‘Bo Burnham: INSIDE’

Um especial de comédia emblemático sobre o isolamento social na pandemia

Paula Barzi
Araetá
7 min readNov 15, 2021

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Por Ana Paula Barzi

Capa promocional de “Bo Burnham: INSIDE”. (Foto: Netflix)

Robert Pickering “Bo” Burnham começou sua carreira como criador de conteúdo com 15 anos, lançando shows ao vivo no Youtube. Seu humor ácido e tom sarcástico e depressivo rapidamente cativou o público, ganhando popularidade. O comediante, músico, compositor, cantor, diretor, cineasta e ator estadunidense, mais conhecido pela direção do filme Oitava Série, seu papel como Ryan, par romântico de Cassandra Thomas (interpretada por Carey Mulligan), no filme Bela Vingança e seus stand-ups de comédia excêntricos, retorna com um especial da Netflix inédito depois de 5 anos longe da internet e dos palcos.

O filme que introduz stand-ups, dramatizações e paródias de propagandas e gameplays, desabafos, vídeos de react, uma intermissão, um debate sociopolítico com um fantoche e muitos outros segmentos — majoritariamente compostos por números musicais — foi escrito, produzido, dirigido e atuado por Burnham. Com limitações como estar sozinho gravando um especial — tendo que operar a luz e a câmera — , e fazê-lo em apenas um espaço, Bo Burnham teve de encontrar recursos criativos para inovar, fazendo com que ele não só conseguisse fazer do especial uma obra cinematográfica, mas também expressasse o que realmente significa estar preso dentro.

Um segmento de “react” dentro do especial de comédia. (Foto: Netflix)

Uma das técnicas mais usadas pelo ator é o zoom. Além de tornar uma cena estática mais interessante, em vários segmentos do filme é usado o zoom in ou zoom out, dando um senso de claustrofobia e ansiedade enquanto o quadro aumenta ou diminui ao redor de Bo Burnham. Ele usa desse recurso diversas vezes ao longo do especial, mas em um dos primeiros segmentos do filme, Burnham tem um diálogo com a câmera em frente a um espelho em que o zoom deixa o público tão ansioso quanto ele.

Em uma pequena sequência, logo após a performance de “Shit”, Bo Burnham utiliza de cortes e enquadramentos enquanto fala da sua saúde mental que está em um rápido declínio. A posição da câmera está estática, ele está sentado mexendo as pernas e a imagem está escura e pouco saturada. Há um corte abrupto quando começa a descrever seus sentimentos. A câmera está enquadrada apenas em seu rosto, o volume aumenta quando o protagonista canta “All Time Low” e luzes coloridas o rodeiam. Burnham faz o público visualizar sua ansiedade, mostrando uma sobrecarga sensorial parecida a de um ataque de pânico ao contrastar um corte com o outro.

Na música “FaceTime with my Mom” ele usa as proporções de tela do FaceTime. Ele estica a tela no momento mais emotivo e frustrado do personagem, mas logo essa faceta de crua emoção é empurrada da tela , deixando uma versão de si que não consegue se expressar. Em “White Woman’s Instagram” ele também usa do enquadramento para dar credibilidade e identificação à personagem criada por ele — uma generalização e sátira de mulheres brancas norte-americanas. O enquadramento da música imita o quadrado do Instagram ao listar as postagens fúteis da personagem e se estica, até atingir o enquadramento convencional do cinema, quando a personagem mostra um lado vulnerável de si mesma, falando da perda de sua mãe. Esse simples recurso adicionou uma camada à personagem e, sem esse, a música teria sido apenas um segmento engraçado sem importância. Assim que a personagem termina sua fala e menciona “salada com queijo de cabra”, o enquadramento volta a imitar o Instagram. Ao usar enquadramentos digitais reais — não só por precisão — vê-se como os apps ou a tecnologia limitam a capacidade de entender alguém ou sua experiência e também o quanto todos estão inseridos no mecanismo retroalimentar das redes sociais, especialmente na pandemia. Isso fica especialmente explícito na performance de “Welcome to the Internet”.

Composição de cena proposta por Burnham em “Welcome to the Internet”. (Foto: Netflix)

Usando do mesmo recurso de zoom in no começo dessa música, seu efeito é completamente diferente ao que tem no diálogo de Burnham com a câmera no início do especial, por exemplo. O zoom lento parece quase hipnotizante, o que faz sentido considerando que o personagem se porta como um vendedor que tenta cativar o público demonstrando os diversos apelos da web, praticamente impossíveis de resistir. Na primeira metade da música, o personagem é, no mínimo, moralmente neutro. O zoom logo se torna mais agressivo e as imagens mudam rapidamente, quase como se fossem pop-ups, sobrecarregando o espectador enquanto o personagem do vendedor se torna mais duvidoso e manipulador — justapondo quizzes peculiares e engraçados com imagens de pessoas decapitadas e teorias da conspiração tóxicas — , criando uma representação perfeita da superestimulação que as redes sociais providenciam e refletindo sobre o controle total que corporações multimilionárias possuem sobre a população. A música “How the World Works” discorre exatamente sobre essa temática.

