‘Licorice Pizza’ e a década em que tudo era possível

A ode de PTA aos anos 1970 sob a lente de um realismo que flerta com o absurdo e fala sobre a vida de seres — e tempos — desajustados

Carolina C. Egashira
Araetá
8 min readMay 14, 2022

--

Por Carolina C. Egashira

Cena do filme 'Licorice Pizza', dirigido por Paul Thomas Anderson e distribuído pela Universal Pictures no Brasil

O ano é 1973. É um dia timidamente ensolarado em Encino, distrito situado no Vale de São Fernando, região ao noroeste do condado de Los Angeles. Gary Valentine (Cooper Hoffmann) está ansioso para tirar sua fotografia do anuário da escola, esperando por algo cuja natureza ele desconhece, inquietude altamente corrosiva, daquelas que só mesmo um adolescente de 15 anos pode sentir. De repente, uma presença numinosa revela-se ao menino e ao espectador: Alane Kane (Alana Haim) surge como uma divindade, e antes mesmo que ela interaja com o co-protagonista, torna-se óbvio que a vida de ambos estará mudada para sempre depois deste encontro.

'July Tree', de Nina Simone, e a luz dourada que incide sobre o ambiente definem a tônica da situação. Há um solene onirismo no ar, semelhante àquele presente em 'Embriagados de Amor' (2002). Valentine e Kane conversam pela primeira vez enquanto a mulher segura um espelho e oferece ao menino um pente para que ele se arrume. Se Valentine vê em Alana uma possibilidade de cruzar caminhos com o inesperado, a recíproca não é verdadeira. Para a co-protagonista, a interação com adolescentes não passa de uma sádica punição de seu trabalho como auxiliar de fotógrafo, parte constituinte de uma cotidiano desinteressante, composta por uma família de judeus ortodoxos e empregos nada promissores.

Ainda assim, seu ínfimo interesse pelas aventuras de Gary Valentine cresce gradualmente conforme ambos dividem um pouco sobre suas histórias pessoais — ou melhor, conforme Valentine fala sobre sua história, já que a jovem pouco tem a dizer sobre a sua letárgica rotina em Encino. Valentine é cativante e cordial, dotado de qualidades de um legítimo ator. Ele delibera sobre si próprio por três minutos completos, a fim de impressionar a sua recém-adquirida paixão platônica. Alana não se deslumbra com o que lhe é contado, ou pelo menos não se mostra de tal maneira. 'Eu não vou sair com você, você tem 12 anos de idade', é o que ela diz quando Gary lhe convida para sair. Em um impulsivo e contraditório ato, Alana decide encontrar Gary mais tarde naquele dia. Afinal, o que mais ela faria em um dia de semana qualquer?

A partir daí, uma complexa amizade nasce entre dois indivíduos separados pela idade, mas juntos pelo elo da solidão e da vontade de 'ser '— ser algo, seja lá o que esse breve verbo signifique em suas vidas. Algumas semanas depois de se conhecerem, Alana acompanha seu amigo até Nova Iorque para que ele compareça no programa televisivo dominical 'The Ed Sullivan Show', substituindo a mãe do menino, que quase nunca está presente devido seu trabalho como empresária de Valentine. Um novo mundo, recheado de elementos surpresa, se abrem para Kane.

Cansado de investir em sua carreira de ator-mirim, pouco frutífera nos dias da adolescência, o adolescente decide abrir um negócio de colchões d'água à la self-made man. Neste momento, é importante fazer uma inserção para dizer que embora essa empreitada soe descabida nos dias de hoje, colchões d'água encabeçaram uma indústria de mais de 2 bilhões de dólares nos Estados Unidos durante a década de 1980. A invenção patenteada por um homem chamado Charlie Hall foi um símbolo da efervescência da contracultura norte-americana. Vulgares, excêntricos e custosos, os colchões d'água marcaram toda uma geração de consumistas insaciáveis.

Alana, ainda que receosa, compra a ideia do pequeno empreendedor Gary Valentine e lhe ajuda a tocar a empresa. Valentine exala inteligência interpessoal, sempre fazendo novos contatos e fechando negócios. Alana é comedida e contrapõe com as elucubrações sonhadoras do menino, impondo limites quando necessário e fazendo adições importantes ao negócio. Desse modo, eles seguem em uma vida episódica, com dias que flertam com aventuras homéricas tamanha absurdidade.

É difícil enumerar os tópicos que Paul Thomas Anderson põe em diálogo quando entrega aos seus espectadores um filme como 'Licorice Pizza', mas nostalgia com certeza é uma delas. PTA, nascido no ano de 1970, cria do Vale de São Fernando, é saudoso de sua infância e de suas próprias vivências. O diretor discorre sobre não somente sobre um momento político-cultural — a era Nixon, o petróleo em crise, uma sociedade que convulsiona — , mas aponta também para suas memórias. Em uma entrevista concebida para a revista cinematográfica CinemaScope, presente na edição de abril de 2022, PTA comenta sobre o pessoalismo de seu roteiro: “A esse ponto, eu aprendi que se você colocar algo em um filme, vamos dizer, extremamente preciso e fiel a algo que aconteceu em sua vida, as pessoas irão responder'' (pág. 8). Anderson é relevante ao fazer tal constatação, pois parte de um pressuposto verdadeiramente imprescindível: a intimidade e a sensibilidade andam lado a lado nas artes, e elas devem coexistir. Pessoalmente, acredito que aquilo que não dialoga com o autor não poderá dialogar com mais ninguém; a verdade pessoal deve ser a bússola de qualquer pedaço de obra.

