo o crime do adultério consentido, por exemplo (uma espécie de troca de esposas), ainda tem-se aí um pecado mesmo que todas as partes consintam.

Agostinho então busca situar a investigação do pecado na análise do desejo [9]. Ocorre aqui uma interiorização da culpa [8] — Agostinho não distingue moralmente o desejo, a intenção de realizá-lo e o fato. Mesmo quem não comeu a esposa alheia e sequer tem a intenção de comer a esposa alheia ainda é culpado, se tem o desejo de fazê-lo. Esta é uma tendência do pensamento cristão da época, ligada à prática do exame de consciência. A causa de todos os pecados é a libido [8].

QUAL É A DIFERENÇA ENTRE A LEI HUMANA E A DIVINA? [10–15]

Põe-se aí a primeira diferença entre a lei humana e a divina — a lei humana pune fatos, e a divina pune desejos [8].

Uma segunda diferença é a de que a lei humana permite a autodefesa [11–13], já que seu fim é a ordem social, não a virtude. A lei divina, por sua vez, considera mesmo a autodefesa um pecado. Isso parte de uma distinção entre bens espirituais, sendo estes a inocência (não ser nocivo), a castidade, etc, isto é, a virtude, e os bens contingentes, como os materiais, a saúde e mesmo a vida mortal. A distinção opera sob o critério de que o bem espiritual é aquele que não podemos perder se não quisermos. Assim, mesmo uma pessoa assassinada não perde a alma, enquanto a que se defende perde a inocência, renunciando a um bem espiritual por um bem contingente (a vida). O desejo culpável, a libido, é o amor por aquilo que se pode perder sem querer [10].

A terceira diferença é a de que a lei humana é temporal, enquanto a lei divina é eterna [14–15]. Isso porque a lei humana de um momento histórico pode ser completamente oposta à de outro momento, ou outro local, sem que nenhuma das duas seja injusta. É temporal a lei justa que pode ser mudada com justiça conforme os tempos [14].

Já a lei eterna é imutável, e deduz-se dela a justiça da lei temporal. A lei temporal só é justa e legítima se deduzida da eterna [15]. Esta é a lei chamada princípio supremo, à qual sempre se deve obedecer; ela dita que os maus merecem a desgraça e os bons a felicidade [15]. Agostinho exemplifica usando os regimes de governo: sendo a lei eterna a de que um povo justo deve governar a si mesmo, e um povo iníquo deve ser governado, a lei humana pode variar entre esses dois pontos ainda respeitando a lei imutável. A melhor ordem seria a que submete as leis temporais à lei eterna.

O QUE DIFERENCIA O HOMEM DOS ANIMAIS? [16–19]

Agostinho então se propõe a verificar se o mesmo esquema — de submissão ordenadora das leis temporais à lei eterna — se aplica ao microcosmo da alma. Isso é feito por meio da distinção entre viver e saber que se vive, que perpassa a questão de se animais inferiores dispõem de razão.

O argumento de que animais são capazes de raciocínio é defendido por alguns filósofos da antiguidade, notadamente o estoico Crisipo, ao citar um cão de caça que, deparando-se com uma tríplice encruzilhada e farejando dois caminhos sem encontrar pistas, se lança no terceiro caminho sem precisar farejar, escolhendo por exclusão — raciocínio lógico refinado.

Frente a esse argumento e aos de Sexto Empírico, Plutarco e Porfírio, o de Agostinho se mostra frágil. Ele visa provar que os animais não são dotados de raciocínio pois podem ser domesticados. Seria fácil dizer que o homem é simplesmente dotado de razão em maior grau! Mas a questão importante aqui é a de colocar como capacidade exclusivamente humana a de estabelecer uma moralidade, subjugando o instinto à razão [16]. A razão domina as atitudes humanas irracionais e as funções meramente animais. Uma vida autoconsciente — isto é, que sabe que está viva, pois possui razão — é a única capaz de estabelecer uma escala de valores, e a única capaz de escolhas morais. O homem ordenado é sábio, e o homem desordenado é insensato. É insensato é aquele que, possuindo a mente, não é dominado por esta. São sábios aqueles que submetem toda libido ao reino da mente e estão em paz [19].

Claro que ser capaz de atos morais não significa necessariamente agir de forma moral. Os maus sabem o que é o mal e continuam agindo mal [19]. É preciso individuar uma faculdade que, mesmo sendo inerente à mente racional, não seja a razão. Assim vamos chegando à vontade.

Baseado no texto de Agostinho e na aula do prof. Mammi.

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