No fundo do poço?

Franccarmello
Araetá
Published in
3 min readMay 3, 2020

O Poço, ou El Hoyo, de Galder Gaztelu-Urruti, é uma obra distópica sobre um programa de recondicionamento humano que acaba por cair em contradição, onde existe um poço com vários andares e uma plataforma de comida que desce a cada andar, mas os de cima se aproveitam enquanto não são transferidos, e os de baixo vão em direção à barbarie para garantir sua sobrevivência. O filme conta a história de Goreng, que entra no programa para parar de fumar, ler um livro e ganhar seu certificado, mas acaba por se tornar um mártir quando aceita a missão de tentar consertar o lugar.

O diretor utiliza de diversos artifícios para moldar a nossa experiência durante o filme, primeiramente com o próprio cenário, que aparenta ser não mais do que uma caixa de concreto, e seu absoluto silêncio, sem saída aparente a não ser pelo buraco sem fundo que se localiza no centro de cada andar, além disso, com as luzes que começam com um branco frio, levemente azulado, e progride cada vez mais para um azul cada vez mais denso e claustrofóbico, o que só se alterna com um vermelho absoluto, que acompanha as cenas mais fortes da obra.

Outra característica que permeia a obra é o inevitável sentimento de impotência que suprime os personagens, principalmente em relação à “ascensão social” que parece tão perto, com a possibilidade de se ver os níveis acima, mas ao mesmo tempo impossível, uma agonia constante. Essa mesma característica é o que acaba por levar ao ciclo vicioso que define essa distopia, como os participantes são dominados pelo acaso da movimentação aleatória mensal, acabam por priorizar a sua individualidade ao máximo, ignorando as demais, de camadas a baixo, e prezando por sua sobrevivência acima de tudo, caindo em um estado de natureza que é exatamente o contrário da proposta inicial do programa.

Com isso o filme mostra também a face dura e cruel da desigualdade, mostra para nós, que como as pessoas do filme acabamos ignorando os que estão abaixo de nós, a realidade da miséria, do desespero, do abandono à própria sorte, o que isso pode levar as pessoas a fazer, mostra o como as pessoas desistem da própria humanidade em troca da sobrevivência.

O filme também fala um pouco sobre o embate ideológico e o como isso pode afetar o mundo que vivemos, quando Goreng pergunta o porquê não podem dividir e Trimagasi o pergunta se ele é comunista e diz que os outros não ouviram comunistas, mas depois durante a “revolução” de Goreng existe uma ressalva em relação à revolta armada, defendendo que não se deve perder a humanidade pelos nossos ideais, sendo a violência um último recurso.

O final do filme nos traz uma discussão muito interessante também, onde durante todo o decorrer do último ato do filme existe a construção de um plano para que a Administração tome consciência do que acontece no prédio, onde Goreng e Baharat se sacrificam para garantir a comunicação dessa “mensagem”, porém não temos uma conclusão de se aquilo fez alguma diferença ou se foi em vão, o que pode se traduzir em uma mensagem muito interessante, de que não devemos lutar pelo melhor com garantia, mas sim pelo simples ato de se fazer o que é certo.

Concluindo, o filme é muito bem construído, abrange várias discussões que são pertinentes não somente ao seu subgênero, mas principalmente à nossa realidade atual e diária, com sua principal discussão pertinente à desigualdade consequente do sistema que nós vivemos, o descaso como nós o tratamos, e o como as nossas desculpas acabam não só por deixar o problema se desenvolver, mas também agravá-lo, levando-nos aum buraco que nós mesmos estamos cavando, além da discussão de o que a miséria e a desigualdade faz com as pessoas, o que pode nos mostrar um outro olham perante alguns crimes, de que não são provenientes de uma maldade interior ou uma simples falta de civilização , mas sim que são consequência de como tratamos essas parcelas da população, e de como nós as deixamos em situações em que essas pessoas podem não ver outra saída.

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