Seria Deus o autor do mal?

Parágrafos 1 a 3 do Livre Arbítrio e questão 21 das 83 Q. Diversas

niva
Anotações de Filosofia
9 min readSep 9, 2020

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RESUMO

Qual é a origem do mal? Distingue-se o mal entre mal cometido e mal sofrido. Deus não é a causa do mal que fazemos; este é o pecado, de responsabilidade individual. Cada um é causa do mal que faz. Deus é, sim, a causa do mal que sofremos por pecar, mas este não é um mal e sim um ato de justiça (ou parte de um desenho providencial).

Sobre a obra O LIVRE ARBÍTRIO

O livre arbítrio é um divisor de águas na obra de Agostinho, por dois motivos. Primeiro, por ser o último de seus diálogos filosóficos. Nos primeiros anos após sua conversão (386–90), Agostinho se propôs a cobrir todos os pontos fundamentais do debate filosófico a partir de um ponto de vista cristão; faz sentido, então, que ele usasse o diálogo, principal instrumento de divulgação filosófica à época, e se apoiasse meramente na lógica e na construção retórica tradicional. Obras subsequentes usam o método da exegese, tanto dos textos religiosos quanto do cotidiano e da vida interior, e abandonam a discussão dialética em favor da forma de sermão ou panfleto doutrinário. Talvez a mudança tenha se dado por suas subsequentes ordenações, tornando-se sacerdote e bispo e deixando de se enxergar como filósofo e professor, como ocorreu nos seus primeiros anos pós-conversão. No entanto, o domínio das categorias filosóficas e dos recursos literários tradicionais (não religiosos) não só não se perdeu como é ainda mais refinado nas obras tardias; o que se transforma é a abordagem cultural e intelectual.

Além disso, a obra também ocupa um lugar central na evolução do pensamento de Agostinho por abordar, pela primeira vez, a questão da vontade e liberdade humana. Nessa questão, o pensamento de Agostinho se transforma. O Livre Arbítrio defende a autonomia da vontade; o indivíduo é livre para o pecado ou a salvação, e há responsabilidade humana sobre o pecado, que é imputável e punível. Já nos escritos sobre a Graça, Agostinho desenvolve uma teoria da predestinação que retira da ação humana toda autonomia, passando a depender da concessão da graça por parte de Deus.

Embora seja amplamente difundida a visão de que haja uma ruptura entre essas duas fases, pode-se argumentar que alguns dos elementos fundamentais dos desenvolvimentos posteriores já se encontram no Livre Arbítrio, sendo não uma ruptura mas evolução do pensamento agostiniano.

SOBRE A ORIGEM DO MAL (1)

A questão inicial do diálogo trata da origem do mal. Se Deus não for a origem do mal, o mal tem outra origem; e então Deus não seria a origem de todas as coisas.

Agostinho começa sua resposta distinguindo o mal que fazemos e o que sofremos:

EVÓDIO: Diga-me, por favor, se Deus não é o autor do mal.

AGOSTINHO: Vou fazê-lo, se me esclareceres de que mal falas. Pois mal se diz em dois sentidos: um, quando dizemos que alguém cometeu um mal; outro, quando dizemos que sofreu um mal.

O mal que fazemos é o pecado. Já o mal que sofremos não é pecado; é uma desgraça que nos aconteça contra a nossa vontade. Agostinho então afirma que, do primeiro mal, Deus não pode ser responsável. Já o segundo pode ser visto como ato divino caso ocorra como punição justa.

E.: Quero saber de ambos.

A.: Mas, se sabes ou crês que Deus é bom — e não é lícito pensar de outra forma — ele não comete o mal. Por outro lado, se reconhecemos que Deus é justo — e isso também seria sacrílego negar — , assim como dispensa prêmios aos bons, igualmente dispensa punições aos maus. Portanto, se ninguém sofre penas injustamente, como é necessário que acreditemos, se acreditamos que a divina providência rege esse universo, Deus de maneira alguma é autor do primeiro gênero de males, enquanto é autor do segundo.

A punição divina é justa porque as ações más são feitas voluntariamente (voluntate), sendo cada indivíduo mau autor de sua má ação.

