Unidade Ômega

Gabriel Gastaldo
Arddhu
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29 min readApr 16, 2015

Toda Runeterra é apenas uma sombra em ruínas após a chegada deles

Parte 1

Sinto saudades de presenciar a queda das folhas de outono, de pisá-las e ouvir o craquelar delas sob meus pés no chão das florestas.

Sinto saudades das florestas.

Atualmente tudo é um campo desolado que se perde na infinitude do que o olho alcança. Nem mesmo o céu é possível de se ver seja em seu velho azul profundo ou em suas nuvens de um branco outrora tão apaziguador.

Eu sei o que é o sofrimento. Eu vi com meus próprios olhos a tortura precedendo a morte agonizante de várias crianças e de velhos também. Eu tive que ser fraco para poder ser forte, aceitar minha fraqueza e a incapacidade de revidar a altura para poder viver e tentar fazer alguma coisa. Não estou falando de um exército, nem de dez exércitos mas de mais exércitos do que podem ser contados em uma vida e, quando aconteceu, eles chegaram todos de uma vez. Parecia um enxame de insetos, interminável.

Eu já vira criaturas similares, fosse quando eu os desencaminhei da rota de minha cidade, ou quando tive que combater criaturinhas que podiam comer pela eternidade, crescendo a cada nova mordida, tornando-se maiores a cada nova mascada. Mas nunca eu vira tantos e em tão pouco tempo. Foi a última vez que eu vi azul ou branco no céu. Depois disso? Apenas o púrpura e seus tons lembrando que o mundo não mais era o mesmo.

Eu, eu e eu, apenas eu resto e me tenho como companhia. Mas espero estar errado, mesmo com todas evidências contrárias.

Tive que me esconder, sempre me orgulhei de ser bom nisso, mas não posso me orgulhar ter me escondido enquanto via a dizimação ocorrendo diante dos meus olhos. Engoli meu orgulho e apenas temi por minha existência. Eu sei, eu fui um covarde naquele momento, não honrei a barba que os longos anos me concedera, fui realmente egoísta até, pensei apenas em mim e deixei que meus amores, meus amigos e até meus rivais fossem consumidos em raios púrpura e se transformassem apenas em cinza se espalhando com o vento, ou devorados sem sequer deixar um rastro de sangue para trás.

Não sei por quanto tempo fiquei parado e oculto, não faço ideia de por quantas horas ou dias eu permaneci ali imóvel temendo que até mesmo minha respiração pudesse denunciar minha existência. Acredito que em algum momento eles teriam me descoberto, voadores e com muitos olhos. Mas as criaturas que se rastejavam ou as que caminhavam em quatro ou mais patas, fizeram tanto barulho que eu pude assim me esgueirar pelo que ainda existia, ocultando-me sob escombros que hoje não mais existem.

Lembrei daquele porão escondido, onde anos atrás eu vira ferramentas de morte e de guerra. Onde eu fizera uma escolha uma vez por necessidade, me levando a tomar atitudes das quais me arrependi e até mesmo tendo me afastado do meu código. Mas eu retornei, esbravejei contra tudo aquilo. Tolo, na época, pensei que eram produto da paranoia, exagero de alguém que jamais enfrentara a guerra, que apenas planejara aquilo para provar ser capaz de tal feito. E elas sequer poderiam ser usadas novamente pois não houve tempo para que qualquer reação pudesse ser tomada. Ainda me pergunto como foram capazes de chegar tão despercebidos.

Sempre combati ter que voltar para um mundo com seus tons mais escuros, mantive-me uma criança por dentro jamais perdendo a alegria ou a esperança, imaginando que aquela imensidão de felicidade nunca tivesse fim, ninguém seria tolo o bastante de acabar com aquilo. Eu era outro tipo tolo eu me prendia a um código, eu acreditava nele, mas tínhamos de nos separar.

Esgueirei-me passo a passo com o sabor da possibilidade da morte em minha boca, mas pela primeira vez em muito tempo essa morte era a minha, não a dos que me enfrentavam. Realmente era um gosto amargo e que fazia o estômago embrulhar, como se fosse colocar tudo que estava nele para fora sem qualquer aviso. Mas até isso chamaria a atenção daquelas monstruosidades, acho que consegui chegar até o porão intacto unicamente pelo medo. Não acreditem no que dizem que é necessário viver sem medo, o medo é a melhor ferramenta para sobrevivência, seja guiando seus passos ou sendo incutido nos outros.

Lancei por terra todo meu equipamento acumulado no passar dos anos junto a minhas roupas, não havia tempo para apego à história de cada peça. Passei pelas galerias de armas e armaduras e toda aquela tecnologia Yordle que fora criada pensando em uma guerra que jamais aconteceria, pensando em uma sobrevivência que jamais seria obtida. Confesso que sentei ali no chão, nu, abracei meus joelhos e chorei como nunca antes o tivera feito em minha vida, esgotei minhas lágrimas nas despedidas de cada amigo que eu não mais abraçaria, cada sorriso que eu não mais veria até que dormi de exaustão.

Talvez tenha sido o dia seguinte, a semana seguinte ou apenas algumas horas, não importou, acordei renovado, com o pensamento claro e livre pela primeira vez desde a invasão. Escolhi as ferramentas para o serviço com diligência, aproveitei que tinha todo o tempo para isso e deixei-os com a minha cara como se fosse uma despedida daquele que chorara até dormir e não mais acordara. Olhei meu reflexo no vidro polido de um visor e me assustei lembrando do passado, quando eu uma vez trajara algo similar, mas era pior dessa vez, eu não reconheci a figura na minha frente, felizmente foi hora de dar oi para meu novo rosto.

