“Sob o Sol de Satã”: como era um vencedor da Palma de Ouro nos anos 80
Filme francês ganhou o prêmio máximo do Festival de Cannes em 1987 e nos revela um tanto de coisas sobre filmes e festivais
Por Luiz Afonso Morêda
“Sob o Sol de Satã”, dirigido por Maurice Pialat, é uma adaptação do livro homônimo escrito por George Bernanos em 1926, e conta a história de um padre (Gerard Depardieu) atormentado buscando o sentido de sua existência no interior da França. Após uma jovem (Sandrine Bonnaire) assassinar um de seus amantes, o protagonista se vê obrigado a encontrar a salvação para a alma da moça.
O filme, ainda que sob vaias, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1987, a única vez que o diretor, sempre marginal entre o grande público e a grande crítica, ganhou tal honraria — reza a lenda que, ao subir no palco para receber o prêmio, Pialat, ouvindo a resposta do público, teria respondido “eu também não gosto de vocês”.
A obra configura uma segunda fase na carreira do cineasta, pois, se até “Loulou” (1980) Pialat trabalhava com um tipo de encenação fluida, uma que lidava com uma certa ingenuidade ao filmar o mundo, com um estilo que se deixava moldar perante às pulsões daquela realidade filmada, a partir de “Aos Nossos Amores” (1983) e “Polícia” (1986) tal dinâmica começa a ceder espaço para um rigor formal maior.
Dessa forma, o que vemos em “Sob o Sol de Satã” não é mais aquela câmera descompromissada de outrora, mas antes cenas muito bem pensadas, iluminações barrocas de tão controladas e enfatizadas, em suma, uma encenação austera. Até que ponto isso se configura como uma inflexão na obra do cineasta, isto é, se esses traços já estavam de alguma forma presentes em seus filmes anteriores e só nos anos 80 vão predominar, ou se realmente eles começam a surgir apenas nessas obras tardias, é algo a se pensar com um pouco mais de atenção.
De qualquer modo, apesar de certas diferenças, “Sob o Sol de Satã” preserva aquilo que talvez seja o pilar da obra de Pialat, a saber, um certo tipo de realismo que busca uma ideia de transcendência a partir da imanência do mundo. Mesmo que o filme se apresente como um conjunto de cenas estendidas no tempo, quase sempre em cenários meticulosamente bem construídos, assemelhando-se assim à configuração de uma peça de teatro, Pialat preserva um interesse primordial na aparência dos seres e das coisas, na organização de um universo fílmico que tudo tem a ver com o cinema clássico e que talvez seja o que o distancia de tantos cineastas colocados como seus herdeiros.
Em tempos estranhos, em que o Festival de Cannes parece cada vez mais “gourmetizado”, chegando ao ponto de entregar o seu maior prêmio a um filme que posteriormente recebeu o Oscar de Melhor Filme — “Parasita” (2019) — ou, ainda mais estranho, de exibir e ovacionar um filme propagandístico como “Top Gun Maverick’ (2022), “Sob o Sol de Satã’ nos mostra um outro tipo de cinema e, consequentemente, nos permite vislumbrar um outro tipo de festival.
O filme está sendo exibido no cinema Petra Belas Artes, localizado na Rua da Consolação, 2423, como parte de uma mostra especial dedicada às obras vencedoras da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em virtude da última edição do evento, que aconteceu agora neste mês de maio. “Sob o Sol de Satã” terá sua última exibição hoje, dia 31 de maio, quarta-feira, às 18:00. Os ingressos custam R$11,00 (meia) e R$22,00 (inteira).
Saiba Mais:
Texto na Cahiers du Cinema comparando Pialat a filmes franceses recentes:
https://www.cahiersducinema.com/editos/editorial-n-778-juillet-aout-2021-benedettannette/
Carta aberta do cineasta espanhol Victor Erice a respeito de sua ausência em Cannes esse ano:
Texto sobre Maurice Pialat por Filipe Furtado, um dos maiores críticos brasileiros: