Crítica de Arte: Coisa Mais Linda (Netflix, 2019)

Tiago R P Souza
Araetá
Published in
7 min readMay 13, 2019

Tiago Ribeiro de Paula Souza — Tiago R P Souza

Foto representativa das principais personagens da série. À frente, Maria Luiza (Maria Casadevall). Atrás, da esquerda para a direita: Chico (Leandro Lima), Thereza (Mel Lisboa), Capitão (Ícaro Sílva), Adélia (Pathy Dejesus) e Lígia (Fernanda Vasconcellos).

“Coisa Mais Linda” é uma série brasileira de drama, romance e questões sociais lançada pela Netflix em 22 de março de 2019. Foi pensada para ser um produto de exportação e contou com traduções para o inglês, francês, italiano e alemão (tanto através de legendas quanto de dublagens). Mesmo assim, é regada a muita cultura e identidade nacionais, dando as caras do Brasil para o mercado audiovisual mundo afora.

Esta é uma série sobre mulheres batalhando juntas por um lugar na sociedade, encontrando forças umas nas outras. A história se passa no ano de 1959 e gira em torno de Maria Luiza, uma jovem de família tradicional paulistana que, devido aos costumes machistas da época, se encontra presa numa vida de dependência dos homens ao seu redor. Ela vai ao Rio de Janeiro se encontrar com seu marido para, juntos, abrirem um restaurante. Ao chegar, descobre que o cônjuge a havia abandonado e roubado todo o seu dinheiro para viver com outra mulher.

Maria Luiza após descobrir que foi abandonada pelo marido (Episódio 1).

A partir daí, acompanhamos uma transformação tímida e sutil de “Maria Luiza”, a jovem adulta adequada aos padrões sociais, para “Malu”, a mulher que vai contra sua família, a sociedade e o sistema em prol da independência, da liberdade e da formação da própria identidade dissociada dos homens presentes em sua vida.

No Rio de Janeiro conhece Adélia, funcionária doméstica do lugar em que estava hospedada, e Thereza, jornalista e cunhada de Lígia, uma velha amiga paulista de Malu que havia se mudado para a então capital do país. Quando o quarteto se junta, as integrantes veem umas nas outras uma fortaleza, tanto para superar seus impasses e dilemas quanto para buscar um apoio em suas ideias, de igual para igual.

Através de Lígia e Thereza, Maria Luiza conhece o cantor Chico, que a apresenta a Bossa Nova, gênero musical ainda em ascensão na época, e o Samba em sua raiz, no alto do morro. Ela logo se apaixona por tudo aquilo e decide abrir um clube de música com Adélia, mesmo que por conta própria e com a aversão do pai à ideia de ter sua reputação comprometida por conta disso.

Maria Casadevall como Malu em cena da série (Episódio 5).
Leandro Lima como Chico Carvalho apresentando sua nova música (Episódio 1).

Maria Luiza para o pai (Episódio 1):

“Minha vida inteira sempre girou em torno de ser a filha do Ademar, depois a esposa do Pedro. Agora vou ser a pobre viúva?

Eu quero criar a minha própria identidade, pai. E eu quero que ninguém consiga tirar isso de mim.”

No grupo de personagens principais, nada mais justo que a predominância das mulheres, já que a história traz um ponto de vista através do olhar delas. São diferentes personalidades femininas que se unem por algum desejo de ruptura e mudança, desafiando as visões antiquadas dos homens que moldam a sociedade.

Lígia tem o sonho de ser cantora e, para realizá-lo, atura abusos do companheiro que reprova e a tenta manter na tradicional vida patriarcal. Thereza faz o que está a seu alcance na profissão de jornalista pelas causas das mulheres e tem uma vida amorosa, aberta e nada tradicional, junto ao marido. Adélia é analfabeta e vê no clube de música uma oferta de profissão em que seja valorizada para dar melhor qualidade de vida à família, além de ter tido más experiências amorosas com os homens que já se envolveu. Todas as ambições e dificuldades delas vão ao encontro das de Malu, que escolheu deixar seu filho em São Paulo e romper os laços com o pai para seguir sozinha.

Num conjunto, é mostrado de forma muito verossímil e consistente o contexto histórico em que as personagens estão: um meio estruturalmente machista até no ambiente de trabalho, em que há muita rejeição às decisões tomadas pelas mulheres. As personagens se deparam com empecilhos pessoais, profissionais e burocráticos simplesmente por não serem homens, nos fazendo questionar esta grande injustiça sistemática. De uma forma ou de outra, isso move as ações e motivações das personagens de forma muito orgânica e natural, dando a possibilidade de que o (a) espectador (a) se identifique ou tenha empatia por aquilo.