Ao sair do porão senti um aroma desagradável, algum produto químico muito forte se espalhou por todos os lados e vencia té mesmo o filtro de meu respirador, como se fosse ácido impregnando cada fresta da armadura. Por sorte era apenas desagradável, mas não letal.

Olhando ao meu redor, me deparei com uma cena ainda pior que eu deixara, a grama quase toda desaparecera, junto às casas, árvores e demais construções, ou seja, aquelas criaturas comiam praticamente tudo, mas não tiveram tempo de acabar de vez com a cidade, essa tarefa fora deixada para o novo enxame que se apontava no céu púrpura do norte. Eu poderia até matar algumas dezenas, mas certamente morreria para os outros milhares que se anunciavam. Eu precisava partir daquele lugar o quanto antes. Mas infelizmente testemunhar tudo aquilo despertou novamente aquele lado terrível que todos Yordles escondem em seu monte de pelos e fofuras.

Calculei o tempo, eu tinha pouco menos de dez minutos para presenciar a chegada daquelas criaturas. Por preparo, eu precisava de apenas cinco, mas com sete eu poderia fazer do ato arte.

Tirei tudo que eu precisava de dentro do Arsenal Yordle, tranquei ele novamente, joguei terra por cima ocultando-o com marcas que apenas nosso povo sabia decifrar e me afastei para onde estavam a maior quantidade de coisas, escombros, restos de casas e tudo mais. Ali fiz minha escultura em homenagem a todos que perderam suas vidas, tomei o controle de ondas hextech na mão e lembrei daquele que não queria as guerras, mas criara máquinas para evitar que bons soldados morressem nelas. Me afastei, deixando a escultura bem posicionada no meio do que ainda restara da cidade, certamente aquelas criaturas iriam querer satisfazer seu apetite.

De longe, observei as criaturas com tentáculos e olhos, outras com caudas enormes e até mesmo algumas pequenas, mas ainda assim com aquele ar maldito que eu aprendera a odiar em tão pouco tempo. Acho que vi um sorriso nelas, ou assim quis acreditar para que o que aconteceu a seguir tivesse ainda mais significado.

Tão logo o enxame pousou e começou a comer todo aquele metal e madeira, couro e pedras, eu apenas acionei as ondas de longa distância. O aparelho emitiu um zunido e as criaturas de longe olharam em minha direção. A explosão foi linda erguendo-se colossal pelo ar como uma bola de fogo consumindo tudo que tocava, em seguida fogo jorrava em jatos para todos os lados como se aquele enorme pilar de fogo e luz gerasse seus filhotes vorazes por consumir aqueles que consumiam, eletricidade explodia no ar eletrocutando e muitas vezes pulverizando o que encontrava, Heimer sabia bem o que fazia. Pedaços daquelas criaturas voaram junto aos jatos que incendiavam a carne, ou a carapaça, daqueles que sobraram ainda vivos. Dessa vez eu que abrira meu sorriso por debaixo do elmo e do respirador.

Os restos daqueles que explodiram logo foram consumidos por outros, eles não ligavam se aquilo um dia fora sua mãe, um tio, irmão ou qualquer outra coisa, apenas devoravam e não deixavam nada para trás. Mais uma evidência clara que minha missão se justificava, que minha mudança fora correta e eu não deveria olhar para trás em arrependimento. Calculo que reduzi um contingente de mais de cinco mil em apenas quinhentos. E a caldeira apenas havia começado a esquentar.

Conforme algumas das criaturas se afastaram do local da explosão ainda em chamas, pisaram em minas terrestres com fragmentos envenenados. Os que não morreram na mesma hora, teriam uma morte agonizante a cada segundo, sentindo sua existência se esvair com cada pontada de dor. Os gritos eram como o sussurro de uma amante em meus ouvidos onde eu lembrava de cada um daqueles Yordles que eu jurara defender.

Por fim, depois de pouco mais de uma hora de agonia visceral, de explosões de bombas de impacto, minas hextech com os venenos mais mortais e até mesmo autômatos que subiram da terra disparando milhares de tiros por minuto, restaram apenas cerca de uma centena, puxei o pino das granadas Hextech e arremessei e me peguei dizendo “Essa é por você, Ziggs”. Outra onda de fogo e explosão, de pedaços de cadáveres e vísceras voando para todos os lados. Agora restavam apenas sete e com essa quantidade eu poderia lidar facilmente.

Um tiro no na cabeça do primeiro, explodiu como um melão e o corpo dele caiu inerte. Uma faca abrindo o segundo ao meio fazendo com que seu sangue roxo me banhasse como um batismo. Com a coronha do rifle nocauteei o terceiro e regozijei ao sentir algo dentro dele se quebrando. Ri do quarto e do quinto tentando se aproximar e explodindo em uma armadilha de veneno. Velhos hábitos nunca morrem. Sobraram o sexto e o sétimo, um pequeno que eu pude esmagar com os pés aos poucos sentindo sua agonia ao presenciar sua extinção inevitável e o sétimo que, assustado, tentou fugir. Quando pego por uma faca arremessada, berrou por clemência. Ora, a criatura falava e isso mudava os meus planos.

Tirei meu elmo e deixei que ele visse meu rosto, sabia que essas criaturas se apegavam a imagem de criaturas simpáticas que nós eramos. Ele ainda tentou reagir mas depois de ter seus quatro tentáculos, com os quais se locomovia, presos ao chão por outras facas, percebeu que Clemência era uma palavra que não mais existia no meu dicionário, eu dei um sorriso doente para ela enquanto ia até o nocauteado e com a última faca que me restara cortei sua cabeça fora, esvaziando minha bexiga e minha tensão no seu pescoço desgraçado.

