A intensidade e a narrativa de “Identity”

Por Luiza Pugliesi Villaça

Luiza Pugliesi
Araetá
6 min readApr 25, 2020

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Identidade pode ser um campo minado, uma floresta ou até uma prisão. Mas a maior mentira que nos dizemos é que a encontramos sozinha.

Print-screen de vídeo do Youtube. Personagens principais ao centro, enquanto o resto do elenco está alinhado ao seu lado.
Print-screen de vídeo do Youtube. Personagens principais ao centro, enquanto o resto do elenco está alinhado ao seu lado.

Indentity é uma obra coreográfica de sete minutos e meio presente no show Beyond Babel, um espetáculo narrativo de danças urbanas criado por Keone & Mari Madrid, gigantes nomes na cena das danças urbanas mundial, e Hideaway Circus. A peça, criada em San Diego, agora está em exibição Off-Broadway, em Nova Iorque, por tempo limitado.

Keone & Mari Madrid são um casal de coreógrafos e dançarinos que borram a linha entre hip hop e a dança contemporânea, com o detalhado west coast urban dance (vertente da costa oesta dos Estados Unidos). Seguidos por legiões de fãs, os artistas são alguns dos nomes mais renomados e influentes do cenário das danças urbanas atual. Têm em sua carreira diversos prêmios coreográficos ao redor do mundo, além de terem trabalhado com diversos nomes da música mundial como Justin Bieber, no clipe de “Love Youself”, BTS, em diversos clipes do grupo sul-coreano, VIXX, em “Fantasy”, Billie Eilish, dentre outros.

O vídeo de Identity, disponível no Youtube (player no final da página), aconteceu no evento de dança hip hop VIBE Dance Competition de 2019, onde Keone & Mari juntamente ao elenco de Beyond Babel participaram como exibição convidada.

Identity é um fragmento da intensidade visual narrativa moderna e inovadora presente no espetáculo principal, a qual impressiona com a contação de história através do mundo urbano da dança e a incrível técnica dos dançarinos.

A coreografia é dividida em 3 tempos narrativos e composta por 3 principais persongens: um homem (Keone), uma mulher grávida (Mari), e os temores desse homem (todo o resto do elenco).

Primeira parte: desarranjo, solitude e rendição

Print-screen de vídeo do Youtube. Dançarino principal sendo segurado pelo resto do elenco.
Print-screen de vídeo do Youtube. Dançarino principal sendo segurado pelo resto do elenco.
Print-screen de vídeo do Youtube. Dançarino principal apoiado na grade, enquanto o resto do elenco dança.
Print-screen de vídeo do Youtube. Dançarino principal apoiado na grade, enquanto o resto do elenco dança.

No primeiro momento, é apresentado o personagem masculino identificando bordas e impedimentos através da grade. O coro de seus temores gritam “happy”, “mad”, “sad” em looping, até que o homem é “consumido em um bolo de corpos”. A ambientação transmite a temática da saúde mental.

Inicialmente, ele está constantemente tentando escapar, mas sempre é segurado pelos temores. Nesse momento a composição espacial dos dançarinos é sempre em grupo, um que fica ao lado do homem segurando-o, interagindo ou guiando-o, enquanto o outro dança. Até o momento em que todos começam a se espalhar no palco e entram em ação sincronizadamente, então o homem se rende e dança com outros.

A música nesse momento é “Momma I Hit a Lick” de 2Chainz com Kendrick Lamar. A expressão hit a lick significa ganhar muito dinheiro em muito pouco tempo, seja com o fenômeno da fama rápida, com trabalho, com o cassino, ou com roubo. Na música, a intenção é de orgulho e exibição do dinheiro, portanto pode-se associar esse como o principal temor do homem; ao mesmo tempo que se orgulha, perde sua identidade no ciclo ganancioso.

A variação de intensidade coreográfica muito forte trás consigo o aspecto de supresa. A ênfase em diversos detalhes e divisões musicais, como dançar seguindo o ritmo do beat ou da voz, em meio tempo ou completo, e variação da velocidade de movimentos, caracteriza o inesperado, foge do monótono, que faz com que seja impossível tirar os olhos da cena.