E.: Há então outro autor daquele mal, já que apuramos que Deus não o é?

A.: Certamente; pois não pode acontecer sem um autor. Mas se perguntares quem é, não poderia dizê-lo; pois não é um, mas cada indivíduo mau é autor de sua má ação. Se duvidas disso, preste atenção ao que foi dito acima, que Deus pune justamente as ações más. Com efeito, não as puniria justamente, se não tivessem sido feitas voluntariamente (voluntate).

Em uma nota de rodapé da questão 21 das 83 Questões Diversas, Agostinho esclarece que a punição dos maus é, sim, um mal infligido aos punidos, mas deve ser considerada uma das boas obras de Deus, já que é justa, e tudo que é justo é bom.

Outra tese defendida por Agostinho em textos da mesma época dita que os males divinos que sofremos só nos parecem males por não enxergarmos o desenho providencial por inteiro. Um ponto de vista limitado pode entender como feio ou errado um detalhe que, quando apreciado dentro de um contexto, é belo; como a dissonância em uma melodia, ou a desordem das peças de um mosaico.

Imaginemos que alguém enxergue tão pouco que num pavimento em mosaico seu olhar consiga enxergar apenas uma pastilha por vez: ele culparia o artista de ser incapaz de ordem e composição, julgando caótica a variedade das pedras, porque não pode contemplar aquelas figuras em seu aspecto coerente de unitária beleza. Nada diferente acontece a homens menos instruídos, cujas mentes fracas não são capazes de abarcar e considerar a adequação recíproca e a coerência de todas as coisas e, se algo os ofende por ser maior de sua capacidade de compreensão, julgam haver uma grande perversão nas coisas. (De Ordine, I, 2)

Quanto ao pecado, retoma-se a questão inicial, de como afirmar simultaneamente que Deus não é a causa do mal e que não há uma causa do mal exterior a Deus. A solução (já presente em Plotino) é negar ao mal qualquer existência substancial.

21. IS NOT GOD THE AUTHOR OF EVIL?!

Whoever is the author of all things which are and whose goodness is responsible for the existence of all that exists cannot have anything at all to do with nonbeing. Now everything which lacks anything lacks in relation to being and tends toward nonbeing. However, to be and to lack in nothing is good, whereas evil is a lacking. But he on whom nonbeing has no claim is not the cause of [this ] lacking (causa deficiendi) , i.e., of the tending toward nonbeing, because he is, if I may say so, the cause of being (causa essendi). Therefore he is the cause only of good, and for that reason he is the highest good. Consequently he who is the author of all things which are is not the author of evil, because to the degree that things are, to that degree are they good. (83 Different Questions, q21)

Deus é o autor de todas as coisas que são, e a sua bondade é responsável pela existência de tudo que existe. Ele é a causa de ser (causa essendi), e em nada falha; por isso Ele é bom, e causa apenas o que é bom. Já a tendência ao não ser (causa deficiendi), isto é, à deficiência, é o mal. O mal é uma falha, uma falta. Assim, o autor de todas as coisas que são não é o autor do mal, já que o mal é uma tendência ao não ser; as coisas são boas na mesma medida em que elas são.

Assim, o mal é um conceito privativo. Um termo que não indica uma substância, algo que é, mas sim a ausência de substância; como as trevas não são algo em si, mas sim a ausência de luz, e o silêncio é a ausência de som. Como Deus é o ser absoluto, não pode resultar dele um não ser, uma privação de ser. Logo, o mal não deriva de Deus, mas de um afastamento dele.

[inserir Confissões VII, 18]

Mesmo que se considere que o mal existe enquanto ato de afastamento do bem, a causa desse ato não é única. Não há um princípio do mal, oposto e simétrico ao princípio do bem, como querem os maniqueístas. Cada um é responsável pelo mal que realiza. De fato, segundo Agostinho, sem responsabilidade individual ninguém poderia ser culpado, e aí não haveria punição justa nem justiça. Esse argumento de cunho jurídico é abordado novamente ao longo do diálogo.

