Cambridge Analytica é o sintoma, não o problema
Vivemos uma era em que nossa realidade está sendo criada pelos nossos dados pessoais em diversas plataformas. A realidade dos espaços públicos, da percepção, do debate público com nossos pares, parece que está ficando cada vez mais distante.
Quando o Netflix nos recomenda um filme, quando o Waze nos avisa sobre o melhor caminho a realizar ou quando começamos um namoro por aplicativos que cruzam nossos gostos, é tudo para melhorar nosso bem-estar. Essas comodidades são possíveis pela inteligência ampliada que está sendo oferecida para nós com o advento da conectividade em rede, massa de dados e inteligência artificial.
Mas as discussões sobre fake news, violência nas redes sociais, cyberbullying, abuso em anúncios e, agora, interferência nas eleições estão nos confrontando com uma outra realidade: nossa privacidade.
Todos esses casos, sejam para sugerir filmes ou para propagar notícias falsas, funcionam com um modelo muito similar que, basicamente, é encontrar padrões sobre comportamento em massa de dados e classificar seus semelhantes em grupos artificiais. Quanto maior o número de dados, maior será a eficiência em sugerir conteúdo ou influenciar o comportamento. E já há técnicas e estudos profundos nesse campo, como o de BJ Foog, psicólogo que fundou na Universidade de Stanford um laboratório para estudar o comportamento humano com uso de tecnologias persuasivas. A prática em que ele descreve essas técnicas é conhecida como captologia (“Computers As Persuasive Technologies”).
Acxiom, uma empresa americana fundada em 1969, especializou-se em coletar, analisar e negociar grandes quantidades de informações de consumidores. O objetivo de maneira geral é marketing, soluções de detecção de fraude e verificação de identidade. Atualmente, eles gerenciam mais de 15 mil bancos de dados de organizações distintas e 2,5 bilhões de informações sobre o relacionamento de indivíduos — inclusive prestam esse serviço para 47 das empresas listadas na Fortune 100. De maneira geral, a Acxiom afirma fornecer dados de 700 milhões de pessoas com até 5 mil meta-dados, ou seja, informações sobre comportamento, relacionamento e consumo.
A grande questão é que há diversas empresas coletando, processando e organizando dados há muito tempo e, provavelmente, será muito difícil saber onde e com quem estão nossas informações, principalmente depois de serem processadas e determinarem os grupos artificiais que fazemos parte.
Uma vez permitido o acesso aos dados pessoais, é impossível controlar sua interpretação ou processamento por terceiros, invalidando qualquer ação prática. O que evidencia o escândalo de dados pessoais entre a Cambridge Analytica e o Facebook é um sintoma de como o ecossistema de dados hoje está estruturado.
Este caso foi um exemplo de como os dados privados são captados e utilizados, em que as informações pessoais de 50 milhões de americanos foram organizadas sabendo de seus hábitos, gostos e comportamentos. Há suspeita de que estes dados foram utilizados nas eleições norte-americanas, com técnicas de persuasão e publicidade direcionada. Nesta crise, fica um grande dilema: qual o limite? Eu poderia mudar meu voto se o consenso fosse que minha cidade precisa mais de saúde do que de educação? Os dados podem mudar minha percepção de realidade para melhor ou pior? Quando os dados pessoais são usados para construir consenso ou para manipular?
Vivemos uma era em que nossa realidade está sendo criada pelos nossos dados pessoais em diversas plataformas, seja para nossa comodidade ou pelo interesse de ações direcionadas. A realidade dos espaços públicos, da percepção, do debate público com nossos pares, parece que está ficando cada vez mais distante.
As regulamentações apenas nos modelos de operação das organizações que lidam com dados podem representar um fim à inovação, assim como a renúncia de direitos dos consumidores ou cidadãos.
Vivenciamos um momento crítico que é a regulamentação do uso de dados pessoais, que se não for discutida com profundidade e com foco no direito à privacidade, pode representar grandes problemas para o mercado, para o ecossistema de inovação e para as democracias.
Para startups, o maior obstáculo é lidar com regulamentações complexas. Para o mercado, é a adoção de práticas excessivas, o que na prática apenas pouquíssimos atores conseguem realizar e, por último, expõe cidadãos a abusos digitais.
Este mês a Cloudflare, uma empresa referência de tecnologia e que fornece serviços de resolução de nomes de domínio para empresas e pessoas, está oferecendo um novo diferencial, que é a privacidade em primeiro lugar. Nesta prestação de serviço, a empresa garante que os dados de usuários não serão repassados para terceiros, assim como também que irá remover as informações de seus próprios bancos de dados depois de 24 horas. É uma promessa, com práticas para serem auditadas, mas sem nenhuma garantia técnica. De maneira resumida, estamos confiando em todas as pessoas que operam o serviço e que nenhuma mudança de postura haverá no futuro.
A solução viável para estes desafios está no direito à tecnologia para consumidores e cidadãos, direito à criptografia, privacidade de dados pessoais e explicação do que ocorre com seus dados. Pode parecer utópico, mas a União Europeia já deu o primeiro passo na sua nova regulamentação de dados pessoais, que entra em vigor em maio deste ano. A mudança exige uma série de práticas focadas no consumidor. Mas ainda se faz necessário mudar o controle computacionalmente, para termos certeza de como nossas realidades estão sendo construídas e nossas mentes influenciadas.
Artigo publicado 06/04/2018 na coluna Multidões, na Época Negócios.