‘Dimension 20: A Starstruck Odyssey’

Tentando sobreviver no capitalismo tardio de uma galáxia completamente regida pelo acaso, os personagens da 12ª temporada de Dimension 20 põem em cheque a ideia obsoleta de uma moralidade dicotômica

Rafael Castro
Araetá
9 min readDec 8, 2022

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por Rafael Araújo de Castro

A arte de capa de “A Starstruck Odyssey” apresenta sobre um fundo azulado a logo da temporada e do programa Dimension 20 ao lado de uma ilustração da “The Wurst”, uma espaçonave no formato de um cachorro-quente em frente a um fundo estrelado.

Dimension 20 é um programa de RPGs de mesa no formato de “actual-play” que começou sua produção em 2018, na plataforma de streaming Dropout, em um movimento de popularização e conquista do mainstream por parte do hobby em questão ao lado de outros programas desse formato, como Critical Role e The Adventure Zone. Mas vamos com calma, o hobby se popularizou, mas nem todos estão inteirados sobre o universo dos RPGs, então, primeiramente, aqui vai uma introdução.

RPGs: Introdução à subcultura

Colocando simplesmente, RPG vem do termo em inglês “Role Playing Game”, isto é, um jogo de interpretação, onde os jogadores não são meras peças, como em um jogo de tabuleiro comum, nem personagens pré-estabelecidos, como em boa parte dos jogos de video-game populares.

Em um RPG, um determinado número de jogadores e um “Mestre” do jogo seguem determinado módulo de regras estabelecidas pelo jogo em questão (como por exemplo DnD 5E, Pathfinder, Kids on Bikes, entre muitos outros), e devem criar personagens próprios baseados no universo proposto (ou não) pelo módulo escolhido para interpretarem e desenvolverem. O mestre do jogo, por sua vez, é responsável por narrar uma história, descrevendo as situações e criando os desafios que serão enfrentados pelos personagens.

Sobre uma mesa de madeira, diversos itens associados aos RPGs de mesa, como uma ficha de personagem, uma variedade de dados, e caixas e cadernos com estética medieval.

Os RPGs de mesa atingiram um pico de popularidade por volta das décadas de 80 e 90 (o passatempo dos personagens de “Stranger Things” provavelmente vem à mente, não é?), ainda que fossem relativamente malvistos ou discriminados devido a noções pré-estabelecidas, assim como todo grupo considerado “outro”. Contudo, nos últimos anos, o cenário dos RPGs de mesa tem tomado um espaço muito maior no mainstream, principalmente em razão de programas no formato de “actual-play” (que consiste na transmissão direta das sessões de um jogo entre amigos, ainda que levemente mais produzido que um jogo comum, devido a seu papel de mercadoria, uma vez que se torna parte da indústria de entretenimento).

A “cena” dos programas de RPGs de mesa, e dos RPGs em si, começou e ainda é popularmente habitada por jogos com a temática de fantasia, tal qual os livros da saga “O Senhor dos Anéis”, por exemplo. Contudo, existem RPGs de uma variedade de temáticas, seja ficção-científica, velho-oeste, período regencial, investigação, super-heróis, ninjas, filmes de terror, fantasia-urbana, e contando.

Dimension 20

O programa Dimension 20, do serviço de streaming Dropout (que nasce a partir do grupo de comediantes intitulado “College Humor”), consiste em uma antologia de histórias integrada por, atualmente, 16 temporadas com variadas temáticas, módulos (regras), jogadores e mestres; algumas dessas contando com sequências ou spin-offs que compartilham o mesmo universo e linha do tempo.

Um poster do programa Dimension 20 do site Dropout mostrando a logo do programa e diversos comediantes, participantes e jogadores que estão ou estiveram no elenco do mesmo, cada um em um hexágono.

Outra ressalva é a de que, ainda que com tamanha variedade, a marca registrada do programa, criado em uma network de humoristas, é naturalmente a combinação entre comédia e RPGs, facilitada pelo idealizador, apresentador e mestre principal do programa Brennan Lee Mulligan, e o elenco principal de jogadores, também comediantes, denominado ‘Intrepid Heroes’, composto pelos jogadores Brian Murphy, Lou Wilson, Emily Axford, Ally Beardsley, Siobhan Thompson e Zac Oyama. Esta formação de mestre e jogadores constitui as temporadas principais e de maior duração do programa.

Uma foto tirada no set de filmagem, em que pode-se ver (da esquerda pra direita), frente a painéis de LED nas cores azul e magenta, os jogadores Brian Murphy, Lou Wilson, Emily Axford, Brennan Lee Mulligan, Siobhan Thompson, Zac Oyama e Ally Beardsley.

