Mãezinha

Melvin Quaresma
Ao Centro
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8 min readOct 19, 2015

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Por Melvin Quaresma

São cinco horas da manhã e a casa da Zinha já está com as porta abertas. Na verdade, a porta principal quase nunca está fechada. De madrugada, fica apenas encostada. Dona Zinha, que oficialmente chama-se Helena, é devota de Nossa Senhora de Nazaré. Hoje, domingo, dia onze de outubro de dois mil e quinze, é a grande procissão do Círio de Nazaré; e Zinha, assim como grande parte do povo paraense, acorda cedo para agraciar a santa padroeira. Mãe de oito filhos, avó de dezoito netos, bisavó de sete bisnetos e trisavó da Sofia, a matriarca da família mantém postura de responsabilidade. São todos filhos de Dona Zinha e devotos de Nossa Senhora de Nazaré.

A casa da Zinha e a infância dos netos

Dona Zinha, conhecida na vizinhança, é chamada a todo momento. Na Rua Doutor Moraes, número novecentos e treze, a família reside há cinquenta e sete anos. A casa é um entra e sai constante de amigos, familiares e vizinhos. Não há tranca no portão, campainha, nem o costume de avisar; é só entrar. Dos oito filhos, cinco moram na casa de Zinha. E, além dos filhos, muitos netos, bisnetos — e a Sofia — também compartilham os quartos da residência. A presença de tanta gente dá ao lar um movimento incessante. A estrutura é de madeira e a dimensão dos cômodos não corresponde à quantidade de residentes e visitantes. Na pequena sala, o cenário é o mesmo há mais de quatro décadas: uma mesa no canto esquerdo, ao fundo; um sofá no centro; um ventilador sobre uma estante metálica encostada na parede do lado esquerdo; uma tevê; e, por último, duas cadeiras. A cadeira da Zinha, ao lado da porta, e a da ‘Neném’, uma das filhas, ao lado do sofá.

Em frente à casa, o pátio é, também, palco. Palco da infância. Depois da aula, os netos, bisnetos e Sofia passam a tarde se divertindo no quintal — e, por vezes, na rua, contra a vontade da preocupada Zinha. No calor paraense, a escolha para o fim de semana é quase sempre a mesma: água. De noite, o palco esvazia-se de crianças e é preenchido pelos gatos que passam de lá pra cá. Os pequenos brincam na rua, em frente à casa— sempre sob o atento olhar dos adultos que conversam sentados sobre cadeiras postas na calçada. A prática de conversar em frente às residências é diária e muito comum em alguns bairros de Belém.

No pátio, os netos, bisnetos e Sofia — a criança no balde, na foto central — brincam. Em alguns fins de semana, armam a piscina de mil litros.
De noite, o pátio é silencioso e as crianças brincam nas ruas — sob a responsabilidade dos adultos que sentam em frente às casas para conversar. A prática de conversar em frente às casas, em cadeiras postas sobre as calçadas, é extremamente comum no bairro.

Memórias

Aos setenta e quatro anos de idade, Helena guarda memórias vivas de um passado distante. Conta, com exímia facilidade, sobre sua infância sem a presença do pai e a vinda para Belém do Pará. Sabe pouco sobre o genitor, mas garante que Osvaldo Scaff, marinheiro, fez muita coisa por ela antes de desaparecer. “Acho que ele tinha grana, porque eu tinha até babá. Daí ele desapareceu e ninguém sabe o porquê”, conta sem demonstrar muitos sentimentos.
Filha de Benedita da Silva, Helena teve sete irmãos: Mariazinha, ou, Maria de Nazaré; Mundico, ou, Raimundo; Pretinho, ou, Carlos Alberto; Zeca, ou, José; Lucas e Júlio. Vivos, apenas Pretinho e Lucas. Ao contar sobre os irmãos falecidos, Zinha externa mais os sentimentos guardados com as memórias. O sorriso desaparece e dá lugar a expressões ressentidas, de quem jamais completou o luto das trágicas mortes — principalmente de Zeca e Júlio, vítimas de afogamento.
Quando começa a falar sobre a mãe, Benedita, Zinha diz: "Essa era guerreira demais. Batalhadora". Dona 'Bené' saiu de Soure — capital da Ilha do Marajó e cidade natal da família — para Belém com poucos recursos e muita coragem. Helena e os irmãos, perdidos na capital, precisaram se entregar aos trabalhos no mercado Ver-O-Peso para conseguir o sustento da família. E foi nas redondezas da feira livre que o irmão Júlio faleceu aos oito anos de idade. "Sumiu por um tempo, aí encontramos boiando no rio, em frente ao mercado. De certo alguém empurrou ou sei lá… Como era esperto o Júlio. Inteligente demais, dizia que ia ser engenheiro…"
Em Belém, a família instalou-se no mesmo terreno em que residem atualmente. A prefeitura, na época, concedeu alguns lotes no bairro para famílias que chegavam do interior. "Isso aqui era só mato e lama. Não tinha nadinha, por isso que era de graça", Zinha conta. Na vizinhança, fez amigos inseparáveis. "Riba", ou, José de Ribamar, foi um deles. A lembrança da infância juntos devolve à Zinha os sorrisos. "A gente empinava pipa, brincava na rua o dia inteiro… Era uma época boa demais".
O Riba foi fiel amigo de Zinha até o fim da vida, em dois mil e quatorze, quando morreu em decorrência de um câncer no esôfago.

