O lago do Ganso Selvagem

Arthur de Souza Assumpção

Arthur Assumpção
Araetá
4 min readJun 7, 2020

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A luz é o principal destaque do cinema noir, antes mesmo do próprio suspense investigativo que marca tal subgênero, o chiaroscuro dos planos destes filmes é uma das características mais marcantes da história do cinema. Tal iluminação forma o cenário para os personagens de caráter dúbio, cuja moral corrompida motiva tramas de suspense, crime, cobiça etc.

Estas obras surgiram na transição para o cinema falado e, tratados como filmes B pelos grandes estúdios, puderam explorar temas controversos que os produtores tradicionais não aceitavam, tendo seu auge na década de 40. Então, nos anos 60 este subgênero passa a ser revisitado com certas alterações formais para explorar o novo contexto de seus temas, além das novas possibilidades técnicas de produção, cuja cor passou a ser explorada pelos cineastas, mantendo o destaque para uma iluminação que não mais era exclusivamente preto e branca como antes. Se o noir teve nas décadas de 30 e 40 sua concentração nos Estados Unidos, estabelecendo clássicos como “À Beira do Abismo” (1946, Hawks), “No Silêncio da Noite” (1950, Ray) e “Relíquia Macabra” (1941, Huston), o neo noir dos anos 60, tem obras marcantes fora do país norte-americano, como “A Marca do Assassino” (1963, Suzuki), “O Samurai” (1967, Melville) e Redenção (1959, Pires).

Still do filme “O Homem dos Olhos Esbugalhados” (1940), Dir. Boris Ingster

Estas histórias de crime e investigação continuam sendo abordadas em filmes como O Perigoso Adeus (1973, Altman), Cidade Oculta (1986, Botelho), Vício Frenético (1992, Ferrara) e Carvão Negro, Gelo Fino (2014, Yi’nan Diao), todos estes se destacam pelo uso de luz, sombra e cores. O cineasta chinês lançou em 2019 mais uma obra do gênero: O Lago do Ganso Selvagem.

O cineasta chinês Yi’nan Diao já mostrou em seu filme anterior muito apreço pelo uso da cor nos planos, o que é flagrante em seu filme de 2019, cuja narrativa envolve um criminoso em fuga após matar um policial, o que inevitavelmente faz com que a instituição inteira não meça esforços para encontrá-lo, este, sabendo da iminência de sua prisão, quer que sua mulher faça a denúncia a fim de que esta fique com a recompensa, e depende de Liu, membra de sua gangue, para fazer isto acontecer. Esta trama permite que o diretor faça ótimas sequências de ação, como a perseguição das motos no começo do filme, do tiroteio na feira e a cena do guarda-chuva (a mais memorável do filme), cuja briga precede mais uma fuga do protagonista, que, muito bem filmada, inunda a tela sensorialmente.

Still do filme “O Lago do Ganso Selvagem” (2019), Dir. Yi’nan Diao

Não é à toa que o filme explora tão bem as convenções do cinema noir, e sua adaptação ao contexto da narrativa permite que ele se aprofunde em seus temas. O caos dessa urbana disputa entre gangues e polícia é muito bem interrompido pelos momentos de calmaria do filme, quando os personagens tentam resolver seus conflitos “falando baixo”, cuja atmosfera deixa bem claro como o poder da instituição policial está fechando o cerco à estes criminosos, e, apesar da presença de um policial-chefe em destaque, este não segue uma lógica bogartiana do detetive em investigação solitária e individual, ele lidera o poder coercitivo que faz de tudo para encontrar o procurado, o que, inevitavelmente, parece um apontamento político do filme.

O preto e branco, do noir clássico, era cenário para questões de sua época, este suspense que é tradicionalmente transmitido pelo chiaroscuro é adaptado na estimulante estética neon do filme chinês, cuja atmosfera parece fazer seus personagens reféns do meio em que estão, enquadrando-os por muitas vezes em espaços fechados de iluminação oblíqua de sombra opressiva, o que é coerente ao caráter dúbio dos personagens que em momento algum são apresentados com maniqueísmo, além de serem suspeitos entre si e para o espectador, o que é realçado pelo contraste cores e luz.

Sobretudo, o diretor sabe controlar muito bem a atmosfera do filme, fazendo dele extremamente coerente aos seus temas, e proporcionando relações profundas aos seus personagens, cujas motivações são colocadas em suspensão por muitas vezes, mantendo a ambiguidade destes e cercando suas interações de intenções suspeitas, o que aumenta o peso das ações, reações e consequências das ações dramáticas.

O filme é um destaque dentro das revisões ao gênero noir, e seu uso de luz e cor definitivamente impressiona quem o assiste, está disponível no serviço de streaming Mubi, cuja mensalidade custa R$ 27,90.

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