Videoclipe: AmarElo

Matheus Pires
Araetá
Published in
5 min readNov 11, 2019

Sample: “Sujeito de Sorte” de Belchior

Música:

Voz: Emicida, Majur e Pabllo Vittar

Letra: Emicida

Música: Felipe Vassão e Dj Duh

Clipe:

Roteiro: Emicida

Direção: Sandiego Fernandes

Por: Matheus Pires de Abreu

AmarElo é a mais nova música de Emicida, do seu novo álbum, de mesmo nome. A música é cantada em 4 vozes, Emicida, Majur, Pabllo Vittar e Belchior. Ela mais do que se inspirar na música “Sujeito de Sorte” de Belchior, a composição participa de AmarElo e se ressignifica nas vozes de novos interpretantes, em um hibridismo com composições originais de Emicida. Entretanto maior que a música, é seu videoclipe, uma obra prima em si.

O videoclipe começa com um áudio extenso, são quase 3 minutos antes da música iniciar, mas é quase impossível pular o áudio, ele te prende. Pelo texto? Não. Pela dor, o sofrimento na voz, a busca eterna pela felicidade, o áudio te segura pela empatia das pessoas com o transmissor, empatia tanta que leva o público a sofrer junto com o narrador, por compartilhar de uma identificação, uns mais, uns menos, mas todos sentirão o peso.

O áudio é acompanhado de imagens que demonstram o estado daquele áudio, daquele pedido de socorro. Isolamento. Imagens que em silêncio trariam uma dor tamanha ou maior que o áudio, mas juntos se tornam uma unidade de mesmo valor. Para o meio da música Emicida define em 3 versos o que é a grande busca individual das pessoas no mundo atual, ser feliz a todo momento, e que faz um diálogo direto com o que é uma das bases do esgotamento da sociedade atual segundo o filósofo Byung-chul Han, na sua obra Sociedade do Cansaço, Emicida diz: “Onde a plateia só deseja ser feliz (ser feliz); Com uma presença aérea; Onde a última tendência é depressão com aparência de férias”, e com isso voltamos ao início do videoclipe, a voz que ouvimos no áudio é de alguém esgotado, alguém que corre, corre e corre atrás dessa imagem de felicidade e não encontra, corre atrás da felicidade vendida pela sociedade da informação e o capital, pela alucinação de ser feliz.

Após o áudio, após esse desabafo, essa sensação de afogamento, Emicida nos dá ar, nos dá um respiro, entra incrivelmente com “Sujeito de Sorte” de Belchior, do álbum Alucinação, entra com o início emblemático da música que é o grito de esperança que o áudio e as pessoas precisavam ouvir e queriam dar, “Tenho sangrado de mais; Tenho chorado pra cachorro; Ano passado eu morri; Mas esse ano eu não morro…” e enfatiza “Ano passado eu morri; Mas esse ano eu não morro”, e mostra a capacidade da arte, e como ela pode ser atemporal, e passível de ressignificação.

A música de Belchior retrata a depressão, e a procura de uma luz no fim do túnel, mesmo que se esteja morto, o áudio de Emicida traz a morte de alguém vivo. Mas muito mais que representar a depressão, a música se ressignifica pelos seus interpretes, o contexto de cada um, e das histórias apresentadas visualmente no clipe, todos os personagens, que são histórias reais, compartilham de problemas, origem humilde, cor (que em nossa sociedade já afeta, infelizmente, tal pessoa e seu lugar na sociedade), deficiência, o clipe dá voz para além dos sofredores por doença, mas também para os sofredores pela sociedade.

Emicida, negro, de família pobre, ao cantar essa música ela ganha um novo sentido, devido ao contexto histórico, do Brasil, da vida do cantor, e de como os negros e os pobres são representados e vistos pela sociedade, ganha então, um sentido forte, pesado e cheio de novos significados. E ele convida uma trans negra e outra branca, Majur e Pabllo Vittar, para cantar com ele, apresenta histórias de superação de pessoas oprimidas, e isso torna a obra de arte gigantesca, reflexiva, empática e transcendente. “Combustível do meu tipo? A fome”; “É um mundo cão pra nóiz, perder não é opção, certo?”.

Além de todas essas condições baixíssimas de vida pelas quais o grande público alvo da música sofre, ainda se há uma cobrança elitista e meritocrata em que o discurso é que as pessoas estão ali naquela condição porque não lutam, porque não se esforçam, e que a solução é só correr atrás, mas elas estão tão cansadas de lutar para ter 10% do básico que dar um fim na dor pode ser a única esperança. “Só eu e Deus sabe o que é não ter nada, ser expulso; Ponho linhas no mundo, mas já quis pôr no pulso; Sem o torro, nossa vida não vale a de um cachorro, triste”.

Esse discurso anula a existência da desigualdade, da dor psicológica e além de ser uma análise a partir do ponto de vista da posição social do discursante e seus exemplos são sempre baseados ou de si para o outro, ou de um único caso que conseguiu vencer as dificuldades e chegar a um lugar, e a probabilidade de esse exemplo concretizar é muito, mas muito pequena, ou seja não pode ser para efeito de comparação.

Ela é a base do capitalismo, é a realidade do capitalismo, a desigualdade faz o capitalismo girar, mas o mesmo capitalismo tem que vender uma narrativa que ele é lindo, que é possível conquistar o “sucesso”, e aí a meritocracia se torna a base do discurso do capital, e milhões do povo sofredor vai morrer lutando por migalhas, e talvez um ali consiga um pão.

Retornando à inspiração da música e ao olhar de desconstrução do idealismo do capitalismo meritocrata, Belchior era um niilista freudiano, para muitos o que ele dizia era pessimista, mas ele apontava a verdade, e muitos preferiam a alucinação da aparência, sua música não quer trazer respostas fantasiosas mas a contentação com o sofrimento, pois é a única maneira dele ser algo normal a vida humana.

Mas Emicida até isso ressignifica pois mesmo que haja no campo da realidade social, ele quer entregar a esperança de vencer o sofrimento social, o sofrimento imposto, aquele do preconceito e da diferença, tornando Belchior e AmarElo, uma música sobre esperança, amor e superação, pela luta certa não a luta pela meritocracia, mas a luta contra a desigualdade, pela mudança e por um lugar de voz; “… permita que eu fale, não as minhas cicatrizes; Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes; É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir.”

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