Quando me virei de volta para aquele verme maldito no chão, jogando minha faca para o alto, sabia que o velho Teemo morrera, o que estava em seu lugar mal podia esperar para dissecar aquela criatura ainda viva, descobrindo seus segredos, quem era, de onde vinha e o que queria, ensinando a ela o que era agonia e sofrimento, demonstrando que as lendas de que os Yordles escondiam um lado realmente macabro não era apenas uma lenda

Ah, eu não sabia se era noite ou dia com aquele céu eternamente púrpura acima de mim, mas sabia que seria longo e prazeroso com o começo do sabor de uma vingança.

Parte 2

Olho para o horizonte púrpura em direção a uma cidade que não mais existe, mas cujas remanescências foram suficientes para, em tempo, abrir um portal para outra dimensão, o Vazio e, dele, trazer uma infinitude de hordas de criaturas que sabiam apenas devorar e destruir.

- Então vocês todos estão vindo de Icathia, é bom saber isso.

A criatura na minha frente estava em agonia e em dor contínua causada por minha maestria com o mix de veneno ajunta com outro que eu recebera de um amigo Rato, ao lado restavam dois pedaços do que outrora foram tentáculos, mas com tantas terminações nervosas que, brincar com uma agulha ali, foi libertador.

Ela primeiro se mostrou valente, depois raivosa e em dado momento até tentou apelar para a compaixão, disse que fora obrigada a tudo aquilo, que seu mundo estava destruído e que sua espécie corria risco de extinção, sendo predada por criaturas maiores. Seja lá quem fornecera, esses monstros tinham informações suficientes sobre nós e nosso mundo, sobre nossa anatomia e nossos hábitos. Mas ainda assim, seja lá quem fornecera as informações, não dera crédito para as lendas de quão terríveis os Yordles podem se tornar em situações extremas.

E extremas foram minhas atitudes com aquela criatura que gritava desesperada enquanto eu aprendia sobre ela, sobre sua anatomia e sobre seus limites. Só então ela começou a se abrir me contando tudo que eu desejava saber, apenas pelo fato de que quando ela contava, eu parava de infligir-lhe dor. Acredito que ela esperava que com tempo suficiente, novas levas do seu povo surgiriam para salvá-lo. Isso fez a conversa ser muito produtiva.

Eles não tinham objetivo que não fosse devorar, se alimentar e se propagar, ao menos não essas criaturas. Ele me contou sobre suas muitas castas de predadores selecionados durante muitos milênios por criaturas imortais superiores, criaturas que possuíam poder mágico e conseguiam transformar a anatomia e a genética das castas menores. Mais que isso ele realmente não sabia, afinal, a dor quando prolongada torna todas as criaturas sinceras.

Até aquele momento eu sabia que a criatura tinha sido parcialmente honesta, torturar seus tentáculos, que seria como minhas mãos e pés, tinha sido realmente revelador. Mas então chegara a hora de me concentrar no centro da criatura, o pedaço com a qual ela enxergava, ouvia, falava e gritava. Aí sim eu poderia acreditar em tudo que ele viria a dizer.

Acho até que ele acreditou que poderia sair vivo dali, que de alguma forma seu sofrimento tocaria meu coração e me causaria empatia por lembrar do sofrimento do meu povo, mas quando eu arranquei um de seus olhos com um graveto, e com grande dificuldade, ele deve ter percebido que quanto mais rápido falasse e menos enrolasse, mais rapidamente morreria e deixaria de sentir dor. Ele entendeu finalmente que a morte não era o pior dos destinos e passou a almejá-la com todas as forças de sua existência. Só então eu me satisfiz e o explodi após enfiar uma bomba em sua boca.

Ao meu redor restavam apenas cinzas de coisas que foram incineradas, alguns pedaços de criaturas que se confundiam com suas tripas, sangue e restos de exoesqueletos e a certeza de que eu deveria começar uma jornada. Olhei apenas uma vez para trás sobrepondo à minha visão, a memória do que fora nossa cidade, dei adeus a Bandle City e parti pelo caminho de destruição deixado pelas criaturas.

Vaguei por dias naquele rastro de desolação, podia seguir os rastros daquele exército e teria continuado a segui-los, não fosse pelo segundo exército que começara a se aproximar logo atrás. Provavelmente teriam visto a destruição de seus semelhantes e aquilo os teria motivado a marchar tão incansavelmente. Achei melhor continuar por algum tempo deixando um rastro para que fosse seguido e depois voltei sem deixar rastro algum, tomando outra direção, quando chegassem ao fim do que eu deixara, eu já estaria bem longe e sem qualquer traço que apontasse a minha direção.

Enquanto eles se direcionariam para o Sul, rumo às Plague Jungles e provavelmente depois para Kumungu, rumo às ruínas de Urtistão, eu atravessaria as montanhas, possivelmente encontrando algum sinal de vida para alertar todos os outros reinos, afinal, embora eu fosse o último de Bandle City, muitos Yordles estavam espalhados por Valoran. Quem sabe alertando a tempo outras vidas pudessem ser salvas e uma batalha pudesse dar a chance de vida para nosso mundo? Valia a pena tentar.

O caminho pelas montanhas era terrível de ser trilhado pelos que não o conheciam, durante gerações os mais talentosos Yordles espalharam armadilhas e modificaram tudo que puderam na paisagem para criar um caminho sem volta, um labirinto interminável e que enlouqueceria qualquer pessoa que não morresse. Apenas um caminho permanecia sem tantos perigos, mas esse era sempre vigiado. Imaginei que poderia encontrar alguns patrulheiros por lá, a esperança chegou até mesmo a dar uma pontada em meu coração, acelerando meu passo na busca de outros sobreviventes.

