SOBRE “MIGNONNES” (“CUTIES” / “LINDINHAS”) — O FILME “PEDÓFILO” DA NETFLIX

Kae tê
antropoloko-alado
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7 min readAug 21, 2020
Pôster francês do filme à esquerda e pôster veiculado pela Netflix à direita — marketing da plataforma leva a má interpretação do conteúdo do filme. Fotos de divulgação.

O filme vencedor do Prêmio Mundial de Direção Cinematográfica[1] no Festival de Sundance deste ano, dirigido por Maïmouna Doucouré - uma mulher negra francesa-senegalense - conta a história de uma menina muçulmana criada num bairro pobre de Paris, tendo que lidar com o conflito entre os valores religiosos de sua família e a cultura cibernética[2] de exposição em troca de likes. O filme leva em conta a vivência imigrante da diretora e foi inspirado por uma cena que presenciou certa vez: uma apresentação em que meninas pré-adolescentes dançavam com movimentos e roupas insinuantes. Doucouré relata: “Fiquei paralisada, observando com uma mistura de choque e admiração. Eu me perguntei se essas meninas entendiam o que estavam fazendo.” [3]

Maïmouna Doucouré, diretora de “Mignnones” / “Cuties” / “Lindinhas”

Reparem, entretanto, o poder que o marketing tem ao passar a identidade do filme, que sequer foi produzido pela Netflix. O pôster da esquerda é o original: demonstra garotas com sacolas de compras, celebrando, e o grupo ocupa menos da metade da imagem, o corpo das meninas não é o foco. O da direita é o da Netflix, pegando uma parte específica do filme — a parte que deveria servir a uma crítica — e se promovendo justamente em cima disso: um grupo de garotas pré-adolescentes, com roupas curtas, em poses hipersexualizadas. A equipe da rede de streaming aparentemente não entendeu o conceito do filme, e cria uma aura extremamente romantizada, de libertação sexual e glamour através da arte, com um letreiro que me remete a algo como Dream Girls.

Caz Armstrong, em seu texto “‘Cuties’ e a traição de Maïmouna Doucouré pela Netflix” observa que “o marketing é focado na parte mais controversa do filme, expandindo-o a proporções ofensivas para conseguir atenção” [4]

Com tudo isso, e levando em conta a sensibilidade da temática, já existe um abaixo-assinado circulando para tirar o filme do catálogo da Netflix, com mais de 120.000 assinaturas [5]. É de se esperar que, no contexto brasileiro, a divulgação tenha vindo em péssima hora, considerando as notícias da última semana. [6]

Pedido de desculpas da Netflix em sua conta do Twitter, reconhecendo a arte como inadequada e não representativa do filme

Depois da reação instantânea da internet (o trailer foi lançado ante-ontem, dia 18 de agosto, e já tem mais de 160.000 dislikes[7]), a plataforma se desculpou pelo pôster e ainda tentou mudar a descrição sem, entretanto, acertar o alvo.

Descrição 1: “Amy, 11 anos, se torna fascinada com um grupo de dança de twerk. Desejando juntar-se a ele, começa a explorar sua feminilidade, desafiando as tradições de sua família.”

Descrição 2: “Amy, 11 anos anos, tenta escapar de uma família disfuncional se juntando a um grupo de dança de espírito livre, chamado ‘Cuties’, enquanto constrói sua auto-confiança através da dança.” [8] (traduções livres)

A versão brasileira da segunda descrição conta com:

“Aos 11 anos, Amy começa a se rebelar contra as tradições conservadoras da família e encontra seu lugar em um grupo de dança da escola”.[9]

Ainda que a segunda opção retire a parte de “explorar sua feminilidade” — o que enfatizava a dimensão sexual de personagens menores de idade — a situação de hipersexualização ainda aparece como saída, sem maiores problematizações. Em uma oposição entre uma família disfuncional e um grupo de dança de espírito livre, a “liberdade” ganha da “disfuncionalidade familiar”. Porém, pelas informações do trailer, vemos que a família não aprova o comportamento da protagonista e que ela própria fica em conflito entre essas duas realidades e com suas escolhas. Pelas falas, vemos que a mãe se preocupa com a sexualização de sua filha e, como li em um comentário no Facebook, resta a questão: o que há de disfuncional nisso?

