BoJack Horseman — “The View from Halfway Down”

Isabel Forbes de Queiroz Ferreira
Araetá
Published in
7 min readApr 23, 2020

Por Isabel Forbes.

ATENÇÃO: A seguinte crítica abordará temáticas de morte e suicídio. Não recomendo a leitura caso você se sinta extremamente desconfortável perante esses tópicos.

BoJack Horseman é uma série americana animada de comédia dramática, exclusiva da plataforma de streaming Netflix e criada por Raphael Bob-Waksberg. Desde sua estreia, em 22 de agosto de 2014, a trajetória de BoJack, um cavalo antropomórfico e alcoólico cuja série de sitcom foi um dos maiores sucessos dos anos 90, e sua luta para voltar aos holofotes após 20 anos cativou a crítica e o público por mostrar uma personagem que, ironicamente, é uma das mais humanas já construídas, com seus problemas, traumas, erros e tentativas de se tornar uma pessoa melhor que fazem de BoJack uma personagem imperfeita, mas que se possa simpatizar com.

Outro fator que justifica o sucesso da série é a roteirização criativa dos episódios, que exploram diversos tópicos atuais e métodos de narrativas, tendo o bônus do formato de animação para fazer estas histórias possíveis. Com tudo isso em mente, não é a toa que a última temporada da série (dividida em dois pedaços, para a agonia dos fãs) foi ansiosamente aguardada para finalmente conhecer como o ponto final de BoJack Horseman seria dado. No entanto, um dos episódios da segunda metade da temporada, lançada em 31 de janeiro de 2020, acabou por ofuscar o episódio final da série, crédito que vai para o seu perturbador antecessor “The View from Halfway Down” (“A Vista do Meio para Baixo”, no tradução em português), com direção de Amy Winfrey e roteiro de Alison Tafel.

Antes de dar início à esta crítica, quero deixar claro que como cada episódio é uma continuação do outro, eventos de episódios passados são recorrentes em episódios futuros. Ou seja, terei que dar alguns spoilers para explicar alguns pontos. Essa é a deixa para aqueles que ainda não acabaram a série irem lá maratonar agora; ou se você ainda nem começou mas sempre teve interesse por BoJack Horseman, vai lá! E volte somente quando assistir tudo, hein? Já para os curiosos e aqueles que não aguentam segurar a ansiedade, podemos dar prosseguimento com a crítica.

Primeiramente, é importante relembrar o que acontecia anteriormente ao início do episódio: BoJack finalmente havia superado seu alcoolismo após um tempo em uma clínica de reabilitação, e encontrou um trabalho como professor de artes cênicas em uma universidade. Contudo, vários erros de seu passado vieram à tona publicamente, o que levaram o ator a ser odiado por todos e, em um tempo de desespero, retornar ao seu vício. Bem no fim do episódio anterior à “The View from Halfway Down”, Bojack estava completamente bêbado em sua antiga casa, tomando pílulas de remédios e assistindo um Blu-Ray de sua série de sitcom “Horsin’ Around”.

Já o episódio seguinte mostra o cavalo revivendo um sonho que ele mesmo admite que sonhara em outras ocasiões. Neste, ele está entre pessoas que faleceram durante o prosseguimento da série: Sarah Lynn, atriz e cantora que atuou quando criança com BoJack nos anos 90; Herb Kazzaz, criador de “Horsin’ Around” e ex-amigo de BoJack; Beatrice Sugarman, sua mãe e anfitriã no sonho; Crackerjack Sugarman, irmão de Beatrice, morto na Segunda Guerra; Zach Braff, baseado no ator da vida real (que também o dubla na versão original) e que aparece como mordomo; Corduroy Jackson-Jackson, ator que contracenou com o protagonista em um de seus projetos recentes; e Secretariat, um cavalo de corrida que assume nesse sonho a forma de seu verdadeiro pai, Butterscotch Horseman. Isso pode ser uma indicação de BoJack associou durante seu crescimento Secretariat, seu astro de infância, como uma figura paternal melhor do que seu pai negligente.

À medida que o sonho avança e BoJack não acorda, ele descobre que pode estar morto, ao ver sua silhueta imóvel na piscina de sua antiga casa. Em pânico, o ator tenta escapar dessa realidade ligando para Diane Nguyen, escritora que lhe auxiliou em momentos difíceis, e com ela soluciona o que realmente aconteceu: ele decidiu nadar bêbado e sob o efeito de pílulas. Em um momento, ele saiu da piscina e ligou para Diane. Ao receber a resposta da caixa postal, ele resolveu retornar à água. Com líquido preto o envolvendo, o episódio entra nos créditos com o som de um monitor de batimentos cardíacos sem sinal. E depois registrando batimentos novamente.

Screenshot do episódio na Netflix; BoJack vendo silhueta de seu corpo na piscina.