Mas a destruição e a desolação se espalhavam por todos os lugares. Florestas inteiras desapareceram, montanhas se mostravam nuas sem qualquer vegetação que as cobrisse, revelando apenas as rochas que restaram. Aos poucos aquela esperança espetou ainda mais fundo meu coração se mostrando em vão, as criaturas que acabaram com minha cidade não tinham sido as primeiras, talvez até, nem tivessem sido o maior pelotão entre elas. Os malditos conheciam nosso mundo, provavelmente estavam chegando em ondas intermináveis e separando-se em batalhões com diferentes destinos. O pensamento passou pela minha mente como terror absoluto, talvez toda Valoran já tivesse sido consumida.

Mandei os pensamentos embora e continuei a trilhar até os pontos mais altos das montanhas, quando aquela barreira natural cessasse, eu poderia avistar ao longe Kumungu, Voodoo Lands e Shurima e então eu poderia decidir meu destino. Foi quando lembrei que eu era um ser vivo e estava há dias sem me alimentar, com apenas a raiva como combustível me movendo, mas até mesmo a raiva sumira com as visões de desolação e eu finalmente percebi que meu corpo sentia fome, muita fome.

Tive que interromper meu caminho para obter provisões, eu andara por dias e dias sem ter me alimentado e aquilo estava finalmente cobrando seu preço, minha primeira prioridade era sobreviver. Pouca coisa restara no caminho de destruição, a maior parte eram pedregulhos, restos de construção, uma ou outra peça de metal deixada sabe-se la porque. Até mesmo as plantas venenosas tinham sido consumidas, o que indicava que em muitos talvez o estômago fosse ainda mais forte que o resto de seus corpos.

Olhei para baixo então, para as coisas que não estavam a vista, raízes, tubérculos, até mesmo insetos podiam ser fonte de nutrição se bem preparados. Finalmente comecei a encontrar alguma coisa, tive que cavar em vários lugares até achar raízes que tinham sido deixadas, algumas suculentas e perigosas, outras secas mas que seriam a solução. Eu tinha uma certa quantidade de provisões secas, preparadas para marchas longas, mas não poderia contar com aquilo para sempre, o ideal era encontrar alimentação em todos os lugares e deixar aquilo apenas para uma situação de emergência e eu esperava que não estivesse em uma ainda.

Finalmente consegui coletar o suficiente para fazer uma refeição generosa. Nunca fui adepto da entomofagia, mas tinha o preparo para poder aproveitar isso se necessário, logo eu estava encostado em uma rocha bebendo um pouco de água e me alimentando de alguns insetos e larvas, raízes não venenosas e até mesmo deixando algumas venenosas curtindo, para que o veneno fosse anulado através dos processos químicos. Enquanto eu improvisei acampamento, fiz a busca de alimentos, pensei a respeito de tudo isso, cheguei até a esquecer a situação em que o mundo se encontrava. É curioso como as pequenas coisas tem o poder de transformar tanto. Sendo um Yordle então, é irônico esquecer disso.

De estômago forrado, em um lugar aparentemente seguro, comecei a planejar algum descanso. Meu corpo não aguentaria por muito tempo aquele ritmo se eu não cuidasse dele. Tracei um perímetro de segurança tendo em mente o tempo em que seria avisado e quanto tempo eu teria para reagir. Deitado, tentei não pensar em nada, sabia que qualquer pensamento me conduziria aos momentos de desespero que eu enfrentara e finalmente consegui por algum milagre descansar.

Acordei de sobressalto pouco mais de uma hora depois, meus pesadelos eram terríveis mas logo me afastei deles, recolhendo minhas coisas, apagando meus vestígios e seguindo meu caminho, provavelmente teria ainda mais um dia a um dia e meio de viagem até alcançar o ponto que eu desejava, uma das estações de vigília Yordle. Na subida percebi que alguma vegetação surgia, em alguns lugares consegui até mesmo coletar pequenas frutas, insetos mais encorpados e comecei a perceber que nesses pontos altos poderia ter restado algo que não fossem apenas pedras.

A névoa densa começou a cortar minha visão no segundo dia, era o efeito da noite que se afastara e criava aquela cortina que só se dissiparia mais para a metade dia, quando o sol despontasse no centro do céu, conseguia enxergar pouco mais de vinte metros a minha frente mas conhecia tão bem o terreno que isso não atrapalhava em nada. Tirei as botas e comecei a pisar no chão, não mais apenas de pedras e terra, as gramas a princípio fizeram cócegas nos meus pés, podia ser algo frugal mas me causou uma satisfação e alegria imensa.

Logo após uma grande inclinação, eu sabia que um platô me esperava e logo a seguir, a Estação de Vigília Yordle. Ao transpor esse obstáculo meus olhos se encantaram em ver pela primeira vez em dias, uma faixa de chão que não fosse tão inóspita, as gramíneas que cresciam ali eram pequenas e tímidas, mas forravam o chão e davam maciez ao pisar e lá estava a Estação de Vigília. Corri como uma criança para abrir seus presente de aniversário e antes que eu pudesse subir as escadas, o resto de névoa se dissipou na minha frente e eu pude ver Kumungu, Shurima e as Voodoo Lands.

