Nós (2019)

Por Leonardo Noboru Ogoshi de Lima

Leo Noboru Lima
Araetá
11 min readMar 28, 2019

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Da esquerda para a direita: Evan Alex, Winston Duke, Lupita Nyong’o e Shahadi Wright Joseph em “Nós” (2019) | Fonte: Universal Pictures

O que queremos de filmes de terror?

Queremos sentir medo? Queremos levar sustos? Queremos tão somente nos sentir desconfortáveis, ou perturbados, ou mal? Qualquer que seja o sentimento, queremos ter que pensar para chegar até ele? Queremos senti-lo apenas no momento, ou queremos que dure? Se durar, queremos que seja um sentimento terapêutico, estabilizante, que nos dê perspectiva e nos torne pessoas melhores e mais saudáveis, ou não — o terror é realmente catártico, é realmente terror, se não nos rebaixar? Queremos enfrentar nossos medos, ou ser esmagados por eles? Queremos sair do cinema mais confiantes na segurança relativa do nosso mundo, ou com mais medo dele?

Nós voltamos de novo e de novo a essas perguntas porque o terror nunca nos abandona; no beco sem saída de ceticismo cartesiano absoluto sobre arte e literatura em que nos enfiamos, ele permanece aquele gênero especial que ainda promete tocar em algo puro, primitivo, dentro de nós. Nem sabemos direito o que é esse algo (decerto não é nada tão simples quanto “medo”; qualquer fã de terror vai te dizer que só sentiu medo de verdade com umas poucas obras midiáticas na vida). Mas sabemos que ele está lá, e assim assistimos filmes de terror — com nossos cérebros, esperando que eles atravessem e atinjam nossas almas.

Anya Taylor-Joy em “A Bruxa” (2015), raríssimo exemplo de terror moderno bem-quisto por público e crítica | Fonte: A24

Para a maioria dos cineastas, fazer filmes de terror constitui, portanto, uma luta incansável contra os reflexos intelectuais do espectador. Desviando-se de suas expectativas herdadas, evitando-se sons e imagens que ele já viu/ouviu antes, preservando-se sua suspensão da descrença para que ele mantenha a guarda baixa, talvez se consiga, com criatividade suficiente e a técnica certa, lhe acertar um soco no estômago. Talvez dois. Talvez dez — alguns cineastas são mais ágeis que outros. Mas até os melhores têm dificuldade em nossa era do conteúdo infinito, em que a quantidade ilimitada de objetos culturais disponíveis e a necessária fugacidade de seu consumo convergem para um paradoxo apavorante, um poço sem fundo: nunca foi tão esperado do terror que ele fosse “visceral”, imediato, um gancho de direita perfeito, e nunca esse tipo de imediatismo trans-racional foi tão difícil de cumprir. Vez por outra aparece algo como A Bruxa (2015), que alcança imediatismo e conquista o público fazendo algo completamente fora do familiar, mas, à parte as exceções, o fã casual de terror nos anos 2010 se encontra entre a cruz e a espada; temos o “terror elevado” de obras como O Babadook (2014) e Ao Cair da Noite (2017), que caem nas graças da crítica com seu Drama Sério em roupagem de terror e são prontamente rejeitadas pelo público, e as séries de passatempos insossos de franquias hollywoodianas como Invocação do Mal e Uma Noite de Crime, que lucram o suficiente e então evaporam como se jamais existentes.

Jordan Peele, diretor de “Nós”, em cena de “Key and Peele” (2012–2015) | Fonte: Comedy Central

Entra Jordan Peele. Um perito no outro gênero que perenemente esperamos ser capaz de transcender nossas ansiedades pós-modernas — o humor — , ele fez seu nome conferindo apelo mainstream a um tipo de comédia esquisito, acadêmico e altamente político que outrora faria executivos de canais de TV afrouxarem o colarinho. O seu sucesso é improvável, mas inegável; Key and Peele, sua aclamadíssima série de esquetes em colaboração com o parceiro Keegan-Michael Key, encerrou-se em 2015 — séculos atrás em anos de internet — e continua até hoje a render incontáveis GIFs e clipes pelas redes sociais afora. A incursão subsequente de Peele na direção de filmes autorais de terror — primeiro com a sensação Corra! (2017), que lhe rendeu um Oscar de roteiro, e agora com Nós — causou certo choque originalmente, mas, em retrospecto, faz total sentido; ele não fez mais do que pular de um manancial congelado para outro.

