O velho e o novo mercado de gás brasileiro

Vanessa Petuco
Aprix Journal
Published in
7 min readApr 8, 2021

Conheça as principais mudanças propostas pela Nova Lei do Gás, apresentada não somente como um novo marco regulatório, mas também um marco histórico ao propor o início do Novo Mercado de Gás brasileiro

Shutterstock

Se há um fato relacionado ao gás é que não lhe faltam formas de aplicação. No setor de transportes e nas usinas termelétricas, o gás natural serve como combustível, o que representa 53% do seu consumo total. No segmento industrial, seu uso tem dupla finalidade, podendo tanto ser utilizado como fonte de energia como também matéria-prima, ao ser convertido em ureia, amônia e outros produtos. Este setor consome 40% do total produzido. Em menor escala, o gás também é utilizado como fonte de energia em residências e estabelecimentos comerciais, correspondendo a apenas 2% do mercado atual. Dessa forma, o Gás Natural (GN) e o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP) representam produtos relevantes para a economia e a sociedade brasileira, o que não significa que sejam aproveitados devidamente.

Segundo o último Boletim Mensal de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural, publicado em dezembro de 2020, 41,8% do volume total de gás natural produzido no Brasil foi ofertado ao mercado, enquanto outros 41,6% foram destinados apenas à reinjeção. Esta porcentagem representa 52,78 milhões de m³ por dia.

Cabe ressaltar, também, que sua participação na matriz energética nacional ainda é pouco significativa, visto que constitui um pouco mais de 10% da oferta primária de energia. De acordo com o estudo intitulado “Mercado de gás natural no Brasil: desafios para novo ciclo de investimentos desenvolvido pelo BNDES, um dos grandes desafios para o desenvolvimento do mercado não está na sua produção, mas, sim, na sua logística e distribuição. “Em virtude do fato de os centros de consumo se encontrarem distantes dos locais de produção e de a malha de transporte e distribuição não estar bem desenvolvida, o custo logístico exerce papel preponderante na composição do custo total”, informa o artigo.

Além disso, o estudo afirma que há uma lacuna de regulamentação do mercado, o que favorece a formação de monopólio natural. De fato, tanto na indústria do Gás Natural (GN) quanto do Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), a presença da Petrobras é marcante. O químico industrial especializado em petróleo e gás, Marcelo Gauto, descreve a relação destas indústrias com a petroleira: “O mercado de gás nasceu e cresceu através da Petrobras, integrado do poço ao posto, compondo um monopólio estatal verticalizado. O setor sempre foi muito fechado, controlado pela Cia. Inclusive o gás importado, via gasoduto Brasil-Bolívia (GASBOL) ou pelos terminais de GNL, faz parte do portfólio da estatal. Desta forma, todo gerenciamento de oferta, demanda, investimentos, ampliação da malha, era até então dependente da empresa”.

Por serem quimicamente diferentes ー o GN é composto basicamente por metano, enquanto o GLP por carbono, propano e butano ー, a estrutura da indústria de cada um inclui processos distintos, o que acaba influenciando na extensão do controle da estatal. Ambos gases têm origem nas camadas profundas do subsolo do mar ou da terra. Depois de extraído, o gás passa por Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGN), onde se realizam os processos de purificação e refino. No caso do GLP, sua produção também se dá por meio do refino de petróleo, visto que esse tipo de gás é um derivado deste combustível fóssil que apresenta uma das composições mais leves. Já o GN também pode ser importado na forma liquefeita, o que torna necessário realizar o processo de regaseificação antes de ser transportado por gasodutos em direção às distribuidoras. Nesse processo, no que tange ao setor de GN, a Petrobras atualmente está presente nos dutos de escoamento do gás do pré-sal, nas UPGNs, nos terminais de regaseificação, no transporte e na distribuição. Enquanto ao GLP, a presença da estatal se estende desde as refinarias de petróleo até 77% da produção nacional da matéria-prima e 100% da importação, conforme dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Esse domínio da Petrobras sob o mercado de gás vem sendo ajustado ao longo dos anos por meio dos marcos regulatórios brasileiros. Após um extenso período de monopólio da estatal, em 1997, a escassez de capital e o alto risco exploratório resultaram na promulgação da Lei 9.478. Por meio deste marco, institui-se a ANP como o órgão regulador das atividades que integram as indústrias de petróleo e gás natural e de biocombustíveis no Brasil. Além disso, a nova lei, conhecida como Lei do Petróleo permitiu a participação de outras empresas nas atividades de pesquisa, exploração, produção e refino de petróleo e gás natural mediante concessão, autorização ou contratação sob o regime de partilha de produção. Um dos principais objetivos deste marco regulatório era atrair investidores, o que de fato ocorreu. Por meio das rodadas de licitações, cerca de 100 empresas passaram a explorar e produzir petróleo e gás natural no Brasil, o que acabou resultando em importantes descobertas, como a camada do pré-sal. A abertura do mercado se ampliou ainda mais em 2009 mediante a promulgação da Lei nº 11.909. Conhecida popularmente como Lei do Gás, o novo marco inseriu o modelo de concessão para as atividades de transporte, tratamento, processamento, estocagem, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural. Nesse processo, a descoberta do pré-sal levou ao entendimento de que haveria um volume de reservas expressivo e, consequentemente, menos risco na exploração. Assim, em 2010, foi decretada a Lei 12.351, por meio da qual se alterava o regime de exploração e produção para o modelo de partilha. Três anos depois, o Deputado Federal Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB/SP) redatou o Projeto de Lei 6.407/2013, dando início ao que seria a PL 4.477/2020, mais conhecida como a Nova Lei do Gás.

