A história de Linda Susan Boreman — De atriz pornô a militante feminista

Yatahaze
Anti Pornografia
Published in
7 min readAug 11, 2017

As feministas podem nunca ter ouvido falar de Linda Susan Boreman, mas ela é um nome importante na história do feminismo. A história dela não seria muito diferente de muitas histórias que ocorrem no Brasil, se Linda Susan Boreman não fosse Linda Lovelace, a atriz ícone do cinema pornô dos anos 70, protagonista de Garganta Profunda (1972) e a principal figura responsável pelo ponta-pé inicial da luta feminista contra a pornografia.

Em 1969, com 20 anos, Linda tinha acabado de dar a luz a um menino e foi convencida pela avó da criança, mãe de Linda, a permitir que ela cuidasse dele. Logo após, Linda descobriu que nunca mais voltaria a vê-lo, pois a verdadeira intenção da avó era mandá-lo para a adoção.

Depois de sofrer um grave acidente de carro, e ainda na convalescênça, conhece Charles Traynor, com quem se casou.

Linda Lovelace e Garganta Profunda

Financiado pela família Colombo, o filme Garganta Profunda teve o custo de 22.000 dólares e, estima-se que, lucrou entre 600 milhões a um bilhão de dólares. Através da grana, os mafiosos fundaram uma produtora de cinema responsável por clássicos B como “O massacre da serra elétrica” e “Drácula e Frankenstein” de Andy Warhol. Entretanto, Linda Lovelace diz não ter ganhado um só centavo deste montante, o único valor de 1.250, foi pago ao seu marido Charles Traynor, pela produção.

Complexo de Cinderela

Linda Susan Boreman sofreu de um evidente “Complexo de Cinderela”, como comprovam as palavras do autor de seu obituário, Joe Bob Briggs: “ela era leve, tinha um desejo desesperado de ser amada e aceitava o que fazia como que parecesse mais uma menina confusa do interior do que com a líder da revolução pornográfica.” Após o grave acidente de carro, que lhe deixou cheia de cicatrizes, o cafetão Charles Traynor representava “a força masculina” protetora. Ele a espancava (ele admitiu o fato dizendo que existia na relação de ambos toques “sado-maso”) e, segundo Linda, ela o agradava para não apanhar ainda mais. Se não fosse o bastante, ela teve um câncer de mama devido aos implantes de silicone líquido feitos a “pedido” de Traynor.

A traidora (da indústria) americana:

Da Prostituição a atriz pornô e militante feminista

Durante a vida nas ruas, Linda Susan Boreman desenvolveu uma “técnica de sexo oral” de alto relaxamento muscular que serviu de inspiração ao filme, além de ter que fazer cenas de zoofilia em filmes anteriores. Após o sucesso de Deep Throat, Linda jamais fez outro filme pornô, circulou por Hollywood, se divorciou de Charles Traynor, converteu-se ao presbiterianismo e começou a militar no movimento feminista.

Foi muito graças a Linda Lovelace que Andrea Dworkin e Gloria Steinem, Catharine MacKinnon e Brownmiller Susan, bem como a organização de Mulheres Contra a Pornografia, tiveram base para construírem o conceito de que a pornografia é um fenômeno machista que degrada mulheres, pois em plena comissão do Congresso Norte-americano, que investigava a indústria pornográfica dos EUA, Linda declarou “Quando vêem o filme Garganta Profunda, estão me vendo ser estuprada. É um crime que o filme continue sendo mostrado; (eu) tinha uma pistola apontando a minha cabeça o tempo todo”.

Ela escreveu livros e se colocou decepcionada com as pessoas que publicaram sua vida, ganhando dinheiro, sem nunca ter lhe dado um só centavo pelo uso de sua imagem. Ela chegou a comparar esta situação a dos produtores de Deep Throat. Em abril de 1980, por exemplo, ela entrou no Phil Donahue Show para promover o livro “Ordeal”. Descobriu um público hostil, que respondeu de forma ríspida aos seus relatos de violência doméstica.

Ela podia denunciar a pornografia, mas nunca introduzir o dedo na ferida das relações familiares americanas.

Desiludida, em 2000, ela posou para uma revista de fetiche e começou a autografar produtos do “Garganta Profunda”. Este retorno ao mundo pornô causou raiva na classe dos profissionais da pornografia.

A ex-atriz Gloria Leonard considerava Linda uma “traidora”. Na estimativa de Leonard, Linda tinha cometido um pecado imperdoável: estigmatizou todas as pessoas que trabalhavam na indústria pornô, pois para Gloria os trabalhadores estavam lá por “opção”.

A Hustler Magazine, em março 2001 referiu-se à sua sessão de fotos como “mercenária das façanhas sexuais”. A revista mirou na sua aparência: “as fotos de Linda Lovelace, com seus pés de galinha e flacidez, são tão sexy como uma verruga anal”.

Em 2002, ela morre em um novo acidente de carro. Mas, na real, fica a pergunta do por que Linda Susan Boreman voltou a ser Linda Lovelace?

