Sobre proteínas, B12 e agrotóxicos: hipocrisia e essencialismo nos debates vegetarianismo x carnismo

Kae tê
antropoloko-alado
Published in
7 min readJul 26, 2018
Polícia da Academia Vegana, onde Todd, de Scott Pilgrim, se graduou. Segundo ele, ser vegano o torna “melhor do que as outras pessoas”. Imagem por chickabowow-fafa .

Sempre fui simpatizante do vegetarianismo, mas só há 6 anos, namorando um vegetariano, que me permiti experimentar deixar de comer carne. Nesses anos, já passei por uma época vegana, “voltei” a comer carne e parei “de novo”. Nesses anos, entre piadinhas irritantes de familiares invasivos, julgamento de naturebas ayurvédicos, vivências com alimentação crudívora e bons encontros ao redor de batata frita, pude entrar em contato com uma série de argumentações ao redor dos sentidos do comer. E gostaria de expô-las aqui.

Primeiramente: comer não é um ato meramente nutricional. E me irrita que o argumento de não-vegs circule ao redor de uma suposta preocupação com o valor nutricional daquilo que estamos comendo.

Anemia causada por deficiência de ferro, por exemplo, não é um distúrbio exclusivo de pessoas vegetarianas. Eu duvido que qualquer pessoa que siga uma alimentação dita “normal” saiba SEMPRE e opte pelos componentes de seu prato pautando-se puramente em indicações nutricionais.

Vou te contar um segredo: muito do que você come está orientado por… costume! E também por preferências. Se você curte um bifão no prato acompanhado de um ovo estralado, TOP, só não me venha dizer que é por motivos de saúde, parça. É muito conveniente comermos o que dá menos trabalho de fazer — e às vezes esse trabalho está simplesmente na energia gasta em pensar fora da nossa zona de conforto!

Quando dizemos que não comemos carne, tenho a impressão de que as pessoas têm preocupações maiores que revestem com esses argumentos de lugar comum.

Se você não come carne, o que vai comer?

Demonstrar que, justamente, há a possibilidade de sair de uma zona de conforto alimentar, causa um desconserto nas pessoas! E isso não precisa passar pela carne. Pode passar pelo trigo, pelo açúcar, pelo leite, por carnes específicas… a possibilidade de se alimentar de outras formas implica tipos de relações diferentes com a alimentação.

“Se não tem carne, não é hambúrguer”

Optar por deixar de ingerir algo (como eu optei por deixar de ingerir Coca-Cola no Ensino Médio) não significa que você não gosta do sabor daquilo (semana passada mesmo tomei um copim e continuava com o mesmo sabor adictivo). Outra coisa, se você passou 20 anos da sua vida comendo pizza, você provavelmente vai continuar sentindo vontade de comer pizza. Nossos referenciais não mudam de uma hora pra outra, e nossos memórias afetivas estão relacionadas a certos pratos ou eventos. Imagine que por algum problema de saúde, você nunca mais poderá comer queijo, ou mesmo carne. Não seria legal que você pudesse algum dia fazer uma pizza ou cachorro quente com ingredientes que pudesse comer? É o motivo pelo qual algumas pessoas levam cervejinhas sem álcool para os rolês.

Quando você pergunta sobre proteínas, você quer saber como alguém vive sem churrasco.
Aqui fica evidente a parte social da alimentação. Talvez você precise não só fazer uma pizza, mas promover uma pizzada ou uma noite do cachorro quente com seus amigos, ou mesmo levar seus espetinhos de legumes pro churca da empresa. A centralidade desses rolês não precisa ser os ingredientes. A maior preocupação é que não parece haver possibilidade de opções vegs nesses rolês e, portanto, ser vegetariany seria deixar de participar desses eventos. Mas tamos aí pra desconstruir, levando inclusive pratos que comemos (pra todo mundo que não faz ideia do que você come poder pegar quantidades consideráveis de uma das únicas coisas das quais você pode se alimentar ali. Yey!)

Não existe apenas um motivo para optar pela dieta vegetariana.

Vejo uma série de reclamações dentre o meio veg sobre movimentos como o “Meat Free Monday”, um movimento que lança a proposta de passar um dia na semana sem comer carne. As críticas variam entre hypear a alimentação vegetariana, ou separar o vegetarianismo “casual” de algumas pessoas daquelas que são “as verdadeiras” vegetarianas, e isso me irrita.

Meu bem, você pode escolher se alimentar de outras formas por questões nutricionais, por questões éticas, por simplesmente não gostar de comer carne, por questões gástricas específicas, enfim. Mas descredibilizar a opção de quem tomou decisão similar por vias alternativas… não faz o menor sentido!!!

Se alguém acredita que o vegetarianismo é a dieta a ser seguida pelo mundo todo, esse alguém, a meu ver, deveria comemorar QUALQUER tentativa de se aproximar do movimento. Aliás, eu aprecio tentativas e experimentações de reformulação em qualquer área da vida, então qualquer que seja sua proposta de mudança na alimentação, se for uma proposta de sair da zona de conforto, já vou achar show de bola. Porque o vegetarianismo, pra mim, tem a ver com repensar nossa noção de alimentação.