Neste projeto de lei são apresentadas medidas relacionadas ao transporte de gás natural e às atividades de escoamento, tratamento, processamento, estocagem, liquefação, gaseificação e comercialização do produto. Sendo assim, o novo marco regulatório altera as Leis 9.478/1997 e 9.846/1999 e revoga a Lei 11.909/2009. Entre as principais mudanças previstas para o Novo Mercado de Gás brasileiro, consoante o texto original aprovado pela Câmara de Deputados, estão:

Acesso às infraestruturas essenciais por terceiros

Atualmente, de acordo com os termos da Lei 11.909/2009, empresas controladoras de dutos de escoamento, UPGNs e terminais de GNL não têm obrigação em permitir que terceiros tenham acesso às suas estruturas. Já no texto original do PL 4.477/2020, novos agentes passam a ter acesso a estas instalações. O mesmo se estende aos gasodutos de transporte quando houver capacidade disponível. Neste caso, a contratação desta capacidade fica condicionada aos termos e condições regulamentados pela ANP.

Desverticalização do transporte

No mercado atual, é permitido que uma única empresa ou um grupo societário explore determinado produto ou serviço, o que acaba resultando na formação de monopólios. Com a aprovação do novo marco regulatório, deve-se haver independência e autonomia entre o transportador e empresas ou consórcios de empresas que atuem nas atividades de exploração, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural. Este tipo de regulamentação já existe no setor elétrico, por exemplo.

Fim do modelo de concessão

Com o modelo atual, as empresas interessadas em realizar a construção de gasodutos devem passar por um processo de licitação. A Nova Lei do Gás propõe a alteração deste regime para o modelo de autorização, regulado pela ANP.

Sistema de entrada e saída para a capacidade de transporte

Inexistente na legislação atual, a PL 4.477/2020 propõe que a malha de transporte de gás natural seja feita de acordo com o modelo de entrada e saída. Ou seja, a injeção e a retirada de gás pode ser feita por diferentes empresas.

Estocagem subterrânea

Outra novidade que o novo marco regulatório propõe é a autorização para realizar a estocagem de gás de forma subterrânea.

No momento, o texto passou pelo processo de aprovação na Câmara de Deputados e espera a sanção do presidente. Por ser o segundo segmento que mais consome gás natural no Brasil, um dos setores mais entusiasmado com a entrada em vigor deste novo marco regulatório tem sido o industrial. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) chegou a estimar que a partir da aprovação do PL haverá o incremento de R$ 60 bilhões por ano em investimentos, bem como a geração de 4,3 milhões de postos de trabalho. Além disso, foi estimada a redução no preço do GN e, consequentemente, da energia elétrica. Os dados apontados pelo Ministério da Economia também são otimistas. A projeção apresentada pelo ministro Paulo Guedes prevê uma redução de 40% no valor do GLP para os próximos dois anos. Caso esta previsão se confirme, o governo antecipa que o PIB industrial brasileiro poderá aumentar em 8,4%.

Na avaliação de Marcelo Gauto, a nova lei do gás, por si só, não garante investimento algum, mas cria a estrutura regulatória favorável para que isso ocorra. “Os investimentos de fato ainda dependem de outros fatores, tais como crescimento econômico e competição na oferta de gás capaz de reduzir o preço da molécula”, analisa e complementa: “O gás natural é um importante elemento na transição energética, capaz de alavancar a indústria, a geração de emprego e renda no país. Porém, isso só virá com preços de gás bem mais baixos dos que temos hoje. Por isso, é fundamental que exista competição robusta na ponta da cadeia, na oferta de gás, que mude a lógica existente hoje, de precificação do gás atrelada ao petróleo. É um processo que leva tempo”.

Quer ficar por dentro das novidades do Aprix Journal? Assine nossa newsletter semanal e receba as últimas reportagens e notícias sobre combustíveis, tecnologia e precificação diretamente em seu e-mail.

--

--