Por mais incrível que fosse, Kumungu estava devastado, mas não em sua totalidade, a fome das criaturas provavelmente tinha sido aplacada no caminho a ponto de não terem destruído absolutamente tudo que se diferia de chão, Shurima continuava em sua imensidão de areia e Voodoo Lands parecia intocada. Claro, não era a terra mais fértil e nem mais rica em belezas naturais, mas seus fossos intermináveis e seus geiser escaldantes devem ter espantado as criaturas.

Podia ser pequena mais uma vez, mas pelo menos naquele momento as evidências eram claras que ainda existia alguma esperança para Valoran.

Parte 3

A estação estava intacta, infelizmente nenhum batedor estava lá, provavelmente os que estavam de serviço deviam ter sido atraídos para baixo pelas hordas que passavam e tiveram seu fim naquele mar de bocas e estômagos com fome. Até mesmo restava um caldeirão com o que ensaiava para ser uma sopa mas fora largado às pressas, sem que o fogo sequer tivesse sido iniciado. Em uma das mesas estavam os equipamentos de um dos escoteiros, junto a outros apetrechos usados para manutenção, em tudo isso eu podia ver o rosto de um Yordle dedicado e que perdera sua vida.

Próximo ao caldeirão onde seria feita a sopa, estavam vários legumes cortados, um pedaço de carne ainda salgado e outros ingredientes do que seria uma tradicional sopa de campanha Yordle. Acendi o fogo, não precisava me preocupar com fumaça pois aquele forno tinha sido feito de forma a não expelir fumaça para o alto e indicar a posição da estação, em seguida coloquei os ingredientes dentro e fui conferir o resto daquele lugar.

O porão da estação estava todo organizado, a despensa estava bem abastecida e me peguei pensando apenas em comida, curiosa era minha reação a tudo aquilo que estava acontecendo Ttalvez em outro momento eu sequer tivesse parado para analisar o que poderia estragar primeiro ali, quais alimentos eram os mais eficientes para se carregar em uma jornada e o que eu deveria consumir enquanto permanecesse ali. Eu sabia que provavelmente o resto da jornada seria muito complicado quanto a alimentação, o que poderia fazer com que eu precisasse ser muito atencioso com esses detalhes se eu quisesse chegar em meu destino.

Todos outros andares estavam normais, camas feitas, chãos limpos, equipamentos de vigília e espreita em perfeito estado, eu podia até imaginar os escoteiros novatos passando para lá e para cá sob o comando do escoteiro chefe. Senti saudades de um passado um pouco distante, senti saudades de algo que não lembrava mais, foram tantos pensamentos sobre tudo que me peguei mais uma vez sorrindo de alegria até ser golpeado de volta pela realidade.

Peguei alguns dos equipamentos de vigília e os posicionei para poder ver o horizonte. De todos os lugares uma fumaça de cor púrpura se elevava, aos poucos ela se juntava ao que estava no céu e conseguia refrear um pouco a claridade do Sol, se aquilo era proposital, eles certamente temiam o poder da luz. Isso poderia ser útil em algum momento.

Mesmo com lentes poderosas, o quadro geral não era muito diferente do que eu vira a olho nu, Kumungu tinha recebido bons danos mas ainda existia. Claro, aquilo podia desaparecer a qualquer momento em uma nova onda de criaturas. Me peguei pensando que nem mesmo a estação deveria restar por muito tempo, já que aparentemente a única coisa que a protegera era o fato do púrpura não ter tomado completamente os céus. Não conseguia ver mais outra cor que não fosse púrpura mas ainda assim em alguns lugares a claridade era visivelmente maior.

Queria partir o quanto antes, mas sabia que eu apenas não faria diferença e ainda, eu jamais conseguiria superar a velocidade em que aquelas criaturas se locomoviam em sua turba. Entendi aquilo como uma oportunidade para organizar meus pensamentos e estratégias, reunir todo conhecimento que tinha alcançado sobre aquelas criaturas até aquele momento e decidi que passaria uma noite em uma cama confortável.

Um bom banho foi oportuno, não apenas por saber que eu talvez não conseguisse tomar outro tão cedo, mas também pra limpar os restos daqueles monstros que estavam em meu corpo e em meu traje. Enquanto tomava o banho, cheguei a conclusão de que deveria destruir a estação. Não era uma atitude egoísta, mas alocar bem tudo que pudesse ser salvo no porão, cobri-lo com terra suficiente para esconder das criaturas e possivelmente salvar alguma coisa para outro Yordle que por milagre tivesse sobrevivido e viesse até ali.

Aquela água quente serviu para dar um pouco de alívio e vida para meus velhos ossos, de frente ao espelho eu via uma barba longa, similar a que meu pai uma vez usara, e meu avô antes dele, mas diferente dos dois, eu não conseguia enxergar ternura no rosto que me observava de volta, apenas uma cicatriz longa atravessando um olho que não mais enxergava, outras cicatrizes menores espalhadas pelo rosto contavam histórias que eu pretendia contar para meus filhos algum dia, mas que no decorrer daquilo que se chama vida, não me foi possível.

Conforme os pensamentos se encaminharam para esse lado, forcei-me a pensar no meu plano, para onde eu iria e o que tentaria fazer. Após o banho servi-me de um prato generoso de sopa com alguns pedaços de pão de campanha, comida que o organismo absorve e alimenta por dias, foi quando tive a primeira onda de uma visão do passado, tomando todos os meus sentidos e transportando-me para um passado não tão longe, quando eu ainda era solteiro, quando eu ainda não tinha descendentes.

Eu disse sim e em seguida a beijei. Eramos então um casal e o futuro jamais pareceu tão brilhante, promissor e feliz. E assim foi durante bastante tempo, e isso se esticou a cada nova fagulha de vida e felicidade que colocávamos no mundo. Foram dias felizes e cada lembrança me tomava por assalto como uma névoa inebriante, ate que ouvi sinetas de alerta tocando, um urro enorme e a terra tremeu.