SOBRE O APRENDIZADO DO MAL (2, 3)

Os parágrafos 2 e 3 indagam se fazemos o mal por tê-lo aprendido. De quem aprendemos a pecar? Segundo Agostinho, o aprendizado é bom; desperta e proporciona a ciência. Pelo aprendizado não se aprendem senão os bens. Os males não se aprendem. Aprende-se apenas a evitá-los. Isso porque a compreensão (intelligentia) é um bem, e todo aprendizado depende da compreensão, então quem aprende compreende e age bem. Não há um mestre do mal, pois se é mau, não é mestre, e se é mestre, não é mau.

Os estoicos, por sua vez, defendem que o mal é aprendido. Diz Sêneca:

Nossos pais geraram em nós a admiração para o ouro e a prata, e a avidez [cupiditas] instilada em terna idade enraizou-se e cresceu junto conosco (ep. 115, 11).

Da mesma forma, Orígenes, no Contra Celsum (III,69) dita:

Sabemos que as almas racionais todas têm a mesma natureza; sustentamos que nenhuma foi feita má pelo Criador do universo, mas que muitos homens se tornaram maus por causa da educação, da perversão, do seu ambiente humano, que fazem da malícia uma disposição natural em certas pessoas.

No entanto, essa posição parece contradizer a tese estoica de que a ação má é sempre consequência de um erro de julgamento, já que a ação má é a ação contrária à razão. Como os estoicos costumam tomar o aprendizado no sentido de aquisição de conteúdos certos e universais, isto é, de ciência, seria contraditório afirmar que o mal se aprende, já que estaríamos aprendendo um conteúdo certo e errado. Seria necessário entender que as afirmações tomam a má educação não como um aprendizado conduzido pelas vias racionais, mas apenas como um mau exemplo.

Já Platão, nas Leis (V, 731 C 2) afirma:

Nenhum homem mau faz o mal voluntariamente.

A fim de preservar a imputabilidade das ações humanas, Plotino comenta essa frase em seu tratado 47 sobre A Providência I (En. III, 2, 10), dizendo:

Sim, os homens são maus involuntariamente, porque o erro é involuntário; mas isso não impede que eles sejam seres que agem por si mesmos: consequentemente, como agem por si mesmos, por isso também erram, e não errariam se não fossem eles a agir. O princípio da fatalidade não é exterior a eles, senão num sentido geral. O movimento do céu não é tal que nada dependa de nós, porque, se tudo viesse de fora, tudo seria como quiseram aqueles que o fizeram; e os homens, ainda que ímpios, não poderiam se opor a o que os deuses fizeram; ora, essa oposição vem justamente dos homens.

Por certo, ninguém erra querendo errar, mas o erro é fruto de uma deliberação, e essa deliberação é de responsabilidade de cada um. O erro não deriva de um fatalismo exterior, como o movimento dos astros, nem de uma causa que exclua a deliberação humana. Entende-se que o homem é um princípio que determina a ação — embora não o único.

O movimento do céu não é tal que nada dependa de nós, porque, se tudo viesse de fora, tudo seria como quiseram aqueles que o fizeram; e os homens, ainda que ímpios, não poderiam se opor a o que os deuses fizeram; ora, essa oposição vem justamente dos homens. Finalmente, dado o princípio segue a consequência se, porém, ao explicar a consequência se levam em conta todos os princípios; ora, os homens também são princípios. Pois eles se movem rumo as coisas honestas por natureza, e esse é um princípio independente.(En. III, 2, 10)

Ao dizer que o homem é um princípio que determina a ação, diz-se que é uma causa primeira; causa indeterminada por qualquer outra. Essa causa, segundo Plotino, é um movimento rumo a coisas “honestas por natureza”; uma inclinação natural para o bem. Falta a Plotino um conceito intermediário entre deliberação racional (proaresis) e inclinação natural (orexis, hormé). Daí a afirmação de Hannah Arendt, em A Vida do Espírito, de que Agostinho teria sido o “primeiro filósofo da vontade” — foi ele o primeiro a identificar uma faculdade de querer, distinta tanto do julgamento racional quanto do mero instinto.

Baseado no texto de Agostinho e na aula do prof. Mammi.

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