Benedita da Silva, ou, "Dona Bené"; guerreira.
Pretinho, ou, Carlos Alberto, em sua casa. Carlos Alberto compartilhava o lar com José, ou, Zeca, já falecido.
Uma imagem carregada de lembranças. Dona Zinha, à esquerda, passa o café de fim de tarde para o vizinho e fiel amigo ‘Riba’, presente em todas as suas orações. O ritual se repetiu por décadas, todos os dias. José de Ribamar faleceu em 2014.

Preces

Enquanto o vai e vem humano gasta as velhas tábuas do chão e os aniversários dos filhos, netos e bisnetos consomem a madeira da mesa central, o cenário permanece quase intacto — como uma fotografia antiga ao fundo do intenso fluxo. Além do cenário, permanecem também os costumes da Zinha. É regra: às vinte e duas horas, todos os dias, é hora da reza.
No quarto da avó, que é compartilhado com a neta Karina e a filha 'Neném', um pequeno altar carrega as orações ali depositadas ao longo dos anos. Zinha pede a intercessão de Nossa Senhora de Nazaré por toda a família; e, nome a nome, pelos enfermos da família e vizinhança — tais como os vizinhos 'Garrincha' e Edna. Segunda-feira é dia do terço das almas e as preces são direcionadas para os entes queridos já falecidos. Nos outros dias da semana, as rezas são feitas sempre da mesma maneira, com uma inalterável ordem dos terços. "Rezo todo dia o terço da libertação, que serve pra tirar as coisas ruins das pessoas e libertá-las", conta Dona Zinha.

É lindo ver como a fé transforma. Helena, ao rezar, pouco parece a Dona Zinha sempre atarefada, carregada de responsabilidade. Ao lado do altar, seus olhos fecham-se delicadamente e o semblante de vó, bisavó e trisavó parece retornar à infância; leve como o sorriso de Sofia. Os lábios sussurram enquanto as mãos percorrem o velho terço. Não é possível acompanhar com precisão as preces. A estreita relação entre a fiel e suas crenças é um tanto misteriosa para quem assiste. Enquanto o terço que passa entre os dedos dá voltas intermináveis, Zinha permanece serena, conversando com seu Deus aos cochichos.

O quarto, no andar superior, dá visão ao térreo pelas brechas das tábuas do chão. As brechas, aliás, são muitas. São brechas no chão, que fazem os cômodos superiores receberem frechas de luzes por baixo; no teto, que são problemáticas em chuvas fortes; nas paredes, que fazem valer a máxima "as paredes têm ouvidos"; e nas portas, que tiram qualquer rastro de privacidade no lar. Com tantas frestas, além das imagens, os barulhos que vêm da rua alcançam a reza. Mas a atmosfera no pequeno cômodo de cinco metros quadrados é silenciosa; abafa os ruídos externos e fazem os sussurros quase ininteligíveis de Zinha sobressaírem. Estar no quarto, em momento de oração, é como uma fuga do mundo ao redor.

Todo segundo domingo do mês de outubro é assim. Casa vazia pela manhã, silenciosa como orações de Dona Zinha. Portas abertas, tevê desligada. O intenso fluxo de gente, agora, está à espera da passagem da santa na esquina da Rua Doutor Moraes com a Avenida de Nazaré, a algumas quadras dali. A família numerosa está na grande procissão do Círio, onde torna-se pequena diante dos milhões de fieis que se amontoam nas ruas de Belém do Pará. Dona Zinha, já fragilizada pela idade, toma uma certa distância do grande público. Antigamente, acompanhava a procissão do Círio bem próxima à santa, do início ao fim. Até onde sua memória alcança — e é longe — , jamais faltou a uma grande procissão do Círio.
Hoje, ao seu lado, estão alguns filhos, netos, bisnetos, Sofia e eu. Sou neto de Dona Zinha e filho de Nazaré, uma de suas filhas; privilegiada com tão abençoado prenome.

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