“Pérolas no mar”: a vida não é como um musical

“Exatamente como disse Tolstói. A felicidade é uma alegoria, a infelicidade uma história.” (Haruki Murakami)

Letícia Ohfugi
Araetá
5 min readMay 14, 2020

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Por Letícia Ohfugi

Dois jovens sonhadores em busca de alcançar seus objetivos se conhecem, se apaixonam e decidem viver uma vida juntos. Porém, algo maior que eles próprios interfere e os dois se separam definitivamente. Anos depois, eles se reencontram por uma última vez.

A descrição acima poderia encaixar-se facilmente com La La Land, musical hollywoodiano escrito e dirigido por Damien Chazelle em 2016, ganhador de seis Oscars e um dos filmes mais premiados da temporada de premiações norte-americanas no ano seguinte. Entretanto, a pequena sinopse se refere a Pérolas no Mar (título original: 后来的我们), filme chinês dirigido pela cantora e atriz René Liu, lançado em abril de 2018 nos cinemas chineses e disponibilizado pela Netflix a partir de junho do mesmo ano.

À primeira vista, são duas histórias semelhantes; a descrição feita anteriormente se encaixaria em ambas as obras, com algumas pequenas ressalvas em relação à história chinesa. Entretanto, ao assisti-las, existem grandes diferenças entre os dois filmes: a construção das narrativas, o tom e ritmo escolhidos, as escolhas fotográficas. Um olhar mais atento permite que se perceba as particularidades presentes em Pérolas do Mar.

A estreia de René Liu na direção de um longa-metragem cinematográfico é baseado livremente na história Home for Chinese New Year: A Story Told in English and Chinese (livro sem tradução para português), e apresenta ao espectador dois personagens: Lin Jianqing (Jing Boran) e Fang Xiaoxiao (Zhou Dongyu). O filme se passa em dois tempos diferentes: o primeiro, colorido e pulsante, retrata como Jianqing e XiaoXiao se conheceram e vieram a se apaixonar; o segundo, em preto e branco, mostra o amargo reencontro dos dois após dez anos desde seu primeiro contato. No decorrer de seus 119 minutos, a história vai se alternando entre os dois momentos e aos poucos reconstrói a jornada do casal.

XiaoXiao e Jianqing se encontram pela primeira vez

A escolha de retratar o passado como colorido e o presente como preto e branco é arriscada, mas ao mesmo tempo essencial para a construção da narrativa. A proposta é justamente um olhar melancólico sobre a história do casal, enxergando em tempos antigos uma felicidade que já não existe mais. O tempo presente teria, literalmente, perdido suas cores e brilho, em razão do distanciamento e do fim doloroso do relacionamento entre XiaoXiao e Jianqing.

Grande mérito do longa está na construção da relação entre os dois personagens. Liu se utiliza de cada segundo em tela para construir um afeto quase palpável entre eles; à medida que o filme vai se desenvolvendo, o relacionamento do casal vai ganhando mais camadas, e surge entre eles uma cumplicidade não limitada a ser apenas romântica. XiaoXiao cria um verdadeiro afeto pela família de Jianqing, em especial o pai do personagem, que durante a história exerce um papel fundamental na compreensão de quem XiaoXiao e Jianqing eram no passado. Assim, a fim de criar um relacionamento crível e cativante, a direção opta por uma construção aparentemente lenta da história, mas que é importante para criar carinho por duas personagens tão profundas e apaixonadas.

Jianqing e XiaoXiao se reencontrando dez anos depois de se conhecerem

Com o decorrer do filme, fica claro que as duas personagens que movem a história são complexas. Elas cometem erros, ficam confusas sobre os próprios sentimentos e, principalmente, tomam decisões das quais se arrependem no futuro. Jianqing e XiaoXiao conquistam o espectador através da naturalidade com a qual eles agem e se relacionam.

O sentimento que fica ao final do filme, definindo da maneira mais simplista possível, é o de tristeza. A tristeza de saber que Jianqing e XiaoXiao poderiam ter sido muito mais do que foram; poderiam ter se casado, encontrado uma casa bonita para morar e arranjado empregos formais. A tristeza de saber que uma relação tão bonita, tão profunda e tão cheia de vida se tornou uma mera lembrança, e todos os impactos que eles já tiveram na vida um do outro se esvaíram ao longo do tempo, assim como as cores que existiram um dia entre eles. O filme de René Liu entende, mais do que qualquer outro, a dor de uma separação causada não pela simplista situação causa-efeito, mas sim porque os dois estavam em tempos da vida diferentes, reagindo ao mundo ao redor deles de maneira diferente.

Assim, é possível ver com facilidade a diferença entre o filme de Liu e o musical estadunidense de Chazelle. Pérolas no Mar é um filme realista e doloroso, cuja preocupação não está em explicar o fim de um relacionamento porque coisas melhores iriam acontecer depois dali. O infortúnio do relacionamento de XiaoXiao e Jianqing não é obra do acaso, do destino, e não resultou em melhoras de vida para os dois personagens; eles acabam se tornando extremamente infelizes e insatisfeitos com a vida que levam separados. O tempo desgastou duas almas tão pulsantes e tudo o que restou diante do espectador são duas pessoas que um dia já se amaram muito.

No final das contas, Pérolas no Mar é sobre ser jovem, sonhador e apaixonado num mundo tão cruel e pautado pelo dinheiro; a busca por “ser alguém na vida” assombra os personagens durante cada minuto do filme. Nesse mundo proposto por Liu, a consequência disso tudo não é acompanhada por uma melancólica canção de jazz ou por uma explosão de cores. É uma realidade preto e branco, dolorosa e cruel. No fim, a vida não é como um musical.

Pôster da estreia chinesa do filme

Pérolas no Mar (后来的我们)

Ano de Lançamento: 2018

Disponível na Netflix

Direção: René Liu

Elenco: Jing Boran, Zhou Dongyu, Tian Zhuangzhuang.

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