O pallet de leite

André Lobão
Anticapitalista e antifascista
4 min readMay 24, 2021
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Texto atualizado em 3/03/24

No inicio de 2001, fui trabalhar em um supermercado como repositor de laticínios subcontratado, ou seja terceirizado.

Dentre minhas tarefas indicadas estava a de repor mercadorias na loja.

No meu primeiro sábado de trabalho recebi a incumbência de pegar um pallet de caixas de leite, pois geralmente no final de semana os promotores dos fornecedores não trabalham nas lojas, e cabe aos repositores da loja substituírem esses profissionais em suas funções.

Meu supervisor, que não era um cara nada simpático, me determinou que fosse ao depósito, pegasse um carro de pallets e trouxesse um pallet de caixas de leite.

Eu nunca, até aquele momento, tinha ideia de como seria esse carrinho e da quantidade que teria que retirar do deposito, e de como levar essa carga para a loja.

A primeira coisa que eu tinha que aprender naquele momento seria de como arrumar um carrinho, aprender a manobrá-lo para conduzir de uma só vez quase 100 caixas de leite UHT, de 10 litros em cada caixa. Isso mesmo, eu tinha que conduzir em um carrinho hidráulico, sem qualquer treinamento, um pallet de quase mil litros de leite para o centro da loja.

Um colega logo percebendo minha falta de habilidade em tentar engatar o pallet no carrinho me deu dicas, e me explicou como, basicamente, eu poderia fazer a manobra.

Para quem não sabe como funciona essa operação, o carrinho possui duas garras que ao entrar por debaixo do pallett deve erguê-lo sobre o chão, a uma altura aproximada de 10 cm, para que o operador o empurre para a direção que quiser. O meu problema é que entre o depósito e a loja tinha uma rampa com uma curva acentuada. E foi aí, neste caminho, que aconteceu o problema que me fez praticamente nascer de novo.

Ao descer a rampa, no momento exato da curva, perdi a direção do carro descendo em declive, comigo na frente, na barra de direção, sem conseguir frenar, fui direto na parede, sendo quase esmagado. Um tremendo susto!

O colega que havia me ajudado a colocar o pallet de leite no carrinho veio logo me socorrer.

“Cara você está bem? Deu sorte que a carga tombou no chão e somente a barra de direção te imprensou na parede. Se a carga vai junto, você seria esmagado” — me tirando da parede.

Ao saber do acidente meu supervisor me perguntou se eu não sabia conduzir uma carga de pallet, ao que respondi que nunca havia feito aquilo, e que não tinha experiência nenhuma em trabalhar como repositor de supermercado.

Logo tive que recolocar a carga no pallet, com a ajuda do colega que esqueci o nome. Ele me ajudou a colocar o material na loja.

O mesmo supervisor no dia seguinte me determinou, como castigo, trabalhar na avaria. No caso, uma câmara frigorifica onde eram conduzidos produtos de prateleira da loja que apresentassem prazos vencidos, avaria de embalagem ou que estivessem encalhados.

Ali aprendi que mercadorias nessas condições vão sumariamente para o lixo. Certa vez, cheguei a jogar fora 450 kg de linguiça com prazo fora da validade.

Parte desses produtos, os com prazos por vencer, eram sim reutilizados pela cozinha local que fornecia o almoço aos trabalhadores e trabalhadoras.

Esses mesmos trabalhadores passavam por revistas íntimas ao final do seu expediente.

Aprendi também que queijos e frios quando vendidos em bandejas de isopor estão com o prazo de vencimento próximos. Daí os repositores fatiam o material para embalá-los para venda.

A coisa boa desse período de trabalho que durou três meses intermináveis, ganhando um salário-mínimo, sem direito a horas extras, trabalhando sábados, domingos e feriados, era que apurei meu paladar saboreando muitos produtos dentro de uma câmara frigorífica.

Ah, estava esquecendo de contar que existe um batismo para os calouros como eu que ficam trancados nessas câmaras. A tranca das portas ficam por fora, e não por dentro.

Certa vez, eu fiquei trancado por 30 minutos por conta da brincadeira de mal gosto em uma temperatura de 10 graus negativos, usando um casaco compartilhado já em péssimo estado. Nunca senti tanto frio em minha vida, sendo salvo por um colega que abriu a câmara para retirar uma mercadoria.

O supermercado que trabalhei era o Extra, e naquele sistema compreendi como a família Diniz, então dona da rede fez fortuna. É uma exploração desumana mesmo.

Ao final do meu contrato nunca consegui usar o meu banco de horas em folgas. Minhas folgas semanais eram somente usufruídas nas segundas-feiras.

Outro dia soube que o ricaço do Abílio Diniz morreu. E fiquei pensando como ele me explorou e a outros colegas de trabalho. Que descanse no inferno.

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André Lobão
Anticapitalista e antifascista

Apenas um jornalista antineoliberal, anticapitalista e brasileiro, acima de tudo.