Saber-vaga-lume

Dissertação

niva
Anotações de Filosofia
9 min readSep 3, 2021

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Como se pode declarar a morte das sobrevivências?” Assim coloca Georges Didi-Huberman sua objeção à imagem dos vaga-lumes, articulada por Pier Paolo Pasolini a fim de ilustrar o “desaparecimento do humano no coração da sociedade atual”. Segundo Pasolini, ainda que a violência do fascismo de outrora fosse vivida como uma longa noite escura, seguia possível vislumbrar na escuridão a “dança fugaz e frágil” dos vaga-lumes — lampejos de pensamento e resistência que iluminavam momentaneamente as trevas da década de 30. Mas este fascismo não foi derrotado; apenas se converteu em outro, o “verdadeiro fascismo”, que dispõe não de carrascos mas de um “genocídio cultural” operado pela “assimilação (completa) ao modo e à qualidade de vida da burguesia”. Mais do que a escuridão, os inimigos do vaga-lume são os “ferozes projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão”, em cuja claridade não se pode discernir o que há de humano. O novo fascismo, mais poderoso e eficaz, deforma a consciência e o espírito até a sua “irreversível degradação”, no que um comentador denominou um “recrutamento total até às profundezas da alma”. “Não há mais povo”, diz Pasolini. O “espírito popular desapareceu”.

Esta é a linguagem do “apocalipse latente”, em que “nada mais parece estar em conflito” — a guerra acabou, suspenderam-se a censura e as execuções em massa — , “mas onde a destruição não deixa de fazer estragos nos corpos e nos espíritos de cada um. A latência desse apocalipse pode ser entendida como algo próximo da concepção de violência implosiva em Jean Baudrillard, violência essa própria à pós-modernidade (ou à sociedade da hiperrealidade, na linguagem do autor). Ao contrário da violência explosiva, revolucionária, que finda na revolução abortada de 68, a violência implosiva se caracteriza pelo excesso de signos, que saturam o sistema, e da saturação resulta uma retração: a “involução lenta” do social rumo à equalização, à homeostasia, à “morte da arte”.

É contra esse diagnóstico apocalíptico que Didi-Huberman se coloca. Há motivos para o pessimismo, sem dúvida; mas sumiram mesmo os vaga-lumes? Extinguiram-se, desapareceram completamente? Ou persistem, apesar da potente luz dos projetores, apesar de tudo?

Em sua obra Sobrevivência dos Vaga-lumes, Didi-Huberman distingue duas possíveis reações ao apocalipse contemporâneo. A reação preferível, defendida por ele, seria a da “esperança”. Afinal, “a destruição”, diz o autor, “nunca é absoluta — mesmo que ela fosse contínua”. Há de se enxergar a noite ainda atravessada por lampejos, sem nos contentarmos em descrever a luz que os ofusca. Mas a reação predominante é a oposta, a do “desespero”, do “agir como vencidos”. O desespero corre em declarar o triunfo da máquina totalitária, em se enlutar em nome de tudo aquilo que foi perdido — e nesse luto se imobiliza. Para os desesperados, toda resistência é inútil, pois se antes a cultura nos protegia da barbárie, agora é nela que a barbárie se prolifera. Só o que poderia remediar a degradação irreversível do espírito, o recrutamento total da alma, a desaparição do povo, é uma ressurreição da imagem, no sentido próprio de algo que renasce após a morte.

Essa caracterização hubermaniana do “tom apocalíptico” do desespero não é exclusiva ao seu tratamento de Pasolini, estendendo-se também à concepção de “destruição de experiência” em Giorgio Agamben. Apoiado no diagnóstico de Walter Benjamin de uma pobreza da experiência, Agamben, em sua Infância e História, afirma que “todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado fazer”. A experiência está no passado, e o homem contemporâneo seria incapaz de fazê-la ou de transmiti-la. Por isso Agamben critica Baudelaire e, junto a ele, todo o projeto poético moderno, que não responde a essa expropriação procurando um “novo objeto da experiência”, mas sim transformando o inexperienciável em seu novo objeto, sua condição normal. Conterrâneo e contemporâneo de Pasolini, Agamben dividiria também com o cineasta, segundo Didi-Huberman, uma capacidade ambígua, de ao mesmo tempo “reconhecer no mínimo vaga-lume uma resistência” e desesperar-se ao perdê-lo de vista.