Morte e vida de Linda Susan Boreman

A situação de Linda Susan Boreman pode ser respondida de diferentes formas. Primeiro, é fato que quando boa parte da sociedade ainda vivia intensamente o desejo da Libertação Sexual, participar de filmes pornográficos tinha outro significado, Linda Susan Boreman conseguiu transvalorizar e desfrutou das glórias deste fato, sendo capa de revistas importantes e reconhecida como celebridade no mundo todo. É difícil não cair na ilusão da ribalta.

Porém, 3 décadas passadas, o prisma social do EUA alternou e o modo como as pessoas passaram a lidar com tais questões da sexualidade foram banalizadas pelo liberalismo estadunidense.

O avanço das mídias eletrônicas e da tecnologia possibilitou a criação de “celebridades sexuais instantâneas”. Práticas com o swing, o exibicionismo, o voyeurismo e o bondage possuem espaço tanto na mídia formal, quanto na internet, ou seja, dentro da sociedade americana.

Desde que vividos na privacidade dos lares ou em espaços “clandestinos”, os comportamentos sexuais antes “pervertidos” passaram a ser definidos como “normais”. Lógico que tal aceitação é uma hipocrisia, a questão é que, “como produto”, todos são necessários ao capitalismo, aumentam a solidão sexual. “Sexo vende” e no capitalismo, principalmente nos EUA, é isso que importa.

Tanto que existe no mercado brasileiro uma onda muito atraente para celebridades e astros falidos dentro da indústria sexual(vide o fenômeno Rita Cadilac, Alexandre Frota e similares, que no Brasil freqüentam as emissoras de tv sem muitos problemas).

Como poderia Linda Boreman, pessoalmente, não como feminista, mas como mais uma pessoa lançada no capitalismo como todas nós, não levar em conta o fato de novamente se envolver com a pornografia se este era o modo que mais lhe ofereciam como forma de sobrevivência? Coletivamente é certo afirmar que ela era levada a “remar junto a maré”. Segundo, a pornografia como fenômeno de massa é produto da construção de gênero de uma sociedade que delimita posições bem definidas para a sexualidade feminina.

Quando iniciou sua batalha olímpica contra a pornografia, Linda Susan Boreman tinha todo um aparato de feministas e artistas de renome ao seu lado. Mas assim que começou a ocorrer o refluxo do feminismo radical e a implementação da “perspectiva liberal pós-feminista”, Linda Susan Boreman não tinha onde e em quem se apoiar, pois a banalização do corpo feminino, como objeto de poder e fetiche, é uma afirmação dentro de uma sociedade que capitaliza os padrões de beleza e sexualidade humana.

Como celebridade falida, ícone pornô e forte figura antipornô, tudo ao mesmo tempo, ela era a própria representação da dicotomia sexual feminina numa sociedade patriarcal, um produto sexual do liberalismo americano e uma figura emblemática do feminismo (algo que os machistas e as antifeministas sempre estão a procurar buracos para deslegitimar). Linda Susan Boreman, enquanto Linda Lovelace, era uma “marca sexual”. E como não vivemos um período que a grande mídia abre espaço para posicionamentos “antisexo”, a não ser que você tenha uma imagem de virgenzinha e a indústria dos anéis de castidade ao seu lado, algo que ela nunca teve, fica difícil pensar em muitas saídas para alguém nas suas condições.

O capitalismo lança as pessoas sem grandes propriedades privadas numa vala que só as permite vender no esgoto sua mão de obra. Linda, sem nenhuma capacitação formal, tinha no mercado apenas sua imagem pública (corpo) e simbólica para vender.

Com todo conjunto de descriminações geracionais, sexuais e ideológicas que devia sofrer, ela viu no novo convite da indústria da pornografia uma forma de ter renda. E de expressar sua consonância histórica com “liberalismo da mulheres pós-feministas”.

Porém, dentro da indústria pornô, e em quase toda parte do patriarcado, não a espaço para as mulheres terem arrependimentos ou crises de identidade feminista: os mandamentos do machismo determinam que ou a mulher é “puta” ou é “santa”. Não nos é permitido transitar por pelos dois terrenos de mundo público e privado, como fazem os homens. Ao escolher se posicionar ao lado do feminismo radical, Linda expôs ao chão o mito da libertação sexual que recaia sobre a indústria da pornografia, dando lhe um status de respeitabilidade, criando inimigos mortais que viram nela a figura responsável por nunca mais ter lucros tão altos quanto os da película Garganta Profunda.

Assim como qualquer “Marilyn Monroe”, o ciclo social se fechou na vida de Linda Susan Boreman reproduzindo todo o complexo de representações trágicas que significa ser uma mulher e um “símbolo sexual” no patriarcado do capital. Tanto que Hollywood pretende novamente lançar seu drama no filme “Inferno” (nome de dupla moralidade, capaz de agradar tanto os fanáticos religiosos quanto “antipornografistas” desavisados). Não nos parece a toa que Linda Susan Boreman morreu da mesma maneira em que ela acabou por conhecer o homem que a colocou na pornografia, um acidente de carro, quem sabe este foi um modo racional dela eliminar com a mecânica coisificação imposta a seu/nosso corpo?

Texto: Ana Clara Marques e Patrick Monteiro

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