Não é difícil perceber que “The View from Halfway Down” tem como temática a morte, que ainda é considerada um tabu para muitos. No entanto, este episódio fará tal abordagem da maneira mais disfemista que conseguir, método determinante para causar choque no espectador e se diferenciar de demais produções que tomaram o caminho oposto.

Para poder discutir essa visão, é necessário dividir o episódio em duas partes: o jantar e o show. Na primeira, os personagens do sonho se reúnem para jantar enquanto conversam sobre as melhor e piores partes de suas vidas. Logo pode-se perceber que a cadeira onde BoJack se senta tem uma aparência semelhante com o interior de um caixão; fazendo uma clara referência ao fato de que ele pode realmente estar morto.

Outro ponto importante para se notar são as refeições de cada um dos personagens. Elas são, na verdade, o que cada um supostamente consumiu antes de morrer. BoJack, por exemplo, recebe as mesmas pílulas que consumiu antes de entrar na piscina e água provinda da mesma; enquanto Crackerjack tem a sua frente comida de exército. Tem-se, então, nesta cena, uma sensação de “última ceia”: um local onde se pode descontrair, remanescer pela última vez o que se alcançou enquanto vivo, e aproveitar pela última vez a sensação de comer, antes de se encaminhar para o evento final: o show.

Screenshot do episódio na Netflix; os personagens conversam enquanto comem (literalmente) suas últimas refeições.

Se o jantar representava uma última memória da vida, o show, por outro lado, é a metáfora de como cada um faleceu. A dinâmica tem cada um deles fazendo uma apresentação, que termina com cada um caindo por uma porta que não tem nada além de escuridão do outro lado. Esta porta nada mais é do que a ponte entre a vida e a morte; assim que se passa por ela, não há mais como voltar.

É de uma dessas apresentações que deriva o nome do episódio: Secretariat lê um poema de autoria própria onde expressa as circunstâncias de seu suicídio, que cometeu após ser banido de competir em corridas, da qual ele expressa antes de se apresentar que esta era a única coisa em sua vida que fazia sentido.

Nele, Secretariat expressa medo, perceptível por seus gaguejos e hesitações, e sobretudo, arrependimento em cometer suicídio, alegando não ter visto nem pensado sobre “a vista do meio para baixo”. O modo como a porta pisca progressivamente mais perto dele é uma representação desta mesma “vista” se aproximando à medida em que ele “cai”.

Este é o momento mais perturbador do episódio não só por tocar em outro tabu, mas também por mostrar o ponto de vista arrependido de alguém no meio do processo de tirar a própria vida. A performance e poema de Secretariat são fortes mensagens de prevenção ao suicídio ao mostrarem, ao invés das consequências depois desta, um lado da vítima praticamente nunca explorado, poderosa o bastante para fazer todos refletirem antes de cometer algo do qual se possa arrepender.

Por último, há a cartada final sobre o aspecto feio e inevitável da morte, na forma de uma frase de Herb à BoJack, que diz, antes do primeiro passar pela porta, que encontrará o amigo no “outro lado”, da qual Herb responde “BoJack, não. Não existe outro lado. É só isso” enquanto é consumido por um líquido preto e viscoso, que logo depois perseguirá o cavalo, também o consumindo. De certa maneira, pode se dizer que esse líquido substitui a comum personificação da morte como uma caveira encapuzada que tras consigo uma foice, e que a frase de Herb desmente outra comum concepção sobre a morte, isto é, a de que existe um céu e inferno, uma vida após a morte, dando a esta um tom mais pesado.

Screenshot do episódio na Netflix; Herb é consumido pelo líquido enquanto explica a BoJack que não exite outro lado.

“The View form Halfway Down” é um penúltimo episódio que poderia facilmente ser o último de BoJack Horseman, não fosse pelo som do monitor de batimentos cardíacos durante os créditos voltando a funcionar. Seria um final melancólico, certamente, mas um que evoca a natureza da série em ser inventiva e imprevisível. Neste caso, é algo que choca, todavia sem causar repulsa; um tipo de episódio que causa o espectador a “pausar” por um momento para digerir todos os acontecimentos.

A série nunca teve receios em pensar fora da caixa e abordar temas polêmicos, e este episódio não é nada diferente, com suas simbologias e metáforas sobre um aspecto pesado e incômodo sobre a morte, que muitos outros produtos midiáticos tem certa apreensão em abordar; enquanto que BoJack Horseman parece ter encontrado a fórmula para o que parecia impossível e poderia muito bem acabar em desastre, mas que, graças a um roteiro espetacular e animação criativa, conseguiu se sustentar como um dos melhores (se não o melhor) episódio da série.

Onde assistir: Netflix (disponível para celular, computadores, televisões e consoles de videogame);

Preço: De R$21,90 a R$45,90 por mês;

Quando: A qualquer hora!

Isabel Forbes de Queiroz Ferreira (3AAN20201)

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Isabel Forbes de Queiroz Ferreira
Araetá
Writer for

Aluna de Cinema de Animação na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) — São Paulo