Agora, tendo emplacado dois filmes de gênero de sucesso sem precedentes, Peele já contabiliza bem mais comparações com Hitchcock do que seria saudável para a psique de alguém, mas essas comparações são largamente infundadas — Hitchcock era um cineasta “visceral”, o avô de todos os filmes de susto, e o cinema de Peele, assim como sua comédia, não é “visceral”, pelo menos não primariamente. Onde mesmo diretores de terror “respeitáveis” como David Robert Mitchell (Corrente do Mal) e Jennifer Kent (O Babadook) se apoiam em esquemas clássicos de tensão/choque que apelam para além do intelecto, Peele está interessado em causar medo não apesar da nossa atividade cerebral, mas por meio dela.

“Nós” (2019) | Fonte: Universal Pictures

Consideremos a própria premissa de Nós: mãe (Lupita Nyong’o, finalmente em seu primeiro papel principal no cinema e arrasando), pai (Winston Duke, revelação de Pantera Negra) e dois filhos (Shahadi Wright Joseph e Evan Alex) têm suas férias na praia interrompidas pela chegada de cópias suas, iguais a eles em força e inteligência, vindas sabe-se lá de onde, munidas de tesouras gigantes e decididas a matá-los. Uma das maneiras pelas quais nos distanciamos de filmes de terror e filtramos seu apelo primitivo é através da análise do comportamento dos personagens; se eles fizerem qualquer coisa que consideremos “idiota”, podemos dizer a nós mesmos que jamais passaríamos por nada parecido, e que o que estamos vendo não é, portanto, assustador. A maioria dos filmes de terror modernos, informados por esse padrão de resposta do público, coloca os personagens para seguir protocolos estritos de sobrevivência, pretendendo assim se livrar de acusações de “idiotice” dos personagens. Na contramão, Nós enfatiza o comportamento errático da família, cuidadosamente desfazendo, de maneiras plausíveis mas não menos frustrantes, seus esforços para se manter unidos e seguros: o filho caminha para trás até um canto isolado, a filha pisa fundo no acelerador em uma tentativa vã de matar um dos perseguidores, a mãe impulsivamente corre sozinha para dentro de casa para pegar a chave do carro.

Por que dar margem para o desdém do público desse jeito? O que ocorre é que Nós não é apenas uma história de sobrevivência. É uma história de família, e não o tipo de história de família pesadona, freudiana, que a premissa poderia convidar — mamãe ama seus filhos, mamãe e papai se dão bem, e o bando todo é até que bastante funcional no geral. A análise é encorajada porque o terror está na análise: colocando-se no lugar da família, percebe-se logo que eles estão se saindo tão bem quanto poderiam. Eles não são as Sombras (nome que os duplos dão a si mesmos); eles não passaram anos treinando metodicamente para aquela situação e desenvolvendo sistemas altamente eficientes de comunicação. E, quer saber?, indaga o filme: A sua família também não. Mesmo entre aqueles que se amam mais que tudo, a comunicação humana é desesperadamente frágil, desesperadamente limitada, e é impossível se orientar 100% para as necessidades dos outros o tempo todo. Os Wilsons não são nosso reflexo distorcido como os torturadíssimos Grahams de Hereditário (2018). Eles são simplesmente nós. Aí é que está.