Frame capturado do trailer, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fEVQ6HwBflg

O filme, ainda por cima, não só reflete sobre essa temática, mas parece tratar também de assuntos mais profundos: feminilidades, o choque entre cultura oriental e ocidental / tradição e contemporaneidade, choques geracionais, pressões familiares, construção de identidade. A Netflix, entretanto, superficializa o filme a apenas uma questão, sem a competência de traduzir a visão que a diretora deu a ela. Para além disso, as novas descrições dão margem para uma interpretação de que os valores muçulmanos são conservadores e limitantes, do qual a protagonista deve escapar — o que vai contra a alegação de que a plataforma respeita todas as religiões[fonte], insinuando um discurso etnocêntrico, para não dizer colonial e racista.

A polêmica é tão grande que as pesquisas no Google levam apenas a reações, sem nenhuma pista de posicionamento da diretora. Havia uma conta de Twitter em seu nome sendo mencionada em tweets de terceiros, inclusive no tweet oficial da Netflix sobre o filme, até o dia 18/08 — quando o trailer foi lançado [10]. Entretanto, hoje (20/08), ela está desativada — provavelmente em decorrência do backlash (reação negativa).
Vale lembrar que não é possível afirmar quanto dessa divulgação passou ou não pela diretora. Estou aguardando seu posicionamento e espero adicioná-lo a esta publicação assim que ele sair!

Antiga conta da diretora Maïmouna Doucouré

A mensagem que fica aqui é: o que está sendo ofensivo na divulgação de “Mignonnes / Cuties / Lindinhas” é justamente o que levou Maïmouna Doucouré a realizar o filme. O ataque não deve ser ao conteúdo, que é aliado à preocupação das pessoas que reagiram, mas à divulgação mal feita da Netflix! Sabotar esse filme significa minar a possibilidade de uma produção artística dimensionar esse problema em nossa sociedade, deixando de ouvir uma visão muito específica sobre a situação — a visão de uma diretora negra, imigrante, de origem senegalense, que vivenciou Paris com outros olhos. Olhos que estranham os percursos do se tornar mulher em nossa sociedade ocidental.

Torço para que o filme não saia da Netflix, para que o máximo de pessoas possam assisti-lo, mas o estrago já está feito. Acho que o caso mal chegou ao Brasil, mas se você realmente se ofende pela forma como o filme foi retratado, faça esse texto chegar ao máximo de pessoas, para que possamos fazer jus à arte de Maïmouna. Produções artísticas são extremamente potentes para desencadear reflexões e novas formas de ver o mundo. Sabotar uma produção que nos faz refletir sobre o problema não é a solução!

PS: não me senti muito seguro para me aprofundar mais detalhadamente no filme apenas com impressões de terceiros, mas deixo nos textos abaixo alguns comentários de pessoas que o assistiram. Pretendo vê-lo quando sair e resenhá-lo, mais consolidado com minhas impressões.

Notas e fontes:

[1] Originalmente chamado de World Cinematic Directing Award
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Cuties
[3] “Havia essas garotas no palco vestidas de uma forma muito sexy em roupas curtas e transparentes”, ela lembra. “Elas dançaram de uma maneira sexualmente muito sugestiva. Por acaso também havia várias mães africanas na platéia. Fiquei paralisada, observando com uma mistura de choque e admiração. Eu me perguntei se essas meninas entendiam o que estavam fazendo.