Alana Haim e Sean Penn em 'Licorice Pizza'

Muito se engana aqueles que dizem que essa história se trata de uma história romântica. De fato, em diversos momentos a linha entre o platônico e o concreto quase é ultrapassada, e latentes insinuações estão constantemente presentes — não é possível ignorar, por exemplo, que o clímax do longa tem fim tão depressa que Alana e Gary se beijam. Todo romance é impulsionado pelo amor, mas nem tudo aquilo impulsionado pelo amor é um romance. Tenho para mim, portanto, que tais insinuações são pinceladas que falam sobre um fenômeno muito maior que uma mera relação passional. O fértil sentimento existente entre Gary e Alana, de caráter fraternal, antes de tudo, aponta para os efeitos que certos encontros fazem surtir na vida de dois estranhos, e demonstra as maneiras nas quais relacionamentos podem servir de subterfúgio de tempos em tempos. Para Gary, Alana é como um respiro, uma ilha em meio ao caos de sua adolescência desconsertada, seu destino incerto e sua família fragilizada. Para Alana, Gary é símbolo de radicalização, de novas possibilidades e de novas tentativas, uma cisão com a obviedade, ainda que elas pareçam assustadoras, ainda que soe assustador tentar o novo quando sua vida adulta está estagnada há tanto tempo.

Em uma conversa com sua irmã Danielle (Danielle Haim), Alana verbaliza o grande ponto interrogação imperante desde o início do filme e admite que é estranho que ela passe tanto tempo com crianças tão mais novas que ela; claro, não é como se os protagonistas de Anderson carecessem de auto-consciência e estivessem alheios à atipicidade daquela amizade. Ao mesmo tempo, essa estranheza é justificada: é ali, entre pré-adolescentes e adolescentes, onde a jovem de 25 anos encontra um lugar seguro para demonstrar o seu verdadeiro ego, cercada por pessoas que pouco esperam algo dela, circunscrita em um espaço onde erros e acertos são aceitáveis. Alana procura o mesmo conforto em relações com homens mais velhos, que mais a vêem como uma mulher pin-up, e em trabalhos dignos de uma adulta, ao atuar como assistente de um candidato político (Benny Safdie), mas essas tentativas se mostram frustradas ao passo que há um embate interno constante entre a vida que Alana idealiza para si própria e as coisas como elas são. Em outras palavras, não há nada especialmente glamuroso sobre suas experiências, ou ao menos é assim que Alana as vê.

Gary, apesar de auto-consciente, também passa por cima de qualquer moral celibatária a fim de estar ao lado de Alana. Suas motivações iniciais são guiadas por um subtom psicossexual, mas logo essas intenções transmutam-se em algo muito mais singelo. Ele se apega à ideia de uma amizade duradoura, do tipo que te faz confrontar verdades basais e que dá sentido aos grandes gestos de amor. Há uma belíssima cena em que Alana, em estado de desespero, corre pelas ruas da cidade procurando Gary em postos policiais após ele ter sido detido injustamente ao confundirem-o com um assassino. É esse o grand gesture divisor de águas, potente a ponto de jogar luz sobre uma revelação não-tão–assim–reveladora: uma vez que você é atravessado por algo ou alguém, as marcas dessa experiência são indeléveis. O que acontece quando o indivíduo decide olhar para esses pequenos encontros e ali encontrar significados existenciais?

'Licorice Pizza' se debruça sobre o universal ao falar do tempo e as (im)probabilidades que ele guarda. Sua diegese é conduzida por afetos e anseios não-correspondidos, personagens frustrados e nunca satisfeitos. Ora, não estaria Paul Thomas Anderson falando, então, sobre o ser humano na sua forma mais objetiva? Sobre duas pessoas que desejam? PTA é um mero observador, com sua câmera inquieta, mas gentil. No meio desse fogo cruzado está o espectador, que perante à cacofonia californiana e manias andersonianas não consegue fazer nada se não ser tomado por paixões explosivas e inebriado por elas do início ao fim.

Alana Haim e Cooper Hoffmann em uma foto promocional do filme

Onde?

O longa pode ser alugado ou comprado nos serviços de streaming Apple TV, Google Play, Prime Video (somente aluguel), Youtube e Microsoft.

Quanto?

Aluguel, em todos os serviços de streaming supracitados: R$14,90

Compra: R$44,90 (Microsoft), R$54,90 (Google Play e Youtube) ou R$59,90 (Apple TV).

Quando?

'Licorice Pizza' foi originalmente lançado nos circuitos de cinema brasileiro em 22 de fevereiro de 2022. Atualmente, o filme só pode ser visto através de serviços de streaming, estando disponível nesses catálogos por tempo indeterminado.

Saiba mais!

'Licorice Pizza', assim como diversos filmes antigos de PTA, foi gravado com lentes anamórficas e em película de celuloide. Saiba um pouco mais sobre os aspectos técnicos do longa:

Quem é Rick Mack, o fotógrafo que serviu de inspiração para o figurinista do filme?

Trailer do filme:

Eu!

--

--