Lupita Nyong’o e Lupita Nyong’o em “Nós” (2019) | Fonte: Universal Pictures

Esse é apenas um entre vários exemplos de como Peele manipula o discurso cultural ao seu redor — ele praticamente te desafia a abrir o Twitter ao final do filme e postar “Eu NUNCA faria aquilo que a Lupita fez naquela cena”. Estamos falando de um artista estarrecedoramente consciente de como as pessoas reagirão ao seu trabalho, mais ainda agora que mil artigos e análises foram escritos sobre Corra!. É isso que lhe permite, mesmo enquanto pleiteia um tipo de horror “subcutâneo”, de efeito retardado, mais comum no terror indie, imprimir apelo de massa suficiente a seus filmes para atingir um público maior do que praticamente qualquer outro “diretor visionário” em atividade em qualquer gênero. Seu estilo é imbuído de uma espécie de objetividade formal pseudo-hollywoodiana; ele parece nos acomodar com o lustro agradável e televisivo de um megafilme de ação para que permaneçamos tolerantes ao vê-lo esmigalhar esse lustro entre os dedos com sua dramaturgia intricada, suas referências em cascata, suas paisagens morais melancólicas. Com efeito, Nós é o segundo filme de Peele que deve tanto às convenções do cinema de ação quanto à lista de referências do terror clássico que ele deu a Nyong’o em preparação para a filmagem: por maior que a conspiração das Sombras se revele, o esforço da família para sobreviver permanece terreno, linear e repleto de alívio cômico, assim como o pesadelo white liberal de Corra! foi delimitado e tornado palatável pela tarefa imediata que o protagonista tinha de sair dali. Em ambos os filmes, Peele evita o decréscimo de rendimentos típico do longa-metragem de terror apostando em narrativas empolgantes, nas quais arrepios sutis prevalecem sobre o pânico total até, dramaticamente, não prevalecerem mais. (Pela segunda vez, há um lado negativo: os violinos feios e barulhos agudos da trilha sonora de Michael Abels me pareceram, ainda que menos do que em Corra!, desnecessariamente instrucionais.)

Daniel Kaluuya em “Corra!” (2017) | Fonte: Universal Pictures

Mas, para ser claro, Nós não é Corra! — e, mais uma vez, Peele se diverte com nossas expectativas errôneas. Não lhe escapa o fato de que, ao centralizar a experiência negra, mesmo que com a intenção primária de simplesmente dar uma variada na representatividade (função que o filme cumpre com maestria, dando seguimento à visão radical de Corra! do branco americano como um Outro bizarro e perigoso), ele está fadando Nós! a ser visto como um “filme negro” e a inspirar leituras raciais/de classe. Peele constrói, pois, o que se pode facilmente entender como uma metáfora fofa e limpa para tensões de classe entre negros americanos (tema relevante em tempos de Kamala Harris), ou para o histórico imperialista dos EUA (tema sempre relevante, mais ainda em tempos de Moçambique, Venezuela, etc.) — e então puxa o tapete de qualquer uma das duas interpretações, entregando uma perturbadora reviravolta final que borra completamente a “crítica social”.

Essa comparativa espinhosidade também ajuda a explicar por que, em última análise, Nós não é tão bem-sucedido como filme de terror blockbuster quanto Corra!. Dessa vez, a tese de Peele, na medida em que há uma, não é uma destilação focada e oportuna de um problema social específico que ele pode entrelaçar perfeitamente com a experiência, atrelando observações satíricas satisfatórias a cada novo pico de adrenalina. Em lugar disso, suas escolhas, tanto narrativas — a família de classe média sacudida; os vizinhos amigáveis mas nem tanto; a tensão entre individualismo e coletivismo; a protagonista à espera de um acerto de contas; várias outras coisas que não vou revelar para não dar spoilers — quanto estéticas — purgatórios semelhantes a shoppings abandonados; tesouras de ouro reluzente; macacões tétricos que lembram uniformes de prisão; vermelho, branco e azul como cores apocalípticas; o próprio título em inglês, que pode significar tanto “nós” quanto “EUA” — sugerem um escopo temático bem mais amplo: é um país inteiro que está na mira. E Peele tem tanto a dizer sobre esse país que suas ideias transbordam, subtexto sufocando o texto como pessoas do esgoto se erguendo de suas masmorras subterrâneas. Não é coincidência que o monólogo expositivo no clímax, estruturalmente idêntico ao de Corra!, pareça tão mais deselegante aqui: sendo o fio do roteiro a que ele se refere apenas um entre tantos, o momento não é satisfatório e seu didatismo não se justifica. O crítico americano K. Austin Collins, um dos maiores da atualidade, não errou ao pedir que “não pensemos demais” sobre Nós. Pensar sobre Nós, de seu texto de abertura até seu final enganador, é escorregar para dentro de uma espiral descendente, que termina conosco saindo do cinema não tanto com medo das Sombras quanto obcecados por entendê-las.