O perímetro fora rompido!

Parte 4

Cuspi uma quantidade generosa de sangue e senti algo se partindo dentro de mim, provavelmente uma costela ou duas. Tentei me mexer e foi nítida a sensação de pedaços de ossos se raspando dentro de mim. Cuspi mais um pouco de sangue e então consegui voltar a respirar.

Até pouco menos de meia hora eu estava em uma banheira quente, com a água ainda a amolecer o sangue preso em meu corpo, pensando que a felicidade estava nas pequenas coisas e pretendendo terminar um belo banho. Nesse momento a pequena coisa eram os poucos centímetros pelo qual a criatura errara meu pescoço, acertando meu peito protegido por uma carapaça Yordle e eu pretendia voltar vivo.

Conte suas bençãos, todos os dias, assim dizia meu finado avô. Naquele momento eu contava a quantidade de munição ainda restante, eu disparara quase uma centena contra aquela criatura do Vazio e ela sequer recuara um centímetro para trás, nem mesmo fizeram arranhões na casca do monstro. Em um momento mais rápido que meu único olho pode acompanhar, a criatura me atacou pelo ponto cego, como se já me conhecesse. Mas eu jamais vira um voidborn similar a aquele.

Foram poucos segundos que tive para me mover, pois na investida seguinte, a criatura mais uma vez atacara pelo meu ponto, consegui esquivar me encostando em uma árvore que foi arrancada do chão até mesmo com as raízes, aquele golpe com certeza teria acabado comigo. Mas não tive tempo para pensar, após o ataque do que era seu braço e mais parecia uma marreta, a criatura apenas continuou o movimento e fui jogado para longe mais uma vez, mas dessa vez por um golpe de sua cauda enorme.

Se algo tinha trincado antes, agora com certeza estava quebrado, tive que remover o capacete pois o visor do olho bom trincara anulando completamente minha visão. Eu tentei me levantar mas ao perceber um espinho atravessando ela, percebi que a cauda da criatura era repleta deles, e um tinha ficado fincado em mim. Tudo estava acontecendo às mil maravilhas e eu me aproximava da extinção a cada momento.

Provavelmente por não ter calculado bem o golpe, o monstro me jogou longe o suficiente para me tirar de sua vista, com um urro assustador percebi que era o terceiro golpe de sorte que eu tinha em menos de um minuto, provavelmente eu estava ficando sem eles e a próxima investida seria a definitiva, ainda mais se eu não conseguisse andar com aquele espeto enorme me impedindo.

Meu corpo não era mais jovem e tão rápido e a criatura embora fosse enorme, aparentava estar no ápice de sua performance de combate, o que dava a vantagem a ela. Mas minha mente também não era mais jovem, dada a ataques impulsivos e a combate corporal, foi um erro de principiante ter me levado pela empolgação e me aproximado dela. Eu não teria mais espaço para ter esse erro.

Segurei a respiração e enquanto ouvia a criatura correndo na minha direção removi aquele pedaço que ela deixara em mim. Quase desmaiei com a quantidade de sangue que começou a jorrar do buraco, uma artéria tinha sido rompida e eu provavelmente sangraria até a morte… ou seria partido ao meio quando a criatura se aproximasse.

Pense Teemo, você não é um recruta, você não está em um treinamento e você não é mais jovem, foi o que eu me disse em pensamento, enquanto por impulso lancei uma granada de concussão para longe de onde eu estava. E funcionou, o som dos passos da criatura foram em direção a explosão e eu tinha mais alguns segundos de consciência para fechar aquela ferida.

Uma das vantagens do veneno ajunta é que ele desacelera as vítimas, fazendo com que a circulação seja mais lenta, mesmo sabendo da dor, me apliquei uma dosagem que provavelmente não me mataria, mas pelo menos poderia me permitir acessar o ferimento antes que fosse tarde demais. Como previsto, o jorro parou, isso na mesma hora me indicou que a criatura não se guiava pelo cheiro, do contrário teria ignorado a granada.

O corte na artéria era pequeno, mas o suficiente para fazer com que sangrar até a morte fosse uma possibilidade. Eu não tinha o treinamento médico para realizar aquela cirurgia, eu não poderia fechar o ferimento com pontos, mas com um frasco de unguentroll realizaria um milagre ali. Tirei da cintura o kit de socorros mas a primeira pontada do ajunta correndo pelo meu corpo me pegou.

Senti o corpo inteiro formigando e com a mão trêmula deixei o frasco cair no chão, tentei esticar meu braço para pegá-lo mas a segunda pontada fez com que eu me esticasse completamente. A dor era imensa e eu sentia uma vertigem que já conhecia por preceder o desmaio. Uma regra do venefício é conhecer o antídoto do que se usa, mas o ajunta não tinha um antídoto conhecido, e eu precisava de poucos segundos até que ele deixasse de agir daquela forma.

Foi tempo suficiente para a criatura perceber que aquilo fora um engodo, o urro dado por ela foi ainda maior e a corrida em minha direção agora era certa. Peguei o frasco de unguentroll já o destampando com o dedão e derramei na ferida. A mágica começou a acontecer e uma leve luminescência esverdeada surgiu, seguida de pequenos fios que se esticavam dos extremos daquele buraco, fechando a ferida completamente.

Senti uma leve pressão no tórax e percebi que até mesmo minhas costelas voltaram para o lugar. Uma coceira e um formigamento atingiram onde antes faltava um olho, mas eu sabia que era apenas isso que aconteceria, ferimentos como os que me tiraram parte da visão, não eram curados por algo assim.

