Construções livres para inovar à sociedade

Renata Lopes
AppCívico
Published in
9 min readAug 1, 2016
CC0 Public Domain -https://pixabay.com

Em meados de 1900 quando alguém era proprietário de uma terra baseava-se no solo, no que havia abaixo do solo e também no ar acima dele. No entanto, na pós-revolução industrial, quando começavam a surgir os primeiros aviões de tecnologia mais avançada, surgiam também os primeiros passos do tráfego aéreo manipulado pelos homens. Sendo assim, depois de muita discussão, o ar em cima das terras deixou de ser a propriedade de alguém.

Segundo Lawerence Lessig, no livro Cultura Livre, essa era apenas uma das primeiras questões que despertaria a discussão sobre a propriedade privada e o ganho público, disputa essa que persiste até hoje e que nem sempre termina em bom senso.

Lessig (2004) coloca como exemplo a história da descoberta da rádio FM. A missão de Edwin Howard Armstrong era melhorar a radio de amplitude modulada (AM), porém, neste processo, ele conseguiu desvendar o segredo da freqüência modulada (FM), o que traria uma maior fidelidade ao som que se escutava nas rádios com a descoberta de uma tecnologia radiofônica superior. O chefe de Armstrong, um magnata da indústria AM, preferiu abafar a descoberta da rádio FM com receio que o império das rádios AM viesse à obsolescência. Alguns anos depois as rádios FM foram lançadas pelo chefe, e assim Armstrong, ficou sem mérito nenhum por sua descoberta.

Com o início da era digital, a batalha entre a propriedade e o ganho público se aprofundou e uma questão entrou em destaque: a propriedade intelectual. Segundo Ortellado (2013), propriedade se resume em algo que você fez por merecer para possuí-la. Seja por trabalho ou por herança, se trata da utilização de um bem. A propriedade intelectual é quase a mesma coisa. A concepção é de que o criador deve ter o direito sobre sua criação. Em outras palavras, se uma criação for utilizada por outros, o criador deve por direito ter uma recompensa material por esse uso, já que a “intelectualidade” para o desenvolvimento desta criação partiu do próprio. A propriedade intelectual é defendida pelos direitos do Copyright.

Já era esperado que quando aparelhos de reprodução se popularizassem, chegando a reprodução digital por computadores, as pessoas automaticamente começariam a reproduzir livros, fotos, músicas, filmes, softwares, etc… não só para si, mas também para os outros, sem pagar os devidos direitos de Copyright. A cópia eletrônica passou a ser, então, parte integrante da tecnologia, da internet e da cultura.

De acordo com Lessig (2004), se formos buscar na história do ocidente capitalista, sempre estivemos em meio a uma cultura livre, ou seja, aberta para todos. A maioria dos países da cultura ocidental sempre defendeu “mercados livres”, “livre comércio”, “livre iniciativa” e “eleições livres”, o que sempre incentivou a criação e a inovação. Dentro do contexto de cultura livre, um criador tem diversos meios de receber mérito por sua intelectualidade.

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O copyright tem data de validade, não tem ?

Na teoria, o Copyright tem data de validade dando o direito da criação ao seu criador com tempo limitado, entretanto, tal validade tem sido manipulada nas ultimas décadas. Carla Schwingel (2006), transcorre sobre o caso da Disney e seus direitos sobre o personagem Mickey Mouse. A lei tem aumentado a validade do Copyright a cada vencimento do período. O famoso personagem já poderia estar sendo livremente utilizado por qualquer um desde 2006, mas novamente ganhou sobrevida assim que a Disney adquiriu mais um prazo de carência para os direitos, ampliados de 70 para 95 anos nos Estados Unidos. Esse é apenas um dos casos de direitos autorais “eternos” que acompanhamos nas ultimas décadas, mostrando que a validade não é a solução para proteger a propriedade intelectual como um ganho social futuro.