A Starstruck Odyssey — Origem

De acordo com a equipe de produção e os jogadores, essa foi uma edição do programa muito antecipada: Brennan, o cast principal e os produtores consideravam desde o início fazer uma temporada com uma temática sci-fi, mas a oportunidade só veio à tona quando Brennan considerou fazer uso do universo já estabelecido nas histórias em quadrinhos dos anos 80 (derivadas de roteiros de teatro) da série “Starstruck”, ilustrada por Michael Kaluta e escrita por Elaine Lee, que, por acaso, é também a “autora” de Brennan Lee Mulligan. Assim, Elaine compartilhou com seu filho o universo de sua criação, quase como uma herança de família, com a segurança de que ele seria capaz de escrever uma história alinhada ao ethos e às premissas filosóficas que definem seu universo.

Capa de uma edição da série de quadrinhos “Starstruck”, entitulada “Starstruck — ‘Old Proldiers Never Die’” e creditando Elaine Lee, M.w Kaluta e Lee Moyer. A capa ilustra um shot de ação contendo os personagens Harry Palmer e Erotica Ann próximos a um sistema de tubulação transparente vertical contendo água, por onde uma alienígena aquática se locomove.

Em virtude de sua formação como filósofo, Brennan Lee Mulligan insere em suas histórias uma coesão estética sensacional, entrelaçando temas, gêneros narrativos e conceitos filosóficos que dialogam entre si e resultam numa experiência tão edificante quanto prazerosa.

E em A Starstruck Odyssey não é diferente: a construção do mundo e dos temas que o atravessam permite que os personagens subvertam expectativas típicas de narrativas de aventura. No caso, o caráter intrinsicamente imprevisível da galáxia em questão dá liberdade para que os personagens possam se distanciar de papéis rasos e dicotomicamente morais esperados deles, uma vez que eles entendem seu lugar enquanto indivíduos sujeitos ao acaso do universo.
Dessa forma, os protagonistas se veem focando não em salvar o mundo (também porque estão inseridos num cenário interplanetário), mas em salvar a si mesmos (não no sentido de que eles se comportem moralmente mal — afinal trair as próprias convicções não seria algo diretamente alinhado com salvar a si mesmo — , mas sim permitindo que eles possuam nuance, e sejam entendidos de uma forma além da simplificação exaustivamente reproduzida pela hegemonia cultural do mainstream.)

A Starstruck Odyssey

Um cenário colorido feito pela ilustradora oficial da temporada, Amy Reeder, mostrando a Martini Nebula, uma das localizações da história. Na imagem pode-se ver uma vastidão tomada por uma nébula espacial em tons de amarelo, rosa e azul, e inseridos nela a espaçonave The Wurst, e uma estação espacial com um outdoor cujo formato se assemelha a um martini.

A décima segunda temporada do programa, foi ao ar semanalmente ao longo de 4 meses, com sua estreia no dia 11/01/22, e seu último episódio no dia 11/05/22.

A Starstruck Odyssey acompanha 6 personagens durante a era espacial “Anarchera-220”, em que os protagonistas tentam sobreviver num sistema intergalático desamparado sob os efeitos de um capitalismo tardio, realizando trabalhos informais para pagar um oceano de dívidas à bordo da “The Wurst”, uma espaçonave em formato de cachorro-quente, enquanto tentam se esquivar da mira de um número de facções intergaláticas, entre elas uma facção militar, um consórcio de empresas, um realeza totalitária, um grupo de agiotas, e o que mais o universo jogar em seu caminho.

Um poster de “A Starstruck Odyssey” onde pode-se ver, da direita para a esquerda, em 6 retângulos coloridos (em amarelo, rosa, lilás, verde, vermelho e azul, respectivamente) intercalados verticalmente, os 6 protagonistas da série: Big Barry Syx, Gunnie, Sundry Sidney, Riva, Norman ‘Skip’ Takamori, e Margaret Encino.

Além do cenário de design retrô-futurista em tons technicolor inspirado pelo estilo dos anos 60 e estruturado em torno de conceitos filosóficos específicos; a série também é majoritariamente enriquecida pela presença de personagens engenhosamente escritos, cujos arcos narrativos e desenvolvimento tocam em questões surpreendentemente profundas.
Norman ‘Skip’ Takamori [interpretado por Zac Oyama], o capitão da espaçonave em que a equipe reside, é inicialmente um homem amargo, devido a seu passado como integrante da Amercadian Space Brigade, da qual foi afastado sob circunstâncias injustas e misteriosas, que geraram sua visão de mundo pessimista e rancorosa — até que é infectado por uma cerebro-slug que toma conta de sua mente e corpo, e assume seu papel (nada discretamente) a partir dali.
A personagem de Emily Axford é uma droid ajudante descontinuada chamada Sundry Sidney, projetada pela empresa Handy Andy Android Manufacturers para ter multiplos propósitos, e assim, exercer todo cargo necessário, desde segurança a companhia, por exemplo. Devido a polêmicas durante seu lançamento envolvendo difamação, e ao baixo índice de aprovação de sua premissa (afinal, uma robô acompanhante com um canhão no lugar do antebraço é um conceito um tanto contraprodutivo), seu modelo foi descontinuado, o que se traduz em sua personalidade como uma baixa-autoestima, e uma busca pela aprovação alheia. Seu arco narrativo levanta questões sobre a busca por propósito como traço definitivo da natureza humana, e analisa sua premissa inicial não como um robô projetado para exercer toda função, mas sim como um robô projetado para exercer qualquer função.

