Evandro

Capítulo 6

Ibrahim
Antologia do Eu
6 min readJul 1, 2023

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Portrait of a Man — Vincent van Gogh

É. Agora fica foda. Ele era tudo que eu tinha ele fazia tudo por mim.
Ele pagava as conta ele ia buscar remédio ele ia no mercado ele ajudava eu no banho ele fazia comida. Ele carregava eu nas escada nos ônibus no metrô trazia eu aqui no centro no Arouche na República no Chá. Ele ficava de butuca cuidando quando eu pedia dinheiro. Ele não deixava as pessoa me humilhar se aproveitar de mim.

Eu nasci assim como você está vendo. Não foi acidente não foi uma má formação congênita essas coisa que dá na barriga ainda. Um azar. O médico disse para a minha mãe que essa era uma doença muito rara que só acontecia em cada cem mil criança. Disse também que era oitenta por cento de certeza que eu não ia nem nascer vivo e que mesmo que eu nascesse eu não ia viver nem uma semana então era melhor arrancar eu logo. A minha mãe conversou com deus fez jejum fez promessa não arrancou. É. Eu agradeço a deus que ela não arrancou eu. Mas olha. Eu não acho que foi uma dessas coisas de amor sabe. Desses amor assim como é que se fala mesmo hein. É. Incondicional. Até porque. Olha. A minha infância foi muito sofrida. A minha mãe deixava eu no chão eu ficava sujo o dia inteiro sozinho ela colocava comida para mim no chão como se eu fosse um cachorro ela ficava brava comigo sem eu fazer nada ela chutava eu. Ela chamava eu de monstrengo de estorvo que eu era um castigo que eu era uma desgraça que ela se arrependia que ela devia ter deixado o médico puxar eu jogar eu na lata de lixo. É. Mas sabe eu não culpo a minha mãe. É. Eu entendo ela. É que a gente só consegue dar de volta o que a vida deu para a gente não é. A minha mãe sofreu demais esse meu pai espancava ela puxava faca trancava ela gastava tudo o dinheiro da feira ele humilhava ela muito. Esse meu pai sumiu no mundo assim que eu nasci então que sobrou só eu para a minha mãe lembrar de tudo as coisa ruim que ele fazia com ela. É.
Enfim. Mas não importa. Eu nasci sem as perna pronto é isso é a vida o que eu posso fazer hein eu não vou ficar chorando entregar tudo esperar para morrer. Não. Eu me viro com o que eu tenho. As minha perna é este esqueite aqui. É ele que me leva para cima para baixo para todo canto.

Agora eu sinto uma tristeza assim muito grande. Eu sinto um vazio assim fodido que agora eu estou mesmo completamente sozinho. Eu sinto muito medo. E o que é que vai ser de mim ahn. Porque olha. As pessoa não têm dó de gente desse jeito como eu não. Ah não. As pessoa têm dó de criança as pessoa tem dó de idosa que é assaltada que tropeça cai quebra o pulso. As pessoa têm dó de cachorrinho largado abandonado com fome. Mas ninguém tem dó de deficiente. O que as pessoa têm é nojo as pessoa passa faz careta elas aperta a bolsa cobre o nariz vira o olho. Com gente como nós que é deficiente ou as família que fora despejada ou as travesti que toda madrugada leva surra ou os motoqueiro que todo dia tem um que se arrebenta no cruzamento. A gente é como se a gente fosse uma coisa que atrapalha a cidade. Como se a gente não fosse nem gente. Como se a gente fosse uma barata que as pessoa acha que é certo quando alguém pisa com a botina.