Segundo Lessig (2004), a batalha pelos direitos de Copyright é dividida entre aqueles que possuem interesses na “mercantilização” da cultura, ou seja, na cultura comercial, e aqueles que desejam uma cultura cada vez mais ampla e criativa: a cultura livre. Acontece que na era digital temos um ambiente cada vez mais direcionado à uma cultura sem obstáculos para o alcance. Ter ideias divulgadas em um mundo aberto que podem ser compartilhadas em uma velocidade nunca vista antes é um denominador chave da era digital, hoje, um conteúdo deixa de pertencer exclusivamente a uma única pessoa rapidamente, e pode assim se tornar uma tendência comum a um grupo social.

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Vamos falar de código

No passado, quando a nossa possibilidade em adquirir músicas era apenas por meio da compra de discos, fitas ou CDs, não era possível comprar apenas uma música de determinado artista, mesmo que fosse de costume de maneira estratégia pela industria da música você se interessar por uma única composição. Ou seja, era preciso comprar um pacote de músicas desconhecidas e possivelmente desinteressantes pelo valor do pacote completo. Programas P2P, como o Napster, criado por Shawn Fanning e lançado em Julho de 1999, começavam a mudar o formato de adquirir músicas. O Napster alcançou 10 milhões de usuários em apenas nove meses. Chegou despercebido, permitindo que o usuário pudesse ter acesso facilitado às suas músicas favoritas e assim criar seu próprio CD sem a necessidade de grandes gastos com isso.

Campos (2004), aborda a história do Napster e conta, que neste momento, o programa era um aplicativo híbrido, ou seja, um programa executado em qualquer máquina, usando os recursos da mesma para pesquisar, compartilhar, organizar e realizar todas as atividades relativas ao compartilhamento de arquivos musicais. Entretanto, o que acabou com este programa foram os rastros que o uso dele deixava. O programa mantinha pontos físicos centrais de servidores e músicas disponíveis, atualizados constantemente em propriedades do Napster, foi por conta destes “centros” que conseguiram tirar o sistema de cena. Ainda assim, após o Napster e com os avanços tecnológicos, outros programas P2P de mesmos moldes vieram e as gravadoras continuaram buscando formas de fechar estes sistemas, até serem convencidas de que se mudassem os próprios moldes poderiam ter uma chance de não afundar. Hoje em dia, as músicas são vendidas por unidade ou em streaming e o mercado de CDs é apenas um coadjuvante.

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O código aberto no ciberespaço

Já existem maneiras de se manter uma cultura livre e ao mesmo tempo ter parte da propriedade de uma criação. Esse é o tão desejado bom senso no contexto da propriedade intelectual, ou seja, o meio termo que trás vantagens ao setor público e privado. Esse bom senso é composto pelo equilibro entre “todos os direitos reservados” e “nenhum direito reservado”, baseando-se em novas formas de direitos autorais e novas maneiras de se desenvolver um conteúdo. Hoje, já é possível observar alguns termos no contexto da cibercultura relacionados a uma cultura mais livre como: códigos aberto, Copyleft e Creative Commons.

Os softwares livres se popularizaram no mundo há algumas décadas: tratam-se de softwares de código aberto/open source. O que entra em questão é a criação por meio de um compartilhamento planetário de inteligência no desenvolvimento de uma solução. Foi um primeiro passo importante para reconfigurar a indústria de propriedades. Todos que se interessam em utilizar e desenvolver um software livre podem transformar, modificar e distribuir livremente este software desde que não ocorra o bloqueio de nenhuma parte do código e que ele se mantenha sempre aberto trazendo diversas vantagens, como a possibilidade de alguém estudar a maneira que o programa trabalha, podendo adaptá-lo às necessidades próprias. Um dos cases mundiais mais famosos de softwares livres é o sistema operacional Linux.

De acordo com Ortellado (2013), quando um dos principais desenvolvedores do Linux iniciou o movimento pelo software livre, quem recebia um programa livre, recebia com algumas condições: o usuário poderia copiar e aprimorar, contanto que as características livres fossem mantidas, ou seja, o direito de rodar, modificar e copiar livremente.

Aqui no Appcívico, trabalhamos apenas com softwares e sistemas de código aberto, abrindo mão da propriedade intelectual e contribuindo com a inovação tecnológica e com o desenvolvimento de sistemas adequados para o propósito de cada um, dando liberdade para a distribuição e melhorias, trazendo benefícios a comunidade como um todo.

