“Superimperialismo”: como as grandes empresas geram a crise de refugiados

João Abel
antifronteiras
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7 min readOct 22, 2016

“Os refugiados não podem ser considerados como uma consequência natural ligada a fatores de raça ou religião. Eles são refugiados por decorrência de uma política monetária arquitetada pelos centros do capital. E, por isso, não há uma solução nem no médio prazo, nem no longo prazo. Enquanto essa lógica prevalecer, a crise tende a aumentar. Não vai diminuir”. (José Arbex Jr.)

A afirmação do professor, jornalista e especialista em guerras no Oriente Médio é um anúncio de como as grandes corporações causaram a crise de refugiados vivida pelo mundo atualmente. Na última semana, Arbex esteve ao lado de Ladislau Dawbor (FEAPUC) e Reginaldo Nasser (Relações Internacionais) para um debate realizado na PUC-SP sobre as causas e consequências do conflito. E a constatação foi unânime: o superimperialismo, provocado pelos interesses econômicos de grupos financeiros é o principal responsável por esses fluxos migratórios.

Os principais pontos na crise dos refugiados:

1. Refúgio ambiental

O primeiro problema apontado pelos especialistas é a área ambiental. “Todo mundo acompanha o aquecimento global. Durante muito tempo, empresas de ramos como o petróleo ficaram repetindo que era controverso, mas hoje não há mais dúvida. Estamos contaminando a água, quimificando a agricultura. Segundo dados da WWF, 52% da vida dos vertebrados no planeta foram perdidos nos últimos 40 anos”, afirmou Ladislau Dawbor.

O professor ainda lembra que a Bayer acabou de comprar a Monsanto e isso significa que três grandes corporações basicamente vão controlar todo o sistema da agricultura. “Estamos destruindo o planeta para uma minoria”, ele completa.

O problema ambiental, de proporções catastróficas, como é o caso do Haiti (atingido em um curto intervalo de tempo por um terremoto, em 2011, e um furacão, neste ano) é agravado pelas presunções do direito internacional. Segundo Reginaldo Nasser, alguém que foge, por exemplo, do seu estado ou país por fome não é considerado refugiado. É, na verdade, visto como um alguém que fez uma escolha em relação a questões que estava vivendo. “Assim também acontece com os refugiados ambientais, como haitianos que vem para o Brasil”, ele explica.

► Leia mais: Como o furacão no Haiti reacende o debate sobre refúgio ambiental (Nexo Jornal)

2. Recursos mal alocados

As pessoas esquecem que somos 7.2 bilhões de habitantes. São 80 milhões a mais a cada ano. E todo mundo querendo consumir mais. Eu gosto da frase de uma americano que diz que “pensar que a gente possa expandir o consumo indefinidamente em um planeta de tamanho limitado só pode ser pensado por um idiota ou por um economista”. Estamos produzindo o quê? Para quem? Com que impactos ambientais? (Ladislau Dawbor)

A questão básica da economia está colocada no uso racional dos recursos em função das reais necessidades da sociedade. E este é o segundo grande ponto que leva à explosão do refúgio. O mercado não orienta mais os recursos para onde eles são realmente necessários, segundo Dawbor.

De acordo com o Banco Mundial, existem atualmente:

∟ 4.2 bilhões de pessoas sem acesso aos “benefícios da globalização”
∟∟ 2 bilhões de pessoas abaixo da linha da pobreza (U$2 por dia)
∟∟∟ 1 bilhão na extrema pobreza (menos de U$1.25 por dia)
∟∟∟∟ 800 milhões passando fome
∟∟∟∟∟ 160 milhões dessas pessoas são crianças
∟∟∟∟∟∟ 7 milhões dessas crianças morrem anualmente

E a conta não fecha:

Não há nenhuma razão para ter gente passando fome neste planeta. Só de grãos, sem falar nos tubérculos, frutas e etc, nós temos mais de 1kg diário por habitante. Se pegarmos o PIB mundial (75 trilhões de dólares) dividem por 7.2 bilhões de habitantes dá o equivalente a 9 mil reais por mês para uma família de 4 pessoas. Com o que produzimos hoje, é possível que todos vivam de maneira digna e confortável.

A velha dicotomia: existem 62 bilionários, segundo o Credit Suisse, que tem mais riqueza acumulada do que a metade mais pobre da população mundial (3.6 bilhões de pessoas).

3. Guerras financeiras

Além das reivindicações ambientalistas e sociais, também é preciso compreender a disputa econômica que está na base dessa crise de refúgio: os conflitos por reservas naturais, locais estratégicos e territórios. As guerras em curso não estão em países aleatórios.

Na realidade, é impossível entender as guerras civis na África sem entender o subsolo africano. São países riquíssimos em titânio, ouro, diamante, urânio. “No caso do Congo, eles tem 85% da reserva de uma liga de metal imprescindível para fabricação de celulares: o Coltan”.

Hoje, existem dois milhões de técnicos chineses trabalhando em território africano, disputando-o com as potências europeias e norte-americana. Portanto, é fundamental entender essa dinâmica do subsolo africano, que raramente aparecem nos jornais.

