Arkhi Memorial, epi 2 — parte 1.
Texto: Felipe Samedi
Grãos abrasivos machucam minha pele, escorrego rumo a base da duna, meus ouvidos são açoitados pelos gritos do imenso pássaro.
Merda! Nós só queríamos uns ovos, matamos algumas crias menores e agora a gigantesca mãe busca nosso sangue para saciar sua vingança.
Seu Menino, o primeiro a avistar o perigo, desceu pelo outro lado, eu jamais havia visto um idoso correr tão rápido. Ele foi na direção oposta a nossa e a criatura no alto, por algum motivo, preferiu perseguir a nós ao invés dele.
É por isto que eu não gosto de velho.
Enquanto corro, observo a frente uma estrutura natural de pedras coberta por areia quase até o topo. Veios de talco negro indicam grande perigo na escalada, não tenho opção, se esconder naquelas pedras pode nos salvar.
Aponto o local com minha lança e declaro minha intenção aos outros dois companheiros. Kamahl corre ao meu lado, não sei onde Saul está.
Me foco no percurso, tento aumentar minha velocidade, o máximo que minhas curtas pernas suportam, a criatura parou de berrar, o som do bater de asas cessa. Um bom sinal ?
Uma escuridão passa por mim e se estende metros a frente, o calafrio na espinha avisa, a sombra trás a morte vinda do alto.
Me arremesso ao chão, giro meu corpo e ergo minha lança ao céu com a esperança de que aquele espeto ósseo cause algum incomodo a criatura.
Imensas garras se aproximam, porém fecham no vazio, pó e penas negras por todos os lados, arremessadas pelo bater de asas, a rapinante atroz alça voo gritando irritada. Kamahl esta caído ao meu lado, com a besta em punhos, trocamos olhares, escapamos do bote. Rapidamente me levanto, a areia no meu corpo não incomoda mais, louvado seja o solo de Lumn.
Volto a corrida desenfreada e começo a subir o monte, miro no pináculo de pedras acima, única chance de salvação. Uso a lança como apoio e subo em ziguezague, um erro na escalada pode ser fatal, não quero jazer em um caixão arenoso.
A cada metro de subida, me aproximo mais do perigo, que paira acima, mas também de um possível abrigo. O desespero supera o medo e minha perseverança é recompensada, no topo me aproximo da rocha solida, tão valorizada pelo meu povo. Naquela mal cheirosa fenda, logo a frente, é possível se esconder.
Do alto o ser emplumado silencia, preocupada eu olho para trás, por que meus companheiros ainda não chegaram ?
Vejo ambos escalando, ainda alguns metros abaixo do cume, porém o rapinante desce do céus e num veloz movimento abduz Saul, levando-o em uma de suas garras. Puxo minha funda e preparo uma pedra, Kamahl começa a gritar uma reza a Nagual.
Neste momento, um vento forte e repentino sopra de encontro ao condor carniceiro, impedindo-o de alçar as alturas. Saul reforça seus esforços para tentar desvencilhar-se do aperto mortal. Se ele se soltar e cair daquela altura, talvez tenha uma chance.
“-Mantenha a reza Kamahl, esta funcionando.” Gritei enquanto arremessava pedras.
A vontade de Nagual é volúvel como pó em uma tempestade, em um instante o vento muda de direção, em favor ao monstro, tão forte que derruba o suplicante orador duna abaixo.
A Morte Sombra bate suas asas negras voando vitoriosa, seu canto raivoso reverbera pelo deserto, encobrindo os gritos desesperados de Saul…
Observo pensativa, há algumas horas atrás o guerreiro extorquiu uma família de pequenos, que faziam um culto proibido a Nagual. A vingança da divindade veio ligeira e nem as suplicas de um fiel foram capazes de impedir que a morte tragasse Saul as alturas.
Lá embaixo Kamahl, ainda vivo, volta a subir, eu o espero enquanto observo desconfiada a caverna próxima.
Marjane Ayad, anã e possivelmente Agmista.