Avistei a criatura, ainda no chão meio a folhas que caíram da árvore contra a qual eu me chocara, percebendo que ela também me vira. Achei que ela fosse se levantar e urrar, mas predadores não fazem isso, pelo contrário, ela fico nas quatro patas e começou um trote muito mais rápido que antes. Estava realmente enfurecida.

Como um raio ela atravessou a distância que nos separava, mas dessa vez eu a tinha exatamente onde eu queria, em meu campo de visão e esquivar de sua nova investida foi fácil. Ela tinha muita velocidade, mas o mesmo não se podia dizer de seu controle. Apenas rolei um pouco para o lado e pude sorrir quando ela tentou me abocanhar, mas em meu lugar, encontrara um de seus próprios espinhos, enterrado o suficiente para que pudesse rasgar parte de seu tórax graças a aquela velocidade.

O sangue do monstro era roxo, gosmento e com uma certa luminescência, também se mostrou ácido, ao rapidamente derreter as folhas e galhos nos quais caiu. Machucada, ela mancou e examinou o ferimento, seus olhos brilharam intensamente somado a um novo urro, mas esse era diferente, mesmo sem conhecer a fundo os voidborn, eu tinha certeza que era de frustração.

E contra inimigos frustrados, a paciência é a melhor arma. Ou seria, se eu não tivesse certeza de que eu ficaria cansado muito antes daquela criatura sequer esboçar um sinal disso. Mas eu acabara de presenciar outro problema, mesmo sem unguentroll, o ferimento daquilo começou a fechar diante dos meus olhos.

Claro, um predador, de uma dimensão de predadores, com certeza a evolução tinha dado a sua espécie um fator regenerativo, mas felizmente não era nada como o lendário Warmog e quando a criatura tentou andar, impaciente, seu braço ainda não totalmente regenerado falhou, fazendo com que caísse no chão. Ela arfava e respirava com raiva contida, esperando que sua genética predatória terminasse sua tarefa.

Eu assumo ser um babaca, mas não consegui deixar de dar uma risada maldita antes de correr, pois meu medicamento já terminara seu efeito e eu estava novo para recomeçar a batalha, mas dessa vez ela seria feita ao meu modo.

Parte 5

Corri por pouco mais de um minuto, a criatura com certeza ainda esperava pacientemente que seu ferimento terminasse de regenerar, e eu tive o pouco tempo que eu precisava para preparar o terreno a meu modo, para batalhar com paciência e não com impulsividade. Teemo, você não é mais um jovem, eu repeti enquanto usava um pedaço de minha jaqueta rasgada para unir dois pedaços de madeira.

Quando deixei de ouvir a respiração da criatura à distância, percebi que ela estava pronta e já retomara a caçada, eu estava terminando de cobrir uma mina terrestre quando ouvi o passo dela atrás de mim, há pouco menos de três metros. Me virei e vi seus olhos assassinos, com a boca aberta e seus muitos dentes saboreando ter me pego em uma situação desprivilegiada. E então ela deu um passo, pisando em um galho frágil, que separava os dois contatos de uma armadilha.

Foi a vez da criatura ser jogada para longe, mas dessa vez pela onda de choque de uma explosão cuidadosamente direcionada. Ela se chocou contra uma árvore e eu fiquei interessado em ver que a mancha de sangue roxo e levemente ácido deixara um rastro, que terminava em uma das patas da criatura, que fora removida de seu corpo. A criatura olhou descrente para aquilo, mas rapidamente o ferimento do membro amputado começou a reagir, esticando o que primeiro parecia ser um osso e, em seguida, um feixe de nervos se esticou. Ela mais uma vez contava com a sua regeneração para ter vantagem.

Provavelmente mais de milhares de anos de evolução nos separavam, ou ao menos uma genética mais propensa a adaptação. Com aquela taxa de recuperação de membros, a criatura realmente teria uma vantagem em um ambiente hostil, ainda mais, tinha uma clara vantagem contra um simples Yordle. Mas eu me perguntei: Será que tem vantagem contra uma dose cavalar de ajunta?

Saquei minha velha zarabatana tão rapidamente quanto aquela criatura se locomovia, antes mesmo que ela percebesse, espetei cinco dardos em sua ferida. Ela parou, olhou para a região, como se sentisse o impacto de alguma coisa fazendo não mais que uma coceira, então o mecanismo dos dardos injetou a dose de veneno e o monstro fechou os olhos pela primeira vez.

Podem dizer que a frustração ou a raiva geram os urros mais assustadores, mas eu sei muito bem que é a dor que provoca as reações mais extremas. A criatura apenas comprovou minha experiência quando seu berro de dor foi mais alto e horripilante do que qualquer outro dado até aquele momento. Ela se jogou para o lado, sentindo as ondas do ajunta se espalhando pelo seu corpo, provavelmente frustrada por sentir suas terminações nervosas sendo torradas e confundido todo seu sistema nervoso, sem conseguir controlar muito bem seus movimentos.

Assisti àquela cena interessado em ver como a regeneração era afetada pelo ajunta, feliz por finalmente ter conseguido um pedaço de algo macio e vulnerável para espetar alguns dardos. Realmente a o ajunta devia ter criado uma confusão enorme no organismo da criatura, pois enquanto aquele membro se regenerava, pareceu que outro era criado saindo da mesma ferida. Aquilo causava apenas mais dor no monstro.