► Saiba mais: Extração de minerais para celulares deixa 6 milhões de refugiados (Época)

No Oriente Médio, é preciso analisar cronologicamente as sucessivas guerras:

Invasão no Iraque
Sobre o Oriente Médio, é preciso lembrar que em 2003, o Iraque foi destruído por um “bandido mentiroso, um canalha consumado [George Bush]” (nas palavras de Arbex), que disse que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, versão que foi apoiada pelos grandes jornais dos EUA, NY Times e Washington Post, e ecoada no Brasil. Mataram pelo menos 150 mil mulheres e crianças iraquianas.

Líbia e o nascimento do ISIS
Além disso, também criaram a guerra na Líbia. Segundo Arbex, o que mantinha o governo líbio de pé eram 10 mil soldados de elite do ditador Muammar Gaddafi, que eram muito bem treinados, armados, e que impediam a chegada das potências mundiais. Após o início da guerra, para onde foram os milhares de soldados, que ficaram sem emprego depois da morte do Gaddafi? Foram para onde havia serviço a ser feito: Iraque, Síria, Argélia, países que estavam em guerra. Assim, eles constituíram a semente do Estado Islâmico.

► Mais: Líbia: do medo de Muamar Gadafi ao medo do Estado Islâmico (El País)

Síria e a tensão com a Rússia
Não contentes, eles ainda produziram a guerra civil na Síria, que é um país estrategicamente fundamental para os Estados Unidos e Europa Ocidental, pois, por sua localização geográfica, permite a passagem de oleodutos e gasodutos, vindo diretamente dos países produtores de gás e petróleo, por um preço muito mais barato do que o atual, que passa por Rússia e Ucrânia.

E com uma vantagem: se os gasodutos e oleodutos sírios fossem construídos passando pela Turquia e alimentando a Europa, isso eliminaria a dependência europeia da Rússia, que hoje é central nos conflitos entre OTAN e os russos pela posse da Ucrânia, por exemplo. Assim, toda essa crise criou o caos na Síria e fez dela o país com maior número de refugiados no mundo.

4. Governo das corporações

Para piorar a situação, estão costurando atualmente uma série de acordos econômicos que complicam ainda mais a temática, como o TiSA (Trade in Services Agreement) e TPP (Trans Pacific Partnership) e o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), com cláusulas que favorecem, por exemplo, a privatização de setores fundamentais em diversos países e definitivamente instauram uma era de neoliberalismo global.

Segundo uma cláusula no TiSA, por exemplo, se uma parlamento aprova uma lei que restringe o lucro de determinada empresa, essa companhia tem o direito de exigir a revogação da lei em um tribunal internacional “neutro” situado em Nova York.

O que significa dizer que uma corporação tem o direito de contestar a lei de um país? Significa que não existe mais soberania nacional. Acabou. Se esses tratados forem aprovados internacionalmente, será instaurado um governo mundial comandado por meia dúzia de corporações. (José Arbex Jr.)

Há saída?

Apesar do cenário caótico apontado pelos especialistas, algumas situações ainda trazem perspectivas interessantes para a crise mundial de refugiados.

Dawbor, por exemplo, afirma que o tripé problemático “ambiental-social-financeiro” gerou três cúpulas no ano passado:

  • Conferência europeia em Paris: acordo para recuperar cerca de 100 bilhões de dólares em paraísos fiscais
  • Conferência de Nova York (ONU): definiu os rumos do desenvolvimento sustentável
  • Cúpula Mundial em Adis Abeba: reunião de governos e bancos mundiais para melhor orientação dos recursos econômicos

Outro ponto a ser lembrado é a boa recomendação que o FMI deu sobre a chegada de refugiados à Europa. Segundo relatório da entidade, de janeiro/2016, os refugiados vão melhorar as condições econômicas do velho continente, já que vão renovar a força de trabalho.

A Alemanha, em algumas décadas, não vai ter população jovem suficiente para a demanda de serviço. As pessoas estão envelhecendo e o crescimento vegetativo é mínimo, às vezes negativo. Além disso, 21% da população síria que entrou na Alemanha tem nível superior, o que é um número alto. Assim, eles concluíram que o aumento do PIB europeu nos últimos meses é resultado da chegada de refugiados. Houve demanda de serviços de saúde, de infraestrutura, construção civil e para responder a isso, a economia tem que funcionar.

► Mais sobre: Refugiados podem ajudar economia europeia a crescer, diz FMI (O Globo)

Ou seja, precisamos resolver os problemas econômicos nos países de origem, mas também aceitar os refugiados. A questão central ainda é a xenofobia. O ódio ao estrangeiro. É culpá-lo pela crise que nós estamos vivendo. Se as grandes empresas e potências não se resolvem financeiramente, que, ao menos, a população se desfaça dos seus preconceitos como primeiro passo.

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João Abel
antifronteiras

jornalista, autor de ‘BICHA! homofobia estrutural no futebol’ e coautor de ‘O Contra-Ataque’