Segunda parte: reconstrução e reencontro

Print-screen de vídeo do Youtube. Em cena o casal principal abraçados, enquanto são observados pelos outros, mais distantes.
Print-screen de vídeo do Youtube. Em cena o casal principal abraçados, enquanto são observados pelos outros, mais distantes.

Neste momento, a cena muda completamente. A música tem tom mais intimista, ao mesmo tempo que a projeção se distancia do interior do homem, e um novo elemento é adicionado, a mulher. Movimento que deixa a plateia surpresa, pois a dançarina estava grávida na época.

Print-screen de vídeo do Youtube. Elenco tentando afastar o homeme da mulher.
Print-screen de vídeo do Youtube. Elenco tentando afastar o homem da mulher.

O fator da gravidez no palco assusta pela condição física de Mari Madrid, porém, inevitavelmente, adiciona uma nova camada de profundidade para a personagem: a fragilidade e a força da gravidez. Enquantos seus movimentos físicos são leves e simples, ela mostra a força narrativa suficiente para a libertação do personagem principal.

Pode-se traçar a face de um relacionamento (amoroso ou não) quase perdido, afastado, tanto pela atuação das personagens, quanto pela letra da música “When The Party’s Over” de Billie Eilish. Em seguida, a tentativa de reconstrução desse relacionamento.

Print-screen de vídeo do Youtube. Fila de todos os dançarinos, movimentos sequênciais.
Print-screen de vídeo do Youtube. Fila de todos os dançarinos, movimentos sequênciais.

O mais impressionante é a forma com que a organização espacial dos dançarinos nesse momento, e principalmente a movimentação em cânon (sequencial), muito comum em peças coreográficas, não foi usada somente para agrado estético, mas com sentido narrativo. A mulher, como a extremidade frontal e guia da movimentação, reflete seu poder na possibilidade de transformação da conscientização do homem. Não é possível controlar seus próprios temores sozinho, mas é necessário a ajuda, carinho e apoio daqueles à sua volta.

Dessa forma o fator da conexão entra em jogo, e o personagem principal torna-se ativo novamente: não está mais rendido.

Terceira parte: luta e barreira

No último momento, o elemento da grade torna-se mais presente. O homem, agora luta para tentar permancer ao lado da mulher; o elenco volta a ser repreensivo, mas agora a principal forma de representação é o uso da grade metálica como a barreira para união.

Print-screen de vídeo do Youtube. Homem e mulher segurados acima do chão tentando se alcaçar apesar da grade.
Print-screen de vídeo do Youtube. Homem e mulher segurados acima do chão tentando se alcançar apesar da grade.

A ousadia nas formas e no uso do elemento cênico em palco compõe a linguagem visual. Após inúmeras tentativas do par se reencontrar, ocorre a tranformação da barreira. Usada como forma de distanciamento do casal, a grade, agora, vira elemento contra os temores, estabeleçendo a união e possibilitando a busca da indentidade verdadeira do homem, longe desse lugar escuro de sua mente.

Print-screen de vídeo do Youtube. Mulher segurando a grade para separar o elenco do personagem principal.
Print-screen de vídeo do Youtube. Mulher segurando a grade para separar o elenco do personagem principal.

Todas as escolhas coreográficas de Keone & Mari são justificadas, o elemento narrativo na dança já é explorado em outros estilos, porém sua convergência com o cenário urbano com tanta intensidade emocional e técnica os tornam indiscutivelmente únicos.

Vídeo

Aviso: durante a apresentação, a plateia é muito ativa e responde verbalmente a todo estímulo que a surpreende. Não se trata de desrespeito, na verdade, na cultura das danças urbanas, o ato de gritar e animar, durante as apresentações, além de esperado, é o principal incentivo e fonte de energia para os dançarinos em cena. Portanto, como os próprios Keone & Mari dizem, “Se você vir algo que gosta… Faça barulho!”.

Vídeo retirado do Youtube — “Identity”

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