‘Braid’— uma linguagem atemporal
Obra-prima de Jonathan Blow, ‘Braid’ é um jogo original com uma filosofia que revolucionou o cenário indie
Por Fernando Faria
‘Braid’ é um jogo sobre o tempo. Parece vago começar a descrevê-lo assim, mas à medida que caminhamos pela análise da obra, a frase fará cada vez mais sentido. Carregado de alegorias, seu título se refere não só às tranças da princesa, mas também às tranças do tempo.
O protagonista, Tim, é capaz de manipulá-lo. Assim se constrói a mecânica desse jogo de plataforma: Tim caminha por seis mundos diferentes, cada um contendo livros que narram parte da história, e cada mundo governado por uma regra estabelecida — em um deles, por exemplo, o tempo avança e retrocede conforme caminhamos para frente e para trás, em outro o tempo é invertido, e assim por diante. Quando comete um erro, Tim pode voltar no tempo para refazer a ação. Essa mecânica dialoga com a narrativa do jogo, pois Tim está tentando reparar um erro do passado, que as dobras do tempo esconderam. Assim, quebrando a tradição, é impossível morrer no jogo — não existe uma tela de game over, uma vez que podemos simplesmente voltar no tempo. Para completar a narrativa e desvendar a história, no entanto, deve-se resolver enigmas e coletar peças de quebra-cabeça, que compõem um quadro e dão uma dica do que está acontecendo. Todos esses elementos de Braid proporcionam ao jogador desafios em variados graus de dificuldade. Alguns são bem simples, outros poderiam fazer Einstein surtar e xingar até a quinta geração da família do programador do jogo. Trata-se de Jonathan Blow.
Jonathan Blow é o responsável pela genialidade e qualidade de Braid, em todos os seus aspectos. Programador virtuosíssimo e expoente na indústria dos games, Blow se inspirou em alguns jogos tradicionais — ao mesmo tempo que elabora uma crítica a eles — e em alguns de seus livros favoritos, como Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. Seu reconhecimento não se deve apenas ao repertório que possui, ou à infalível maestria com a qual arquiteta os enigmas de seus jogos, mas também à sua rara criatividade e inventividade.
Enquanto se fala em pensar fora da caixa, Blow já está a quilômetros dela. Quando planeja um quebra-cabeça, apresenta suas regras sem nunca insultar a inteligência do espectador, com o mínimo de informação necessária (geralmente de forma não-verbal), ao mesmo tempo que encoraja experimentação. Quem ganha é o jogador. Não existe sensação mais gratificante do que a de resolver um problema difícil sozinho, ainda mais quando é projetado de forma tão inteligente. Aquele momento de epifania, o lampejo de esclarecimento que nos leva a exclamar involuntariamente uma interjeição qualquer, quando, por exemplo, finalmente se descobre que na própria interface do jogo existe um enigma muito bem escondido.
No entanto, o maior enigma do jogo é a história. Braid é um jogo de camadas. Na superfície, parece uma crítica óbvia aos jogos de plataforma antigos — como Super Mario Bros — , nos quais o herói deve salvar a princesa e, ao chegar ao final da fase, é recebido por uma criatura que diz: “sinto muito, mas a princesa está em outro castelo”. (Se ela estivesse lá o jogo acabava, certo?). Ainda, o jogador que se preocupa apenas em resolver os enigmas sem prestar atenção nos detalhes, se surpreenderia com o final, mas não completaria o jogo, pois esse final é falso. O buraco é ainda mais embaixo. Para realmente entender Braid e chegar ao seu final verdadeiro, exige-se dedicação, inspiração e paciência para coletar oito estrelas (que correspondem às estrelas da constelação de Andrômeda), escondidas no jogo de forma extremamente inteligente.
Entendo o videogame como uma forma de cinema expandido. Não só por veicular imagens fora das salas de cinema, mas por trazer, além da audição e visão, a variável da interatividade para a nova mídia. O que me faz crer nesta, de certa forma, como um meio ‘superior’ (se é que existe tal coisa), pelo menos quanto ao potencial de criação.