"And I am Sundry Sidney, Jane of all trades, the Swiss Army wife. I am a beta version of a discontinued multi-purpose droid. And I'm wearing like a little 1950s diner uniform with little roller skates and a little paper hat. But then I also have an assault cannon for an arm and a cybernetic eye."
Emily Axford, descrevendo sua personagem.

O personagem de Brian Murphy, Big Barry Syx, é um clone que certo dia se vê tendo que lidar com a perda de sua família inteira, o Barry Batallion, e com questionamentos sobre sua própria natureza moral, quando, em um passeio a um parque de diversões, testemunha e sobrevive a um massacre iniciado por seu próprio irmão.
Siobhan Thompson joga como Riva, uma alienígena aguatunisiana de natureza aquática. Devido às capacidades psíquicas de sua espécie, cujo aspecto telepático dispensa necessidades culturais e semióticas de nome ou gênero, a identidade de Riva é na realidade a sensação de se estar profundamente submerso e encontrar uma corrente que te leva rapidamente ao exato lugar onde você precisa ir. Por conta disso, quando a personagem decide tirar um ano sabático para explorar a galáxia, esta adota o nome de Riva, e é facilmente coibida a participar de um esquema de pirâmide, uma vez que é alheia ao conceito de enganação.

“Hello, I’m Riva the comms officer slash unpaid intern. Riva’s obviously my human name. My actual Aguatunisian name is, and then you get an image of being deep underwater and finding a current that leads you swiftly and perfectly to where you need to get to. So that’s my real name, but that’s a bit complicated for most non-psychic life forms. So Riva’s good for me […]
Siobhan Thompson, introduzindo sua personagem.

Lou Wilson interpreta o engenheiro da nave, Gunnie, um ciborgue inteligente e impulsivo com um fascínio pela galáxia, que foi o combústivel para seu envolvimento em um acidente que fez com que ele fosse obrigado a se submeter a alterações corporais e obter as partes cibernéticas caríssimas que o homem luta para pagar até hoje (não só devido ao preço inicial, mas também ao custo adicional que cresce exponencialmente a cada batimento cardíaco do personagem).

"I mean, well, I’m a true spacer. So no thank you insurance.”
Lou Wilson, como Gunnie, recusando um seguro de vida segundos antes de sofrer um acidente que o torna um ciborgue do pescoço pra baixo.

“I’d cry if it wasn’t expensive. They charge me for excess hydration, but that, that was mean.”
Lou Wilson, interpretando seu personagem.

E por último mas não menos importante, Ally Beardsley interpreta a personagem Margaret Encino, uma empresária que trabalha remotamente da nave para a companhia imobiliária United Free Trade Planets — que adquire, negocia e vende planetas, luas, asteroides e outros corpos celestes — , e se vê em uma encruzilhada quando os negócios da companhia ameaçam colocar uma lua e toda sua povoação em risco, o que faz com que ela questione seus ideais e relacionamentos, enquanto parte em uma investigação para desvendar os mistérios envolvidos no acordo em questão.

A Starstruck Odyssey levanta questões sobre o conceito de liberdade, ordem e caos para conciliar a necessidade de sobrevivência, com ideais e o propósito de cada um em um universo que não se importa — e o faz enquanto oferece uma experiência de entretenimento de potencial criativo imensurável.

O logo estilizado de Dimension 20: A Starstruck Odyssey sobre uma imensidão estrelada no plano de fundo.

A 12ª temporada do programa Dimension 20: A Starstruck Odyssey em sua totalidade¹ pode ser encontrada sob o valor mensal de $5.99 (ou anual de $59.99) na plataforma de streaming Dropout, onde está disponível indefinidamente.

¹ No entanto, o primeiro episódio da temporada está disponibilizado indefinida e gratuitamente no canal do Youtube oficial do programa Dimension 20.

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Rafael Castro
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Estudante de animação. Rato profissional. Amador amador.