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“There were these girls on stage dressed in a really sexy fashion in short, transparent clothes,” she recalls. “They danced in a very sexually suggestive manner. There also happened to be a number of African mothers in the audience. I was transfixed, watching with a mixture of shock and admiration. I asked myself if these young girls understood what they were doing.”

https://www.screendaily.com/features/director-maimouna-doucoure-reveals-the-shocking-inspiration-behind-sundance-drama-cuties/5146481.article
[4] https://intheirownleague.com/2020/08/20/cuties-and-netflixs-betrayal-of-maimouna-doucoure/
[5] https://www.change.org/p/netflix-i-want-netflix-to-remove-the-new-movie-cuties-as-it-promotes-child-pornography?original_footer_petition_id=14430109&algorithm=promoted&source_location=petition_footer&grid_position=7&pt=AVBldGl0aW9uAOj5cAEAAAAAXz0Clob3jaFjODI3OTBmZg%3D%3D&fbclid=IwAR15pc8ZAa0GH2-Cgq_4WrnCPpzWB_0MG0ft80LwNG7Ff-z4NxPGT-aoyak

[6] Tentei passar bem longe desse tema, porque realmente me embrulha o estômago, mas nesta semana dois casos vieram a público:

Um foi o caso exposto pela Sarah Winter, em Recife, no qual grupos religiosos e parlamentares evangélicos cercaram um hospital, tentando impedir aborto (legalizado pela justiça) de uma criança que vinha sendo estuprada há anos.

https://www.metropoles.com/brasil/videos-grupo-cerca-hospital-para-evitar-aborto-legal-em-menina-de-10-anos
https://jornaldebrasilia.com.br/brasil/grupo-antiaborto-ataca-medicos-que-atendiam-menina-de-10-anos-estuprada-por-tio/
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/08/16/interna_nacional,1176632/aborto-de-menina-de-10-anos-e-alvo-de-protestos-no-recife.shtml
https://tribunaonline.com.br/videos-grupo-protesta-em-frente-a-hospital-onde-menina-de-10-anos-vai-fazer-aborto

O outro, foi o de uma menina de 7 anos que foi estuprada pelo marido da avó, no Rio de Janeiro.

https://jornaldebrasilia.com.br/nahorah/menina-de-7-anos-e-estuprada-pelo-marido-da-avo-no-rio/
https://oglobo.globo.com/rio/a-maldade-vem-de-onde-gente-menos-espera-diz-mae-de-menina-de-7-anos-estuprada-pelo-marido-da-avo-no-rio-24595661
[7] Trailer do Filme https://www.youtube.com/watch?v=M0O7lLe4SmA
[8] https://www.vanityfair.com/hollywood/2020/08/netflix-cuties-poster-child-stars-apology#:~:text=Directed%20by%20French%20filmmaker%20Ma%C3%AFmouna,an%20audience%20of%20their%20parents.
[9] Fonte: Netflix. Último acesso em 20/08/2020, às 20:18
[10] Link do tweet https://twitter.com/NetflixFilm/status/1295755622923644929

Posts disparadores da reflexão, no Facebook:

(em inglês)
https://www.facebook.com/adam.wallace.9047/posts/2682768648656775?__cft__[0]=AZUcRQTcHV8UsyQG1VrbGFwuWzOWvL0qn4mkpWR73eIO_kvf_Z9D5UsXdbB0EfHSZPgWEVx2IHElBSmNoQHf3kFQRzNYaqfWlmCkYMRIm5TajbW5K9psp7cHsY7WtQqJo1o&__tn__=%2CO*F

(em português)
https://www.facebook.com/godzillalimpatetos/posts/760207761471407

Textos em português sobre o assunto:

Fãs ficam furiosos com filme “pervertido” da Netflix; entenda
https://observatoriodocinema.uol.com.br/filmes/2020/08/fas-ficam-furiosos-com-filme-pervertido-da-netflix-veja

Lindinhas: Netflix pede desculpas por arte inadequada e muda marketing do filme
https://pipocamoderna.com.br/2020/08/lindinhas-netflix-pede-desculpas-por-arte-inadequada-e-muda-marketing-do-filme/

Maïmouna Doucouré sobre o filme (Filme de 02/02/2020)

https://www.youtube.com/watch?v=LqzWmsWArxQ&feature=youtu.be

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