O número musical protagoniza Burnham que canta sobre o funcionamento do mundo com uma abordagem educacional-infantil. É apresentado um novo personagem, “Socko” (“Meioloko” em português), um fantoche feito de meia que é amigo/prisioneiro do personagem de Burnham e lhe oferece diferentes perspectivas sobre o funcionamento do mundo: “A narrativa simples ensinada em todas as aulas de história/É comprovadamente falsa e pedagogicamente classicista”, “A rede global de capital funciona essencialmente/Para separar o trabalhador dos meios de produção”, “Propriedade privada é inerentemente roubo”, “E fascistas neoliberais estão destruindo a esquerda/E cada político, cada policial na rua/Protegem os interesses da elite corporativa pedófila”. O fantoche, que mostra alguns ideias marxistas, representa a classe trabalhadora; enquanto o personagem de Bo Burnham representa corporações, o governo ou até mesmo um grupo social privilegiado, moldado por uma ideologia reformista na qual sempre haverá a estrutura de opressão capital. Burnham questiona seu papel na luta e Meioloko pede para que Bo não o sobrecarregue com a responsabilidade de educá-lo, e que ele deve buscar alguma maneira de se educar sozinho. O personagem de Burnham poderia ser também representativo do ativismo performático. Meioloko logo diz: “Por que vocês, brancos ricos de merda, insistem em ver todos os conflitos sociopolíticos/Através das lentes míopes da sua própria atualização?/Isso não é sobre você! Então nos ajude ou saia da porra do caminho!”. Isso ofende o outro personagem que começa a demonstrar seus ideais dúbios: “Cuidado com a boca amigo/Lembre-se de quem está nas mãos de quem aqui!”. O personagem de Burnham se transforma no opressor e obriga que a classe trabalhadora ceda aos seus maus tratos. A história de Socko/Meioloko termina com Burnham tirando-o de sua mão mesmo após o fantoche implorar para que ele não faça isto; mesmo sucumbido às vontades de Burnham, Meioloko é prejudicado. O cineasta capturou com veracidade — mesmo que através de uma música com uma melodia leve e pura e uma abordagem infantil e cômica — a impotência das classes trabalhadoras através de Meioloko.

Bo Burnham dialogando com Socko em “How the World Works”. (Foto: Netflix)

Além de distúrbios mentais, desigualdades sociais e a dominação de corporações e das redes sociais, Burnham aborda diversos outros temas dentro do especial, como a auto-crítica e até o sexo e o romance e como esse viraram um produto digital. O filme tampouco aborda o conceito de “inside” apenas como estar confinado em um lugar físico — apesar do tema da pandemia e do confinamento social — ele fala majoritariamente de estar preso dentro de sua cabeça. Até visualmente percebe-se isso no filme quando ele mostra em todas as cenas seus equipamentos e cabos jogados no chão, humanizando mais o protagonista, mas também representando a “desordem” dentro de sua cabeça.

Burnham está deitado no chão desabafando sobre seus problemas e o domínio das redes sobre os jovens. (Foto: Netflix)
A curta cena mostra o ambiente de trabalho de Burnham. (Foto: Netflix)
O filme faz questão de mostrar a desorganização do protagonista em mais uma cena. (Foto: Netflix)

No final do especial, Burnham esclarece um dos temas do trabalho. Na penúltima música do filme “All Eyes On Me” ele canta “Você diz que o mundo todo está acabando/Meu amor, ele já acabou!”. Ele não tem esperança nesse sistema, já que foi esse mesmo sistema que criou todos os problemas com que ele lidou ao longo do especial.

Representação visual de Burnham preso dentro de sua própria mente. (Foto: Netflix)

No filme, Burnham diz ironicamente que a vida virtual é muito mais verdadeira que a vida “real”. Além do fato do confinamento social ter distanciado ou impedido relações interpessoais, a internet — cada vez mais avançada, mais difícil de resistir e mais específica em relação ao gosto pessoal — gera cada vez mais lucro, e não há nada mais real que o lucro na sociedade capitalista moderna. A internet afetou ou deformou completamente a percepção de real, assim o espaço não-digital acaba servindo o digital ou “sendo um mero espaço teatral para o mundo digital, muito mais real e muito mais vital”.

VÁ LÁ!

Onde? Na plataforma de streaming Netflix.

Quanto? A partir de R$25,90 por mês (de R$25,90 a R$55,90).

Quando? Quando você quiser!

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