O mesmo enquadramento apocalíptico é exposto pelo autor em A Imagem Sobrevivente, obra que aponta um esquema temporal “biomórfico”, característico da história natural, nos trabalhos de Giorgio Vasari e Johann Joachim Winckelmann. Segundo Didi-Huberman, ambos (e muitos outros) historiadores concebem a história da arte na parábola de ascensão e decadência, pertinente a tudo aquilo que vive e morre. Este é um trabalho de luto, de “evocação sem esperança da coisa perdida”, que busca compreender seu objeto pensando-o como objeto morto — como a História da arte antiga de Winckelmann, que se dá como reflexão posterior à “destruição da arte”, nas palavras do próprio — até que este objeto ressurja, sendo a arte “milagrosamente redimida ou resgatada por um longo movimento de renascitá.

Também nesse tom apocalíptico, no qual Didi-Huberman enquadra Pasolini e Agamben, poderíamos enquadrar, em certa medida, Jean Baudrillard (ainda que o autor o empregue como “estratégia discursiva”, conforme indica Ricardo Fabbrini). “O objeto de arte não existe mais”, diz Baudrillard, pois o ready-made o banalizou a ponto de tudo, até mesmo a vida cotidiana, tornar-se arte, e com isso ambas deixaram de existir; “não há, propriamente falando, nem arte, nem vida cotidiana”. O que nos resta é a sua “reconstrução radical”: “Do nada, à reaparição da arte”. Morte e ressurreição. Da mesma forma, as fases sucessivas da imagem em Baudrillard seriam a de reflexo da realidade profunda, seguida da deformação desta realidade, disfarce da ausência de realidade e, finalmente, total falta de relação com qualquer realidade, completando-se aí a transformação da imagem em “simulacro puro”. Sem representação, sem relação sujeito-objeto, a imagem cai em simulação. Caberia ao redentor da imagem restituí-la, então, à representatividade, puxando-a renascida das cinzas, pois ao contrário da representação, que presume equivalentes, ainda que de forma utópica, o signo e o real, a simulação nega radicalmente o signo como valor, figurando-o como “aniquilamento de toda referência”.

Talvez a comparação mais apta operada por Didi-Huberman não seja ao esquema da história natural, mas ao da teologia. Em sua análise do cinema de Jean-Luc Godard, o autor o enquadra no modelo arqueológico, oposto ao modelo teológico de pensamento. A teologia trabalha na chave da ressurreição: o cinema está morto, e há de ser ressuscitado por meio de novos princípios de existência; os prisioneiros dos campos de concentração estão mortos, e hão de ser ressuscitados pelo cinema. Essa imagem que os ressuscita seria, seguindo a linguagem teológica, salvadora, redentora, milagrosacapaz de enfrentar o apocalipse.

Em oposição ao modelo teológico está o modelo arqueológico, ao qual corresponde o cinema de Godard, que opera não na chave da ressurreição mas da sobrevivência. O crematório V do campo de extermínio de Birkenau desapareceu, porém seus restos permanecem no solo, não como redenção mas como testemunho; e as fotos de Birkenau tiradas por oficiais do Sonderkommando “evidentemente no nos permiten resuscitar a nadie ni a nada, pero nos otorgan sin embargo un acceso — visual, material, lacunar — a esa historia de la que, de algún modo, essas imágenes son las únicas ‘sobrevivientes’”.

Da mesma forma, sobrevive o corpus de sonhos reunidos por Charlotte Beradt na Alemanha, entre 1933 e 1939. Segundo Didi-Huberman, “o conjunto dos textos não explica nada, nem a natureza do nazismo, nem a psicologia dos sonhadores”, mas podemos vislumbrar ali uma espécie de “documento psíquico do totalitarismo”; um lampejo, um “saber-vaga-lume”, que ilumina o mundo sem a intenção de vê-lo melhor. Ao contrário das imagens apocalípticas e teológicas, estas imagens enquanto sobrevivências não se pretendem portadoras de uma revelação última, de um saber final e essencial à nossa liberdade, e tampouco se apresentam como salvadoras — “não têm nenhum valor de redenção”.