Fernanda Vasconcellos interpreta a aspirante a cantora Lígia, que vai contra o preconceito do marido para se apresentar no estabelecimento de Malu.
À esquerda: Mel Lisboa como Thereza/ À direita: Mel Lisboa contracena com Thaila Ayala em cena íntima (Episódio 3).

Há ainda na figura de Adélia uma bela amostra do que é a desigualdade social no Brasil e como a camarotização e o racismo eram escancarados nos tempos antigos em relação a atualmente, que seguem na mentalidade do brasileiro de forma velada. A situação desta personagem se difere da de Malu, por exemplo, que enfrenta as dificuldades da escolha de ir contra as ideias da família e ficar longe de seu filho. Isso porque a condição financeira de Adélia nunca a deu a possibilidade de escolha: ela precisava ficar longe da filha sempre para trabalhar e sustentá-la, sendo muitas vezes diminuída por seus contratantes.

Adélia, em discussão com Malu (Episódio 03):

“Eu trabalho desde os 8 anos de idade. A minha avó nasceu numa senzala e é difícil, é bem difícil mesmo. Eu trabalhava 6, 7 dias da semana, acordava às 4 da manhã, ficava mais de 1 hora no ônibus na ida, mais de 1 hora no ônibus na volta, chegava em casa e a Conceição tava dormindo.

Você sente falta do seu filho? Quantas vezes de verdade você precisou ficar longe dele? Eu sinto falta da Conceição todas as horas do meu dia. Seu filho já te pediu alguma coisa que você nunca vai poder dar? A minha já.”

Pathy Dejesus interpreta Adélia, um funcionária doméstica que se torna sócia de Malu.

Chico e Capitão, segundo seus próprios atores (Leandro Lima e Ícaro Silva), são os homens que “orbitam” as mulheres da história. Ou seja, apesar de todos os seus tropeços e desentendimentos, estão em grande parte dos episódios as apoiando e se compadecendo com as situações por elas vividas. Eles se diferenciam dos outros homens, tradicionalistas e hostis, que surgem no decorrer da série. Assim como Malu e Adélia, são totalmente diferentes e unidos por algo maior: no caso, a música. Os personagens engrandecem a cultura abordada com as performances musicais que protagonizam.

À esquerda, Ícaro Silva, que interpreta Capitão. À direita, Leandro Lima, que interpreta Chico.

Engrandecendo agora mais ainda as raízes tupiniquins, temos um elemento muito representativo, que é a umbanda. É uma religião brasileira que funde heranças culturais cristãs, trazidas pelos europeus, indígenas e africanas: a tríade compositora do povo brasileiro segundo o antropólogo Darcy Ribeiro. Os dois últimos personagens citados vestem guias (cordões ligados a entidades da crença), sendo Iemanjá citada em diversos momentos. A importância disto para a narrativa é observada, evidentemente, no último capítulo em uma cena muito forte e simbólica, e dá gosto de ver as matrizes de nosso país sendo enaltecidas numa produção de tão grande porte.

O seriado, em seus contextos histórico e musical, não traz à tona nomes de figuras públicas (como o então presidente Juscelino Kubitschek) ou de celebridades reais desta época de ascensão da Bossa Nova (como Tom Jobim). Mesmo assim, os produtores conseguiram lançar algo muito bem ambientado e caracterizado que fala por si só, levando a uma imersão muito brasileira e veraz para as telas do mundo. A trilha sonora, o figurino, os cenários, as situações inseridas no roteiro e a forma de abordar assuntos relevantes são um conjunto bem-montado de fatores que tornam a mensagem clara.

É nos mínimos detalhes que a série consegue funcionar e cumprir o papel que se propõe. A história está repleta de ícones, além de diálogos e ações análogas à sociedade que representa.

No geral, os poucos erros técnicos que encontram-se em Coisa Mais Linda não são capazes, nem de longe, de se sobressaírem às qualidades evidenciadas.

Minha reação pessoal assistindo à série
Minha reação pessoal após terminar a série

A série está disponível na plataforma da Netflix para os assinantes do serviço de streaming e deve ser renovada para o ano de 2020, devido ao sucesso que fez na crítica e a forma em aberto que foi encerrada a primeira temporada. Até o presente momento não há informações oficiais por parte da empresa sobre a continuação.

Crítica escrita por:

Tiago Ribeiro de Paula Souza — Tiago R P Souza

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