Eu não era tolo de tomar a batalha por vencida, mesmo vendo que se contorcia de dor, desacelerava e confundia a sua regeneração, provavelmente o veneno não a mataria, mas faria o suficiente para que a próxima etapa de meu plano fosse bem sucedida e, com ele, eu pretendia realmente colocar um ponto final naquele encontro.

Yordles não são as criaturas com maior força muscular, nossa pequena estatura não permite isso, mas o que não temos de músculos, compensamos com criatividade e engenhosidade, aliadas a inteligência e estratégia. Corri até a criatura que se contorcia e lacei seu pescoço com o que sobrara de minha jaqueta, e ao mesmo tempo em que fiz isso, puxei a corda que estava em minha outra mão.

Duas árvores ainda jovens, mas flexíveis e fortes, com raízes profundas, foram soltas quando a estaca que eu usara pra prendê-las foi solta pela corda que eu carregava na mão, alavancando a criatura ainda sofredora contra uma árvore bem mais antiga e resistente. E eu ouvi o barulho de alguma coisa se partindo.

Sem parar para comemorar, corri e peguei aquela mesma corda e rapidamente amarrei o rabo da criatura, para não ser novamente golpeado por aquela maça cheia de espinhos. Talvez excitado demais, corri em volta da árvore, enquanto a criatura ainda se recobrava da dor do veneno que lentamente era eliminado pelo seu organismo e percebia que estava completamente presa.

Ele (ou seria ela) tentou se debater, se soltar, mas foi em vão. Completei o preparativo terminando de dar algumas voltas nela, com um fio de metal, extremamente resistente, que se não se partisse, com certeza fatiaria a criatura se ela forçasse ainda mais a sua escapada.

Pude então parar para descansar, minha perna recém curada ainda doía e coçava, eu correra rápido demais e eu não era mais tão jovem para aquilo, meu corpo não aguentava tanto assim e me sentei no chão contemplando a visão a minha frente. Ri ao perceber quanto se parecia com um espeto pronto para ir ao fogo.

Pude então recuperar minhas forças, enquanto via a vontade da criatura finalmente sendo quebrada, ao perceber que não conseguiria se livrar, a confirmação disso foi quando a carapaça dela trincou nos lugares onde o fio de metal a prendia. Falei com ela, mas não tive resposta, na verdade a criatura parecia ser realmente sem qualquer racionalidade, pois tentou me abocanhar ao me aproximar dela e então sofreu mais um ferimento do que a amarrava.

Mas eu podia ver que existia alguma inteligência alí, seus olhos não conseguiam me enganar. Ouvi um ruído um pouco distante e vi que a pata, que fora arrancada, se movia sozinha, em direção ao corpo. Aquilo não fazia muito sentido, afinal, se o membro podia ser recolocado, por que motivo o corpo começaria a regenerar outro membro em seu lugar.

Dei a volta e olhei para onde estava a ferida, o sangue ácido lentamente corroía a árvore e um pouco da corda, mas isso não me intrigou tanto, pois eu já imaginara aquilo. A percepção que realmente me causou espanto, foi perceber que um dos membros que começara a se regenerar, caíra no caminho, a velocidade do impacto provavelmente fizera ele ser arrancado.

Fui procurá-lo e então entendi tudo que estava acontecendo. A pata que fora arrancada pela explosão, o membro que fora arrancado na estilingada, também estavam em atividade, como se estivesse se regenerando, mas não era isso que acontecia, eles estavam na verdade criando o que faltava para eles, novos corpos.

Uma criatura que era capaz de se multiplicar através de seus pedaços. Realmente o vazio era um território de coisas impressionantes, e se eu não cuidasse daquela situação, em breve eu não teria um, mas três predadores prontos para me fatiar e devorar. Eu não podia permitir isso, pois uma longa jornada ainda me aguardava.

Primeiro incendiei a pata nova que fora criada, e que, naquele momento, já começava a criar também o que pareciam ser os ossos do ombro. Com a confirmação de que ao menos seu interior podia ser incinerado, joguei a outra pata na fogueira e vi o fogo começar a queimá-la de fora para dentro, deixando apenas a carapaça ainda intacta.

Quando a criatura percebeu qual era seu destino, tento desesperadamente se soltar, apenas facilitando meu trabalho de expor mais pedaços de sua carne que pudessem propagar o fogo. Era como um animal e, por mais que fosse ameaçador, não fazia parte de mim torturar uma criatura que agia apenas por instinto e pela sua natureza.

Injetei nela uma dose imensa do Ajunta modificado e vi aos poucos a vida dela se esvaindo sem dor. No momento final, seu rosto tinha uma expressão de alívio, como se a sua existência fosse de puro sofrimento, naquele momento eu vi um último lampejo do que parecia ser inteligência e foi como se ela me dissesse obrigado.

Ateei fogo ao corpo ainda preso na árvore e me afastei, sentando longe e vendo as chamas consumindo toda a carne e as entranhas da criatura púrpura, pensei se aquela criatura tinha família, outros que viessem a sentir a sua falta, lembrei dos últimos momentos de Bandópolis e então pela primeira vez em minha mente passara a lembrança de meus filhos, os mesmos que eu vira serem pulverizados diante dos meus olhos.

E lembrança surgiu na minha mente como um dos golpes da criatura, desde que eu vira aquilo, foi como se minha mente tivesse bloqueado os acontecimentos, guardado em um lugar inacessível as memórias, apenas sendo soltas com a proximidade que eu tivera da morte. Diante daquele fogo purificador, dominado pelas lembranças, eu não me importava mais se eu morresse, ali eu fiquei e chorei até perder a consciência….

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Gabriel Gastaldo
Arddhu
Editor for

.(R)egular guy in (P)resent time.(C)lose this world open the n(EXT).