Flores (2017)
Luca Salla/ Luca Salla
Flores, um curta-metragem português lançado em 2017, escrito e dirigido por Jorge Jácome e fotografado por Marta Simões. Obra do gênero da auto-ficção, o documentário fictício foi parte da seleção da curadoria intitulada Wavelengths no TIFF (Toronto International Film Festival) do mesmo ano, categoria esta notável pela apresentação de filmes que escolhem explorar a estética das crises que assolam a vida humana diariamente.
O filme apresenta, em uma realidade passível de interpretação como uma distopia minimalista — que não pende entre o positivo e negativo tratando-se das diferenças para com a sociedade atual -, Açores, o arquipélago português de autonomia econômica e administrativa, quando dominada por uma intensa proliferação de hortênsias, plantas típicas muito comuns na região desde, como contado pelo filme, sua chegada do Japão graças a colecionadores. A proliferação é tamanha tal que impede a continuidade das mais importantes atividades econômicas das ilhas, e a população é evacuada em massa — o esvaziamento habitacional é então apresentado sobre dois prismas distintos; na reocupação como resistência e como oportunidade. Enquanto narra sobre a proliferação, o documentarista salienta a impossibilidade de qualquer cultura impedir a dominação das hortênsias, seja essa cultura humana ou uma simples variação da fauna.
Como parte de uma audiência brasileira para a obra (o curta-metragem está em cartaz na plataforma de streaming MUBI), a ambientação narrativa colocada em Portugal gera como que automaticamente uma rápida ligação ao fenômeno da colonização: a nação portuguesa, como expoente potência marítima na ocupação do Novo Mundo, vê parte de seu território assolado pelo processo reverso, uma força de contra-colonização que retira do arquipélago quase totalmente seu valor cultural antropológico — a resistência e a nova tentativa de ocupação oportuna são processos análogos a contra-cultura nativa de países colonizados contra o próprio colonizador.
Tratando da resistência, nos são apresentados os dois personagens centrais da obra, Rosa e Andrade, companheiros de batalhão dentre os remanescentes do exército nacional que permanece na administração de São Miguel, a maior ilha do arquipélago. Suas aparências e personalidades se misturam enquanto atravessam os inacabáveis campos de hortênsias e nos revelam dados sobre sua relação, amorosa e de uma cumplicidade silenciosa. Resistem a separação da ilha, bem como um do outro, e permitem a imaginação que divague sobre aqueles que haviam ido embora — o filme assume um leve caráter de coming of age. A atmosfera da selva de flores não passa sensação de perigo alguma, mas sim um bucolismo atrelado a profunda melancolia. A fotografia e o design artístico — que garantem à cor um papel definidor na narrativa — agem neste sentido ao atribuírem uma coloração que varia do roxo, lilás e azul por quase toda a duração do filme, aumentando ainda mais a noção de preenchimento causado pelas hortênsias. Em dado momento, o soldado confessa a câmera sobre um sonho, em que seu uniforme tornava-se azul e roxo ao invés do tradicional verde e marrom.
Passando para as novas oportunidades que surgem no território, o documentarista retrata o desenvolvimento do comércio apiário e exportação de hortênsias, por grupos franceses e holandeses. Flores age contrariamente à maior parte das narrativas que retratam a força da natureza contra a ocupação humana, desvencilhando-se da destruição violenta e trágica e mostrando apenas uma superfaturada retomada territorial, sob a qual os humanos não possuem possibilidade de inversão: devem se adaptar ou simplesmente irem embora.
Um terceiro capítulo no filme nos mostra uma cerimônia religiosa católica, que transmite a imagem de um funeral, mesmo que não especificado — uma estátua de Maria com o filho Jesus no colo é alçada ao mar, em madeira e rodeada por hortênsias, enquanto um pequeno grupo de pessoas se despede simbolicamente do Arquipélago, entregando o remanescente de sua cultura também a natureza. Cinematograficamente, os planos são fechados e intimistas, iluminados por um feixe de luz único e direcionado — o tom azul marcante salienta ainda a melancolia do momento.
Um êxito também interessante alcançado pela obra refere-se à sua metalinguística estendida — como documentário, a realidade da representação como um filme não é mascarada como em narrativas de ficção ilusória; porém, há passagens que tentam aproximar mais ainda o fazer do cinema ao assunto que escolhe tratar: os colegas colocam os microfones de lapela um no outro, e a faixa de áudio segue as falhas de ruído até a instalação de sucesso; o material do sonho do soldado é incorporado a estética do filme, coincidentemente ou propositalmente; enquanto a última fala, sob a figura da silhueta do homem no céu azul na praia durante a noite, explicita sua própria curiosidade e necessidade de conexão, quando diz que deseja muito, um dia, reencontrar o documentarista e assistir aquilo que foi filmado.
O filme está disponível na plataforma de streaming MUBI há meio mês, e permanece em cartaz por mais duas semanas. Plano de R$ 27,90 mensais.
foto por Camicrua