Outra coisa muito importante: não existe vegetarianismo no vácuo! A opção pela alimentação vegetariana, pelo que vejo, é um pensamento inserido no contexto capitalista, opondo-se às suas lógicas de exploração animal e a consequente distribuição de seus produtos e derivados.

Então, ideias como “ribeirinhos deveriam ser proibidos de pescar” ou a tradicional “MAS E SE VOCÊ ESTIVER SOZINHO NUMA ILHA SEM TER O QUE COMER?”………..NÃO. FAZEM. SENTIDO.

Primeiro: deixa as comunidades tradicionais com seus hábitos de alimentação, pô. Seu argumento extremamente empático com os animais e pouquíssimo empático com os humanos é invasivo e desrespeitoso. Temos outras coisas pra nos preocuparmos, mais importantes, pfv.

Segundo: se eu estiver sozinho numa ilha e tiver que me virar, caçar e outras coisas que, tadam!, eu não faria no meu contexto urbano no qual eu tenho a comodidade de um supermercado que já nos disponibiliza os produtos desprovidos da história de seus processos; eu estarei EM OUTRO CONTEXTO. Cê tá numa ilha, parça? Cê que produz tudo que consome? Então não me venha com essa.

Então, você não perde seus superpoderes de veg-de-verdade se comer algo com colchonilha ou se seguir uma vontade de comer um sashimi um dia!

Acho a essencialização da carne como algo indevido, e por extrapolação, pecaminoso e tudo de ruim… uma merda. Eu não acho saudável ninguém optar por uma alimentação por medo ou culpa. Julgamentos atrapalham a vida de qualquer pessoa, e eu acho importante não só reconhecer que qualquer umx possa sentir vontade de comer algo com carne/leite/ovo por estímulos visuais, olfativos ou afetivos; mas também que isso… é algo a ser vivido. E não que isso é o “meio” do caminho, e de que, algum dia, estaremos evoluídos de espírito o suficiente para não sentirmos vontade de comer nadinha de nada disso!

Manas, eu tenho tanta dificuldade de reconhecer meus próprios desejos e segui-los, que eu acho massa deslumbrar a possibilidade de me permitir pôr minhas próprias regras à prova. Não precisa ser nem no sentido de comer algo de fato, mas de apaziguar o imperativo de NEM.PENSE.NISSO. Não acredito que peco em pensamento por sentir vontade de tomar um milkshake de ovomaltine no meio do estresse urbano e trombando propagandas o tempo todo. Considero que pra eu evitar comer uma coisa ou outra, mais vale o sentimento ético de discordância do que um pensamento moralista aterrorizador.

Isso me faz reconsiderar meu posicionamento de acordo com o contexto. O que não significa que eu esteja a todo o momento prestes a comer carne, também. Em um contexto ritual em que me for oferecido carne, eu vou deixar de comer? Há outras relações e outros significados em jogo para que eu tome essa decisão, fora de como meu cotidiano segue.

E sobre a fetichização dos produto e o leite que “vem da caixinha”

Queria pontuar que nós escolhemos nossas lutas, e somos passíveis de arbitrariedades no processo. Então não consigo deixar de apontar que às vezes rola uma preocupação maior com o sofrimento animal contido num bolo, por exemplo, do que o sofrimento contido numa paranguinha, ou na produção de roupas e calçados de grandes marcas. Não acho que a ausência de um, invalide os outros. O que me leva ao ponto

Animais como humanos?

Vejo que é meio estranho pautar que animais (ou certos animais, porque rola uma identificação maior com os mamíferos) devam ser tratados como humanos quando alguns humanos mesmo não o são. Aqui, o que consigo visualizar é que a noção de humanidade acompanha um sentimento de pertencimento de grupo que não acompanha as delimitações biológicas de espécie, e isso não ocorre apenas em nossa sociedade. Aquelxs que merecem empatia são aquelxs com quem se compartilha esse sentimento… e às vezes é mais fácil senti-lo pelo cachorro do senhor em situação de rua do que pelo próprio senhor.

Conclusões

O que eu levo pra mim do vegetarianismo é o convite à desconstrução de um tipo de relação com o ato de se alimentar e com o alimento em si que nos foi incutido e não necessariamente questionamos. Eu tenho a dieta vegetariana como guia para me orientar na minha relação com os supermercados, self-services, pfs e cozinhas diversas e não acredito em um vegetarianômetro que demarque minha vivência de forma linear e unidirecional. Não acredito que pra se dizer vegetariano é necessário estar com uma contagem de “há x dias sem comer carne” e conto minha experiência vegetariana desde a primeira vez que deixei de comer carne. Não acho válido descredibilizar qualquer vivência pela frequência de ingestão de carne/ovo/leite (ou qualquer outro ingrediente) pois considero válida toda proposição de se reformular nesse aspecto e se permitir entender outros sentidos presentes no ato de comer.
Tenho uma noção de que alimentações ‘alternativas’ nos deixam mais atentos às questões que levantei. Independente do que você come, espero que esse texto tenha lhe abastecido de possibilidades de visões que lhe acompanhem em suas próximas refeições ;)

PS: esqueci de falar também de como as áreas de nutrição e medicina não são abertas a dietas alternativas, e essa também é uma forma de questionarmos como pensamos essas áreas. Quem sabe eu não fale um pouco mais sobre isso outra hora.

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