Hilda

Capítulo 1

Ibrahim
Antologia do Eu
6 min readDec 29, 2022

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Head of an Old Peasant Woman with White Cap (1884) — Vincent van Gogh

Se você está lendo isto eu não tenho mais boca.
E se o que eu apenas posso é deixar isso escrito a culpa é sua. Sua sim. E de sua mãe do seu pai dos seus tios das suas tias de vocês todos sim todos vocês que fazem os homens assim.
O homem de quem eu era dizia assim você é nada você é burra você é porca você é feia é gorda você me dá nojo inútil você é estúpida. O homem de quem eu era dizia assim aqui ó está sujo está ruim está frio está errado que droga de comida você não presta para nada a casa está imunda você é uma porca você não presta para nada mesmo.

O meu nome é Hilda. Minha mãe me chamava de peste desgraça correndo atrás de mim, me derrubando da árvore, espantando quem brincava comigo, me arrastando da rua para o pátio a ser varrido o banheiro a ser lavado. O meu nome é Hilda. Meu pai me chamava de deixa a menina brincar o que tem de mais a menina sair para brincar toda criança é assim mesmo gosta de brincar. O meu nome é Hilda. As minhas tias me chamavam de credo para com isso menina tem que se comportar feito moça ser boazinha educada sentar com as pernas fechadas baixar a cabeça os olhos lavar roupa lavar louça passar pano saber pregar botão e tirar mancha de camisa conhecer o ponto da carne saber quando está maduro o mamão o quiabo se está doce a laranja. O meu nome é Hilda. O meu tio me chamava de chiu vem aqui ninguém vai ficar sabendo ninguém pode ficar sabendo ou teu pai te mata a tua mãe te mata todo mundo vai odiar você isso vai acabar com a família e vão expulsar você de casa porque você é uma safada é sim uma quenga oferecida chiu chiu fica quietinha você quer viu viu não dói nada não dói nadinha chiu isso assim isso viu dói menos se você ficar quietinha.

O meu nome é Hilda. Quero deixar escrito que eu nunca fui. Que eu nunca fui feliz. A felicidade é um objeto muito grande desengonçado tem vida que não cabe. E onde é que eu poderia montar a felicidade hein. Aqui neste vão o incisivo o canino arrancados no soco? Aqui neste vago o bucho de onde saíram quatro? Ou aqui hein bem aqui no alto deste inchado no centro deste cortado combinando com o roxo?

Hilda Hilda Hilda. O meu nome é Hilda.
Eu vou morrer amanhã eu sei eu sinto. Um atravessado na garganta um calafrio nas costas do estômago. Amanhã dia sete o quinto dia útil deste mês. Eu disse eu estou cansada eu não aguento mais isso eu não quero mais apanhar eu não aguento mais isso sofrer ser infeliz eu só penso que eu quero sumir. Eu disse por favor os nossos filhos estão criados eles foram embora a gente não tem mais nada. Eu disse por favor eu imploro me deixa ir embora me deixa viver. O homem de quem eu era levantou a mão mas não bateu. Ele bufou sorriu ajeitou uma mecha do meu cabelo me empurrou contra a parede apertou a minha garganta, ele disse você é minha, ele disse da minha casa você só sai dentro de um saco preto fria. E ele não disse mais nada. Há vários dias ele apenas senta me encara matuta suspira sorri, aperta os olhos, estala os dedos, sorri levanta e sai. Amanhã é o quinto dia útil cai o pagamento, ele volta do trabalho ele senta no bar, ele volta tarde da noite ele chega em casa, ele me encontra, ele me acorda, ele cai todo para cima de mim.