O Copyleft é um hacking do Copyright, um modelo para contratos de adesão que busca corrigir falhas sociais no direito autoral padrão. A tendência é evoluirmos de uma cultura de massa centralizadora, massiva e fechada para uma cultura Copyleft, personalizada, colaborativa e aberta. O movimento Copyleft trata-se de uma ampla oposição aos direitos de propriedade intelectual que ao invés de restringir a divulgação, ele permite e estimula a distribuição da informação. (LEMOS, 2004).

O conceito de Copyleft evidentemente não está relacionado à pirataria comercial, o que se trata de um crime. A indústria da pirataria reconhece a legislação vigente e foge dela de forma clandestina, sem contestá-la, o que é diferente, por exemplo, em casos de software livres, que já nascem com o objetivo de ser copiado não incentivando a pirataria.

Já quando falamos da licença Creative Commons a escolha dos direitos é exclusiva do criador. O criador pode escolher uma licença que permita qualquer tipo de uso ou pode optar por uma licença que permita apenas o uso não-comercial, entre outros. O ponto que distingue essa licença das outras licenças é que os criadores do Creative Commons não estão interessados apenas em falar de um domínio público ou de trazer os legisladores para ajudar a criar um domínio público, trata-se de uma maneira de divulgação livre.

O uso do Creative Communs, por exemplo, um livro para download na internet, pode aumentar a venda de outros livros do mesmo autor, onde muitos poderão colocar suas obras sob essa licença como uma forma de divulgar o próprio nome e o ponto de vista, ganhando capital social que pode ser convertido em diversas maneiras de renda, como consultoria e palestras.

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As tendências do ciberespaço

A abertura para qualquer um criar conteúdo na internet com facilidade, conhecida como web 2.0, ou internet colaborativa, marcou a cultura do ciberespaço em suas mais diversas manifestações: chats, blogs, wikipédia, peer to peer, software livre, redes sociais. Essa nova maneira de se adquirir informação marcou efetivamente a criação de uma nova comunicação trazendo um fator de incorporação social nas tecnologias digitais.

John Perry Barlow (2001), já previa que o acesso livre deveria ser encorajado em vez de reprimido e que essa batalha seria vencida no futuro. Nesse futuro não existiria mais a propriedade no ciberespaço, onde a livre proliferação da expressão não diminuiria seu devido valor comercial e seria possível entrar em um relacionamento conveniente e interativo com a audiência. Barlow sustentou em sua pesquisa que iríamos chegar a cinco princípios nesse novo momento da indústria cultural: relacionamento, conveniência, interatividade, serviço e ética. Se analisarmos, não é difícil identificar fragmentos de todos esses princípios em nossa cultura atual.

É possível ainda traçar um paralelo com outras profissões “off-line”. Por exemplo, médicos são economicamente protegidos por um bom relacionamento com seus pacientes. Advogados, com seus clientes. Executivos, com seus acionistas. Em geral, se pensarmos que certas profissões, ao invés de adquirir propriedades intelectual ou física, adquirem renda através de relacionamentos, podemos entender, então, que o mercado da cultura digital poderia trabalhar da mesma forma, ou seja, no benefício do compartilhamento e relacionamento.

Termos uma cultura com o foco em menos propriedades e mais relacionamentos é termos uma cultura onde a ética passa a se tornar menos uma questão de virtude auto imposta e mais uma questão de hábito e pressão social. Quando você se relaciona bem com o seu público, em um diálogo aberto e amistoso, acaba adquirindo um boa reputação e o público alvo dificilmente terá motivos para entrar em conflito, como é o caso do desenvolvimento de um software livre.

Vivemos hoje, pela conectividade, em uma organização capaz de compartilhar o conhecimento. O relacionamento rege esse compartilhamento que vem mudando a maneira como nos comportamos no universo digital. Esse relacionamento gerará, cada vez mais, a troca de informações e conhecimentos e dificilmente a disseminação de uma cultura conseguirá não se manter livre com tamanha conectividade.

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