E agora, com novas tecnologias, temos também a sensação de tato, a realidade virtual, o motion capture, a propriocepção etc. E o videogame não é só o jogo, o lúdico: ele é também uma nova forma de veicular arte. Trata-se de uma indústria extremamente nova quando comparada às outras artes (cinema, quadrinhos etc.), e ainda mais quando comparada às artes mais tradicionais (pintura, escultura, música, literatura). Portanto, temos aí a questão da linguagem.
O cinema demorou um tempo para se adaptar, e acredito que os videogames ainda não possuem uma linguagem própria, produzindo consistentemente obras com qualidade suficiente, de modo a lançar a mídia à esfera da seriedade, como as outras artes, e retirar o estigma de que videogames são coisa de gente violenta ou inculta.
Braid é um caso raro. Existem outros, claro, mas videogames ainda são vistos como brincadeira, curiosidade, até algo sem futuro, como curiosamente declararam os irmãos Lumière a respeito do cinema. Esses negacionistas são pessoas que não conhecem a mídia, não sabem do que ela é capaz. Da mesma forma que mágicos como Georges Méliès inovaram e contribuíram para estabelecer a linguagem do cinema, pessoas como Blow, que entendem profundamente a mídia na qual se expressam, são as que inovam e solidificam novos conceitos no imaginário das pessoas. Braid usufruiu de todos os recursos, e influenciou inúmeros outros jogos, ampliando o espectro de possibilidades. É o jogo responsável por popularizar o cenário indie nos games.
Braid é esteticamente agradável aos olhos e aos ouvidos também. Visualmente deslumbrante, a harmoniosa composição imagética parece pintada à mão, e demorou mais de um ano para ser idealizada, integrando elementos criativos e efeitos de partícula ao cenário, aos objetos, tudo com um uso magistral do foco e efeito de paralaxe. As ilustrações são belas sem distrair a imersão do jogador, ao mesmo tempo que ocasionalmente nos leva a simplesmente parar e ficar admirando aquilo. Por vezes parece uma pintura pós-impressionista em movimento. O jogo também esconde nos signos visuais alguns easter eggs, simbologias secretas ou pequenas referências que concordam com o tema, ou a história. A trilha sonora é simplesmente maravilhosa, escolhida com esmero, especificamente para interagir de forma curiosa e não invasiva com a ambiência, principalmente quando se volta no tempo.
Braid não é um jogo sobre salvar princesas, colecionar peças de quebra-cabeça, ou com plot twists baratos. É muito mais original que isso. Braid é sobre uma bomba. Mais especificamente: a bomba atômica. Entrar em mais detalhes seria estragar a experiência. Quanto maior o desafio, maior a recompensa, certo? Aí está a genialidade de Braid, na minha opinião, e porque ele é diferente de outros jogos: ele subverte a linguagem tradicional de como veicula histórias na experiência lúdica, na qual a recompensa por superar um desafio seria o progresso, ou algum item. Em Braid, a recompensa é a própria história, e a própria história é o jogo. Só os videogames têm a capacidade de transcender a própria linguagem por influência da interatividade com o espectador, exigindo que ele esteja no controle. Portanto, a dica para o sucesso não poderia ser outra: resolva os enigmas sozinho, sem a ajuda da internet ou de outras pessoas. Acredito em você. E tenha paciência. Braid é um jogo sobre o tempo.
SERVIÇO:
Onde: Braid foi lançado em 2008, pela Microsoft, no console Xbox 360. Mas também está disponível em outras plataformas: Playstation, PC e, futuramente, Nintendo Switch. Vai passar por uma remasterização agora em 2021, uma boa oportunidade para quem ainda não conhece o jogo.
Quanto: Disponível na loja da Steam por míseros 7 reais (https://store.steampowered.com/app/26800/Braid/).
Quando: Disponível indefinidamente.