Olha. Mas eu sinto um alívio. É. Sim. Também eu sinto um alívio. Às vezes ele era mau às vezes ele era violento. Quando ele bebia muito passava dias sumido passava vários dia usando as coisa. Ele voltava para casa muito sujo machucado cheio de raiva ele chegava doido buscando qualquer coisa para poder vender ele quebrava tudo xingava eu de um monte de coisa. Teve uma vez que ele chutou eu no chão pegou eu começou a enforcar. É. Tinha vez que dava medo.
Mas é que o mundo machucou muito ele. Ele não gostava de falar disso. Acho que porque doía muito. Também que ele era muito orgulhoso ele tinha muita vergonha de pedir ajuda. Mas eu sei. Eu sei que ele foi muito machucado ele tinha muita revolta ele vivia triste com muita raiva. A família dele era muito ruim. O pai dele era traficante ladrão passou muitos anos preso. A mãe dele era uma vadia deixava as criança sozinha com fome. Ele era o mais novo era muito magrinho os irmãos batia muito nele. Quando o pai dele saiu da cadeia logo começou a bater nele quase matou ele. É. Isso lá é vida hein. Pois é. Não é. Então ele fugiu.
Sabe. Ele tinha uma cicatriz muito feia assim bem grandona ia do pescoço até a orelha. Ele ficava nervoso se reparassem nela. Ele odiava que perguntassem ele não gostava de falar dela. Mas eu acho que aquela cicatriz foi de alguma coisa que ele tentou fazer com ele mesmo sabe. Porque ele tinha outras ele falava de todas elas tranquilo como arranjou cada uma. É. Rindo. Que uma foi de surra da polícia que outra foi de paulada que outra foi de briga que ele bateu feio em tudo uns caras que tentaram roubar as coisa dele. Então eu acho que eu entendo porque ele era nervoso daquele jeito triste daquele jeito.

Mas ele era o meu companheiro. E olha eu nem sou guei não hein. É sou não. Mas é que ele era a única pessoa que conversava comigo preocupava se eu estava bem que me olhava sem nojo sem pena. Desde quando eu conheci ele quando ele viu eu caído no chão lá no Anhangabaú. Que uns moleque cismaram comigo disseram assim ih olha lá, será que sabe rolar. Eles derrubaram eu chutaram o meu esqueite só para ver eu me arrastando para pegar enquanto eles davam risada. Aí ele chegou deu esporro em todo mundo ele disse que palhaçada é essa porra bando de filho da puta deixa o cara em paz seus merda. Ele pegou o meu esqueite disse oh moço como você está está tudo bem com você essas molecada eles não respeita ninguém esses filho da puta. Você está bem hein você precisa de alguma coisa hein.
Não era muito. Ele ajudava eu no banho ele secava o meu cabelo. Ele carregava eu no colo às vezes ele me dava um abraço às vezes ele me dava um beijo. É. Às vezes ele beijava eu. Ele colocava eu na beira da cama secava com a toalha bem devagar beijava eu fazia carinho. No começo eu pensei. Mas que porra é essa eu não sou viado que palhaçada. Mas aquilo deixou eu. Deixou eu uhm. Contente sei lá. Sei lá eu gostei. Então eu deixei ele fazendo.
É que a gente era duas pessoa sem mais ninguém no mundo nós era muito sozinho. Todas as outras pessoa só tinha machucado a gente a vida toda. Do mundo era só paulada na gente. Então acho que foi por isso que a gente ficou junto sabe. Porque quando dois homem que são assim tão desprezado por todo mundo quando eles vive assim tão afastado de todo mundo são escorraçado o tempo todo. Nós dois teve que procurar de pouquinho em pouquinho os querer-bem os carinho. A gente teve que inventar o carinho a ternura porque a gente nunca tinha conhecido. Porque um homem que fica muito sozinho com ele mesmo por muito tempo sozinho ele acaba se rasgando ele se corrói até um nada. Ele vai cavando um buraco até virar um abismo. E então ele se joga. Sabe.
O homem precisa ter um outro para ele poder inventar que é uma pessoa boa.

E agora hein. É. Agora sou só eu.

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Ibrahim
Antologia do Eu

Possui múltiplas personalidades e cada uma delas é bipolar.