Eu vou morrer amanhã. Eu queria ter dito. Eu queria ter dito não. Não quero. Não quero você não pode fazer isso porco desgraçado eu sou uma menina eu vou contar para o meu pai eu vou berrar eu vou dizer tudo o que você fez comigo. Eu queria ter dito basta eu estou indo embora a menina eu crio sozinha eu lavo roupa eu limpo casa eu varro rua eu reviro lixo eu peço esmola eu roubo eu me viro. Eu queria ter dito você me odeia porque você se odeia porque você é ridículo porque você é um verme porque a sua profissão não existe mais porque a Fiat dispensou você e mais duzentos porque o vizinho vai à praia tem um Astra porque o seu irmão tem até apartamento que está alugado e você hein você é um nada você tem nada. Eu queria ter dito eu não fiz nada eu apanho de graça meu deus do céu por que ninguém faz nada eu preciso de ajuda o meu marido me maltrata. Eu queria ter dito corta tudo amarra as trompas tira o útero eu não quero um segundo filho mais um filho um terceiro filho quatro filhos desse homem. Eu queria ter dito professora eu sou boa em matemática será que eu posso ser contadora engenheira professora o que eu preciso para fazer magistério junto com o ginásio hein. Eu queria ter dito meus filhos vocês três que são homens nunca façam isso o pai de vocês é covarde ele me bate porque é covarde olhem bem para mim meus filhos vocês três que são homens vocês também vivem nesta casa então me digam o que é que eu fiz hein o que é que eu faço de errado hein o que é que eu faço para merecer tanta humilhação essas surras. Eu queria ter dito filha você tem quinze anos você entende você precisa ajudar a sua mãe olha faz assim esconde um bilhete no meio dos seus cadernos entrega para a professora conta tudo diz assim professora a minha mãe vive presa em casa ela está com muita dor ela está com um chiado esquisito no peito a minha mãe não consegue mastigar o meu pai quebrou a boca dela ele quebrou o pulso dela ele chutou as costelas dela enquanto ela estava caída no chão filha conta tudo fala assim professora ajuda a gente a minha mãe precisa ir no hospital ela está com febre há vários dias com muita dor eu tenho que bater comida no liquidificador porque a minha mãe ela só consegue tomar ela não mastiga nada a minha mãe vai acabar morrendo professora me ajuda ajuda a gente ajuda a minha mãe pelo amor de deus. Eu queria ter dito não. Eu queria ter dito não. Eu queria ter dito não. Eu queria ter dito sim senhor policial ele me bateu ele me maltrata ele me bate todo ele vai acabar me matando levem eu daqui tirem ele daqui ele me dá socos ele me dá chutes ele me machuca ele me queima onde ninguém pode ver olha isso aqui senhor policial eu vou levantar a minha blusa para o senhor ver o senhor está vendo isso senhor policial o senhor está vendo isso aqui na minha barriga olha isso aqui o senhor está vendo isso nas minhas costas o que ele acabou de fazer comigo.

Eu vou morrer amanhã. Eu queria ter ido. Eu queria ter ido embora. Eu queria não ter ido. Eu queria não ter saído de casa. Eu queria ter ido em Curitiba ver o coral de crianças. Eu queria ter ido. Eu queria ter ido no Carnaval. Eu queria ter ido até o fim. Eu queria ter ido no cinema eu queria ter ido no Ibirapuera eu queria ter ido no show do Lulu Santos eu queria ter ido no show do Guilherme Arantes. Eu queria ter ido embora com a minha filha. Eu queria ter ido com a vizinha na delegacia quando ela disse meu nome Hilda vamos eu vou com você eu fico com você Hilda eu testemunho tudo Hilda conta comigo para o que você precisar vamos Hilda eu te escondo eu te ajudo Hilda você fica na minha casa pelo tempo que você precisar.

Ele chegou. Ele chegou. Chutando o portão. Berrando. Ele perdeu as chaves. Ele esqueceu as chaves. Perdeu as chaves junto com a carteira. Devem estar na mochila no bolso da calça dele. Ele não consegue achar. Devem estar com o dono do bar. Ele chegou. Se você está lendo isto, ele chegou.

Hilda
06/10/2021

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Ibrahim
Antologia do Eu

Possui múltiplas personalidades e cada uma delas é bipolar.