Crítica: O Poço

Pedro Henrique França de Oliveira

Pedro Henrique França de Oliveira
Araetá
4 min readApr 23, 2020

--

O Poço trata-se de um filme espanhol lançado na Netflix em fevereiro de 2020, entrando para o catálogo de produções originais do serviço com uma força motivada pelo situação atual, com isso quero dizer que escrevo essa crítica durante o período de quarentena, e tornam-se nítidas relações entre temas abordados no filme em seu roteiro e direção com a realidade daqueles que se sentem confinados e assustados em suas casas.

Com um tom de suspense e elementos de ficção científica, o filme te coloca na pele do protagonista dessa história, Goreng, ou pelo menos é o nome recebido por ele na prisão, palco de toda a ação do filme, que não se trata de uma simples prisão, ela é estruturada na vertical, cada andar é uma cela onde confina-se dois prisioneiros, um ambiente vazio e simples em todos os sentidos, desde a sua estética ao seu funcionamento. Uma vez ao dia uma plataforma desce por um vão ao centro da cela, nela está presente um banquete preparado cuidadosamente pela administração, a plataforma permanece em cada andar por pouco tempo até descer ao próximo, logo, aqueles que estão presos em andares mais abaixo sofrem com a escassez da comida já devorada pelos que estão acima, evidenciando uma natureza egoísta do ser humano, tema que é abordado durante toda a narrativa do filme. A cada mês os detentos trocam de andar e aqueles que estavam no nível 12 por exemplo, podem ir parar no nível 170 da noite pro dia, sem qualquer relação a mérito, trata-se de um processo randômico. Nesse ponto eu dou todos os créditos a estrutura do filme que consegue com um número na parede, o qual indica o andar, passar uma angústia intensa.

Mesa do banquete

Me sinto obrigado a comentar o aspecto violento do filme, não apenas como aviso legal a aqueles que não são fãs de sangue, mutilação, xingamentos e antropofagia, mas também para explicar como ela se encaixa na história.

Tudo parte da perspectiva do protagonista, Goreng inicia o filme em um nível mais acima da prisão, a comida não chega tão escassa, e o ambiente aparenta ser pacífico, logo, não temos tanto contato com a violência, a fotografia é menos claustrofóbica, temos mais luz no cenário, a presença da câmera subjetiva evidencia a visão de alguém que se encontra em um lugar novo, curioso e intrigado, ele recusa a comida nos dois primeiros dias, e sinto como se eu concordasse com ele até esse ponto, já que parece ser um absurdo comer algo que já foi tocado por tantas pessoas de uma forma tão desumana, por outro lado, concordo com ele não muito depois no filme quando a personagem se vê obrigado a comer carne humana para sobreviver ao se encontrar em um andar mais abaixo. Não o culpamos, pois é nítido que o andar molda o comportamento das pessoas, a prisão é a sociedade e os andares as classes sociais, parece óbvio e é óbvio, o filme não esconde isso, óbvio se torna uma palavra chave da história, é um mundo que já conhecemos, ele existe em nossa realidade, a aqueles que ficam por baixo e sofrem com o comportamento dos de cima, o impacto do egoísmo e os efeitos de se encontrar no fundo do poço. Quer entender como o buraco é mais em baixo?

quando estamos confinados

nos sentimos limitados, subor-

dinados e à medida que acei-

tamos a agonia, nos transfor-

mamos, deixamos de ver o

que está ainda mais em baixo

esquecemos de como era o

luxo de estar lá em cima, em o

Poço vemos do topo até a base,

temos um vislumbre das classes

de como elas vivem e se trans

formam, vemos a dependência

dos de baixo aos de cima e

com o tempo

já sem saber

quem somos,

aprisionados,

nos vemos

hipó

cri

tas.

Essa agonia de confinamento se intensifica ao longo do filme. Assim como nesse trecho a estética da fotografia nos deixa confinado e desorientado, em cenas noturnas, apenas uma luz vermelha ilumina o quadro, chapando a imagem, ofuscando o cenário, tirando o destaque do sangue e o fazendo ser apenas mais um elemento no ambiente, a ideia e de que lá, isso é normal, óbvio.

Outro aspecto interessante é a presença de conceitos religiosos no filme, ao ponto de eu ficar na dúvida se o final aborda uma crítica política ou religiosa, já que a fé e o arquétipo de um figura salvadora se tornam presentes principalmente no terceiro ato, o qual não vou me aprofundar muito para evitar spoilers.

O vão da cela

O Poço traz uma narrativa interessante, com bons diálogos, um tempo ritmo equilibrado entre momentos de caos e reflexão, com o bom uso da violência na tela, valorizando o tom crítico e amargo da mensagem, oferecendo diversas interpretações à obra por aqueles que assistem.

--

--