E no entanto, por mais que fracasse em oferecer o tipo de catarse coletiva que Corra! concebeu para Estados Unidos famintos, eu acho que Nós pode se provar ainda mais resistente ao tempo. É um filme profundamente desolado, sem qualquer interesse em catarse para seus temas políticos ou para suas emoções universais aterrorizantes. É frustrante por definição, e mais desagradável quanto mais se pensa a seu respeito. Mas também é a prova do mérito de Jordan Peele como uma nova voz imprescindível, capaz de prender a atenção com cada escolha sua; não estou exagerando quando digo que Nós proporciona mais imagens indeléveis (a minha favorita é o plano de uma praia quieta, pontilhada de cadáveres, cortada por uma fileira enorme de pessoas de mãos dadas) e sequências memoráveis (incluindo uma utilização inacreditável de “Fuck tha Police” do N.W.A.) do que a maioria dos diretores pode esperar elaborar em suas carreiras inteiras. Há momentos aqui, avidamente impulsionados pelo orçamento vultoso de US$ 20 milhões, que parecem destinados a ser tão icônicos quanto qualquer coisa em Corra!; é patente o quão bem Jordan Peele conhece e entende as sensibilidades do terror pop. A grande contradição de Nós está em como ele apela magistralmente para essas sensibilidades enquanto oferece uma resposta alienante para o “poço sem fundo” que elas escondem: quer morrer de medo? Leia Bradbury. Pense mais. Assista de novo. Daí veremos, talvez. Ou talvez você desista.

Lupita Nyong’o e Jordan Peele no set de “Nós” (2019) | Fonte: Universal Pictures

É uma aposta ridiculamente audaz — e o fato de estar valendo a pena, de Nós já ter arrecadado somas históricas (US$ 71 milhões em sua estreia nos EUA, a maior quantia para um filme de terror original) e tomado de assalto a cultura pop, sugere outra coisa: o tanto que Peele entende seu público é o tanto de fé que tem nele. Seu cinema é revigorante, no fim das contas, porque não sacrifica sua riqueza e seu intelectualismo; simplesmente sabe jogar para a galera.

Nesse sentido, talvez Peele realmente possua o talento de showman nato de um “novo Hithcock”. E em Nós, munido dos recursos para fazer uma declaração grandiosa sobre o que pretende fazer com esse talento raro, ele toma as rédeas de sua narrativa: eis aqui o filme nº 2 que ele queria fazer, em vez do que se esperava que ele fizesse enquanto mestre do terror ou reizinho problematizador sensato ou futuro do cinema americano. O que queremos de filmes de terror? Como todo gênio, o autor de Nós torna simples uma questão impossível — queremos o que quer que Jordan Peele esteja servindo.

Nós — Trailer oficial | Fonte: Universal Pictures Brasil

Título original: Us
Ano: 2019
Duração: 116 minutos

Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex
País: EUA

Lançamento no Brasil: 21 de março de 2019
Classificação indicativa: 16 anos
Onde assistir: Cinemas de todo o Brasil (eu assisti no Cinemark Pátio Higienópolis, em 22 de março)
Quanto: RS$ 18,50 (meia) e RS$ 37,00 (inteira) (valores referentes ao Cinemark Pátio Higienópolis, na Av. Higienópolis, 618)

euzinho

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