Uma “política das sobrevivências’, da esperança, dispensa necessariamente o fim dos tempos, que é em si uma sobrevivência que se pretende única. Para que haja o apocalipse, para que este se sustente e sobreviva, seria preciso a morte de toda outra sobrevivência, de toda outra verdade. Como disse Jacques Derrida, “toda escatologia apocalíptica é prometida em nome da luz (…) não haveria verdade do apocalipse que não fosse verdade da verdade”, verdade última. Mas a imagem sobrevive. Mesmo intermitentes, frágeis, vestigiais, “pouca coisa, coisa que queima, coisa que cai”, nas palavras de Benjamin, as imagens ressurgem, não como horizonte de luz total, proferindo uma verdade absoluta sobre seu objeto morto, mas como resto; um lampejo do que foi e resiste. Daí a reflexão de Benjamin — onde mais se aguça seu contraste em relação a Agamben — a respeito do papel das imagens na contestação do pessimismo: “organizar o pessimismo significa (…) no espaço da conduta política (…) descobrir um espaço de imagens”. Espaço esse, em Didi-Huberman, “intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável — das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo”.

Assim é a imagem sobrevivente. Para Didi-Huberman, quando Agamben enxerga na destruição da experiência uma destruição efetuada, e para tanto se apoia em Benjamin, ele falha em perceber que Benjamin vê a destruição como “perpetuamente inacabada, seu horizonte jamais fechado”. Há um declínio, sim, mas o que cai não desaparece, pois ali estão as imagens, transparecendo algum resto, algum vestígio do que caiu. O declínio em Benjamin supõe a persistência das coisas decaídas. Mesmo a experiência, cujo valor está em queda, encontra nessa queda algo que ainda é experiência — “fissura, não saber, prova do desconhecido, ausência de projeto, errância nas trevas”. Não se pode dizer que a experiência foi destruída. Pelo contrário, “a experiência é indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos na noite”. Os vaga-lumes sobrevivem a tudo; sobrevivem, inclusive, à invenção de seu desaparecimento, que é na verdade sintoma de um desaparecimento em nós da capacidade de vê-los.

A imagem em questão, imagem indestrutível, que sobrevive, não seria uma imagem qualquer, e sim uma imagem dotada de movimento dialético. Enquanto Agamben critica Baudelaire por participar do fim da experiência, Didi-Huberman o elogia justamente por inventar uma forma poética que, enquanto imagem dialética, de novidade radical, transforma e inquieta o que a circunda, e dessa forma participa (aí sim) de uma “sublime violência do verdadeiro”.

“Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas”, diz Benjamin, e a isto Didi-Huberman acrescenta, em seu O que vemos, o que nos olha: a imagem autêntica é a imagem crítica. Isto é: imagem em sua dimensão de crise, “como o turbilhão que agita o curso do rio”, e de análise, “como o turbilhão que revela e acusa a estrutura, o leito mesmo do rio”. É a imagem que critica a imagem, e critica nossa maneira de ver a imagem, “na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente”.

Se antes traçamos uma distinção entre o pensamento de Didi-Huberman e Baudrillard, aqui os dois convergem, na medida em que Baudrillard busca na imagem uma qualidade pensativa — de algo que nos pensa, nos devolve o olhar. “Há uma ‘pensatividade’ do objeto, como a de alguém que nos olha sem nos ver,” diz o autor. “Pensar, com efeito, não é refletir, é a arte de fazer transparecer, e de fazer desaparecer.” Assim, a poltrona vincada é pensativa, e mesmo a carcaça pensa, por transparecer a forma do ser que não está mais presente; isto é, “portar o traço de uma forma desvanecida”. Nisso nos aproximamos também ao punctum de Barthes, o “isso foi”, da obra nos olhando como se tivesse rosto (uma rostidade da imagem). (…)

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005

BAUDRILLARD, J. “A fotografia como mídia do desaparecimento”. Disponível em http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/iv13_midiadesapa.pdf

______ A arte da desaparição. Tradução de Anamaria Skiner. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997

______ Simulacro e simulação. Tradução de Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´água, 1991

DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013

______ O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998

______ Pasados citados por Jean–Luc Godard: El ojo de la historia, 5. Tradução de Mariel Manrique e Hernán Martutet. Santander: Shangrila Textos Aparte, 2017

______ Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011

FABBRINI, R. “Imagem e enigma”. In: Viso: Cadernos de estética aplicada, v. X, n. 19 (jul-dez/2016)

FAUSTINO, M. Poesia completa/Poesia traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985

RILKE, R. M. Neue Gedichte und Der neuen Gedichte anderer Teil. Frankfurt: Insel-Taschenbuchverlag, 2000

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