O poder de ‘Wolfwalkers’
Mergulhando na alma da audiência: como a animação foi capaz de maravilhar seus espectadores
Por Helena Figueiredo Ferrão
“Wolfwalkers” é o mais recente filme de animação do estúdio irlandês Cartoon Saloon, lançado oficialmente em outubro de 2020. Com 1h e 43 minutos de duração, é baseada na técnica de animação manual (hand-drawn) e 2D, a obra é a terceira parte da “Trilogia Folclórica Irlandesa” do estúdio, e o diretor Tomm Moore não poupou esforços para tornar esse filme mais uma jóia de sua carreira.
O longa-metragem se passa em 1650 (Irlanda sob domínio da Inglaterra), e segue a história da menina inglesa Robyn, que se muda para a Irlanda com seu pai a fim de acompanhá-lo em seu trabalho de caçador de lobos. A nova vida dos dois, porém, é marcada por regras e ordens que devem cumprir, sempre submissos ao Lorde Protetor (baseado na figura de Oliver Cromwell).
A menina logo conhece uma garota Wolfwalker (figura mitológica celta-cristã) — Mebh — que pode se transformar em lobo enquanto dorme, e que vive livre na floresta com uma matilha de lobos e com sua mãe — que ainda não acordou em seu corpo humano desde a última vez que se transformou. As duas se tornam amigas depois de Mebh morder Robyn acidentalmente, e transformá-la naquilo que seu pai deve matar.
Então, Robyn se vê em uma encruzilhada tentando encontrar a mãe de Mebh para ajudar os lobos e mandá-los para longe, ao mesmo temo que luta para não ser separada de seu pai caso não se submetam aos comandos do Lorde. Em um constante conflito entre floresta e cidade, liberdade e aprisionamento, o filme é muito mais complexo do que eu esperava que seria, tanto em questões visuais e técnicas, quanto principalmente no que diz respeito ao roteiro.
Essa complexidade não é uma coisa ruim. Pelo contrário, as várias facetas da história atribuem ao filme e à narrativa uma enorme profundidade, e nos fazem extremamente empáticos com os personagens e o que estão enfrentando- seja Robyn, com sua liberdade cada vez mais limitada e sua alegria infantil cada vez mais distante, forçada a trabalhar e não dormir para não virar lobo e não ser separada de seu pai; seja o senhor Goodfelowe, pai de Robyn, que só quer fazer seu trabalho e se vê forçado a ser humilhado e submisso para garantir a segurança e felicidade da filha que tanto ama, sem saber que na verdade a está matando; seja Mebh, que é só uma criancinha, um filhote indefeso, que quer sua mãe de volta e é obrigada a testemunhar como as pessoas da cidade tratam todos de sua espécie como monstros, que devem ser aprisionados e mortos em nome do medo irracional.
Isso tudo é complementado com os visuais e a estética genial do filme, em que tudo na floresta com os lobos é mais fluido, mostrando traços de lápis e cores de aquarela, que se misturam lindamente para dar mais fluidez ao ambiente e aos personagens, além da perspectiva com profundidade que nos insere no filme, como se pudéssemos sentir o cheiro das folhas e o chão lamacento, a chuva no rosto e o vento entre as folhas. Na cidade, tudo muda — a lineart dos personagens e casas e construções é muito mais rígido e sólido, a própria perspectiva se torna isométrica e plana/chapada, baseada nas tapeçarias medievais para passar uma sensação de maior rigorosidade, de jaula.
O traço dos personagens e dos ambientes também muda conforme a emoção transmitida pela cena- quando Robyn briga com o pai, ou quando há perigo, medo, ou raiva iminentes, as sombras na parede se tornam mais visíveis, e com traços mais fortes e bagunçados, que se movem de um modo quase feroz e ameaçador. Há uma cena genial, em que Robyn se sente mais aprisionada do que nunca, e as bordas da tela vão se fechando com traços escuros que se opõem sobre a nossa visão, limitando o espaço que nos é mostrado, passando um sentimento claustrofóbico e desesperado.
Até no design dos personagens esse contraste entre curvas livres e linhas angulosas (e semelhantes a gaiolas) se faz presente- é só comparar o design de Mebh com o do Lorde Protetor — a primeira é uma grande forma circular, leve e fluída, o segundo é composto por linhas grossas e angulosas, rígidas, tanto nos detalhes quanto em sua forma inteira.
A trilha sonora é outro ponto extremamente poderoso da obra, que se encaixa perfeitamente com os visuais e com a cena que está sendo apresentada para o espectador. Com o uso de melodias e instrumentos tradicionais irlandeses, eu diria que o foco nos instrumentos de corda- violinos e violoncelos- tornou essa a trilha sonora mais triste e melancólica da trilogia irlandesa do Cartoon Saloon, e também a minha preferida.
As melodias ora são determinadas e fortes, com tambores e vozes; ora são pura alegria, com mais flauta, fiddle e violão; ora marcadas pela tragédia e melancolia profundas e marcantes, com a presença da melodia tema do longa: um conjunto de acordes que se faz extremamente marcante a partir da primeira vez que são ouvidas, e que aparecem em cenas sublimes e em cenas devastadoras. Assim que o violino começa, sutil, e a animação acompanha, é impossível não sentir seu coração se rasgar, seja por uma emoção positiva ou negativa. Eu poderia ouvir esses 45 minutos de trilha sonora todo dia.
Enfim, “Wolfwalkers” é um filme maravilhoso e profundo, que superou minhas expectativas — que já estavam altas desde que vi o trailer conceitual lançado há três anos. É marcante não só pela animação e estética extremamente louváveis e dignas de prêmios, mas também pela trilha sonora emotiva que te agarra na alma, e o enredo, que não recebe a atenção que merece nas críticas que vi até agora e é tão maravilhoso e tanto uma obra de arte quanto a animação e a arte em si.
Assista!
Esse longa-metragem está disponível na plataforma de streaming Apple TV +, que custa R$9.90 mensalmente. Assim, é possível assistir a qualquer hora contanto que tenha uma inscrição.
Eu recomendo muito esse filme, e se quiser saber mais aqui estão alguns links interessantes:
Texto do Medium, em inglês, feito por Maidagan, storyboarder do filme, sobre sua experiência trabalhando para o Cartoon Saloon: