Você é o que come — “O Poço” (2019)

Júlia Machado Shiomi

Júlia Shiomi
Araetá
4 min readApr 3, 2020

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Você conseguiria viver em uma prisão na qual tudo o que pode comer são sobras daqueles que estão “a cima” de você?

Capa de “O Poço” (2019), disponível na Netflix.

É esta a realidade que o longa “O Poço”, de direção de Galder Gaztelu-Urrutia e roteiro de David Desola e Pedro Rivero, propõe. A película apresenta diversas críticas, tanto explícitas quanto mascaradas em detalhes secundários, trazendo uma análise bruta de características das sociedades que se eternizaram em seus indivíduos. A mensagem choca o espectador pela sua exposição e pelo seu conteúdo, fazendo-o refletir sobre como um universo tão maluco como o do “poço” pode se relacionar de maneira tão certeira com nossa realidade.

Goreng, interpretado por Iván Massagué.

No filme, Goreng (Iván Massagué), acorda no nível 48 do que lá se chama o Poço, junto com seu colega Trimagasi (Zorion Eguileor). A dinâmica da divisão presente neste lugar traz a semelhança com uma prisão: dois indivíduos por aposento, onde há uma pia e uma privada (sem preocupação com a privacidade, já que não há nada para separa-la do resto do quarto) compartilhadas e duas camas opostas. Ambos usam vestimentas que remetem muito os uniformes usados por detentos e a sala carece de iluminação e cores — que só aparecem à cima do número que corresponde ao nível na forma de duas luzes: uma vermelha e uma verde. Pode-se perceber que, ao decorrer do filme, estas são as únicas cores que aparecem de maneira vibrante.

Ambos personagens engajam-se em uma conversa na qual Goreng (e o espectador) passa a entender melhor como funciona o mecanismo do lugar: a comida que recebem é o que as pessoas dos níveis superiores não comeram, e tudo o que eles não comerem, vai ser a refeição dos níveis inferiores, e, assim, a comida vai desaparecendo numa progressão que, assim que não sobrar mais nada, aqueles que ficaram sem comer devem esperar o dia seguinte para tentar a sorte. Cada dupla passa um mês em cada nível, sem saber qual será o próximo.

Trimagasi, um velho que mora há quase um ano no poço, explica também que todos os níveis, mesmo os mais altos, têm seus defeitos. Nesta conversa inicial, ambos personagens apresentam dois polos opostos: Goreng questiona tudo e busca se comunicar com aqueles que circundam seu nível; já Trimagasi vê tudo como “óbvio”, mostrando conformidade, e avisa seu colega que a tentativa de ajudar ou pedir ajuda era inútil: aqueles que estão a cima não responderão aqueles que estão por baixo, assim como não se deve falar com os níveis inferiores.

Representação dos níveis do poço.

O filme espanhol utiliza diversos símbolos para representar a mentalidade dos personagens e como a fome transforma as pessoas, fazendo com que elas cheguem ao limite de sua sanidade. Os fantasmas que assombram Goreng, os quais pertencem aqueles que já conheceu e acabou comendo, recorrem ao que seu primeiro colega falou:

“A partir do momento que você me come, eu te pertenço e você me pertence”.

O livro que o protagonista escolhe levar como o objeto pessoal, Dom Quixote, representa a “loucura” de ver as coisas de maneiras diferentes dos outros, loucura esta que o faz escolher lutar contra o mecanismo do poço. Em um ambiente que aflora a busca pela sobrevivência por meio de atos violentos e doentios, a película explora a que ponto um indivíduo se responsabiliza por seus crimes em um meio no qual se sente obrigado a comete-los.

O filme representa a si mesmo na narrativa quando seus personagens buscam enviar uma mensagem, não aos que mandam no poço, e sim àqueles que trabalham para eles, que fazem as comidas. Se apresenta então a ideia que deve-se primeiro quebrar a inércia de conformismo e ignorância daqueles que produzem aquilo que vai se tornar a fonte da discórdia, ao ser colocado como um prêmio em um meio competitivo. Esta competição traz também a reflexão sobre sua necessidade, já que descobrimos que, se todos racionassem a comida, teria o suficiente para todos os níveis.

Esta obra cinematográfica é recomendável para quem gosta de filmes carregados de significados e detalhes que fazem refletir sobre como o meio da narrativa se assemelha com a atualidade. Mesmo que lançado em 2019, a reflexão pode ser aplicada também à pandemia do COVID-19 em 2020, perante a busca por estocagem e garantir a abundância, mesmo quando não necessária. Sua popularidade crescente mostra como sua mensagem está sendo cada vez mais recebida e decodificada, ampliando a visão crítica do mundo por meio de um produto audiovisual.

Para quem se interessou, “O Poço” está disponível na plataforma de streaming Netflix (cuja mensalidade varia de R$21,90 a R$45,90). Vale a pena!

Para quem já assistiu e deseja se aprofundar mais ainda nas mensagens e reflexões do longa:

Júlia Machado Shiomi

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