A damnatio memoriae dos nossos tempos: reflexão sobre a condenação patrimonial

Ana Caeiro
arLt
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5 min readMar 8, 2021
Imagem picada da faraó Hatshepsut

Desde os primórdios da História que existe um costume generalizado de remover determinadas personalidades consideradas infames da memória colectiva através da destruição de imagens. Este é um processo que, na verdade, assenta numa base assumidamente iconoclasta, embora as causas desta iconoclastia se prendam a questões socio-políticas e à abolição do culto pessoal. Os romanos cunharam esta prática e não se acanharam no seu uso, designando-a de damnatio memoriae, embora se revele bastante mais antiga, tendo sido levada a cabo por egípcios, gregos ou judeus. Ainda assim, todas as personalidades que passaram por esta erradicação de imagem acabaram por encontrar o seu lugar na História, seja por via documental ou mesmo pela tradição oral.

Este é o primeiro ponto que gostaria de abordar, pois se o objectivo é apagar a presença de uma determinada figura da memória colectiva, aquilo a que temos assistido é a um constante fracasso. Essas pessoas não são apagadas da nossa memória, uma vez que nos registos históricos e antropológicos se conservam as informações necessárias para delinear o seu percurso. Aquilo que realmente ocorre é a atribuição de uma conotação que perdura continuamente, ou seja, acabam por ser imortalizadas como símbolos intemporais da maldade ou da ganância humana. A história de Heróstrato espelha na perfeição esta particularidade algo antagónica da erradicação pessoal. Heróstrato incendiou o templo de Artémis para assim se tornar eternamente conhecido, crime que pagou com a própria vida e com a sua memória amaldiçoada, pois dizer o seu nome tornou-se proibido. Ainda assim, em pleno século XXI, conhecemos o seu nome e as suas acções, pelo que, até certa medida, conseguiu o que queria.

A narrativa das sociedades não se perde, encontra sempre o fio condutor ao longo das gerações, mesmo que isso implique passar por temas ou períodos mais trágicos que, lamentavelmente, se repetem ao longo do tempo. Lembrar um determinado episódio trágico não significa, à partida, vontade de o reviver. Antes pelo contrário, deveria ser uma das formas que a Humanidade tem para se proteger de si mesma. O conhecimento histórico deve, acima de tudo, ensinar-nos a construir um mundo melhor, mesmo que careça de sentido utópico e procure emendar as questões práticas que conspurcam a vida em sociedade. Porém, romantizar e adaptar os acontecimentos e as figuras do passado, criar heróis e símbolos de bravura e reivindicá-los ideologicamente tornou-se tão banal como beber um copo de água.

Muitas das conotações actuais atribuídas a essas personalidades não lhes foram designadas pelos seus contemporâneos, mas sim por uma instrumentalização política que degrada o conhecimento científico. Viriato não foi um herói do Estado Novo, mas um pastor da Idade do Ferro cuja luta consistiu na derrota do imperialismo na sua terra. D. Afonso Henriques não foi um herói do Estado Novo, mas um infante do século XII que acabaria por entrar em confronto com a mãe e tornar-se rei. D. Sebastião não é o salvador da pátria e não vai regressar numa manhã de nevoeiro. As figuras que se heroicizaram durante o século XIX, particularmente devido à obra de Alexandre Herculano, e que foram depois apropriadas politicamente, devem ser desconstruídas dessas suas adaptações romantizadas e vistas à luz dos factos. Não quero com isto dizer que se deva censurar o seu lado místico, mas antes fazer a separação entre realidade e lenda, por forma a encaixar o conhecimento nos domínios correctos.

Hoje em dia, este é um tema que se revela da maior importância, uma vez que se trata do epicentro de um dos debates mais acesos quanto ao património histórico. Temos assistido a uma prática iconoclasta, tanto popular como institucionalizada, que procura estabelecer critérios relativamente ao que se deve ou não expor nos espaços públicos. E é justamente essa falta de critérios que tem levado a uma perda indiscriminada de peças, algumas das quais que em nada se relacionam com a causa que motivou a sua destruição. Por vezes, basta terem sido produzidas num período com valores contraditórios aos parâmetros morais actuais, o que representa todo o nosso passado. Desde andarmos a torturar mamutes até à morte, a fazer sacrifícios animais e humanos a deuses, a escravizar povos desde a Antiguidade, a matar em nome da fé e a queimar pessoas vivas por motivos religiosos, a colonizar terras e a reivindicá-las, a tratar as mulheres como propriedade do patriarcado… em todos os períodos históricos e mesmo pré-históricos vamos deparar-nos sempre com valores que hoje nos parecem bárbaros. E no futuro é bem provável que aquilo que hoje é socialmente aceite seja olhado com a mesma perplexidade com que olhamos para o quotidiano dos nossos antepassados.

Creio que aqui a questão não deve incidir na destruição de património que comprometa os valores morais da sociedade contemporânea. Destruir acervo histórico não é a solução para nivelar as desigualdades sociais. Essa medida não traz quaisquer consequências benéficas para ninguém, para além de retirar aos investigadores a oportunidade de contactarem directamente com esses bens. Aquilo que deveria estar a ser discutido é uma exposição pública do património com uma vertente pedagógica. Peças como esculturas, pelourinhos, marcos históricos e memoriais devem ser entendidos numa perspectiva mais ampla, que permita ao público não só identificar as personalidades e situá-las no tempo, como ter uma noção realista daquilo que foi o seu percurso em vida. Nos casos em que se trata de figuras ou de simbologias demasiado infames para permanecerem na via pública, essas peças deverão ser reencaminhadas para instituições museológicas ou universitárias, restringindo assim o acesso aos interessados em conhecê-las. As peças demasiado fortes para estarem expostas nestas instituições podem ser integradas nas reservas e escondidas do público, com visitas autorizadas somente para investigadores.

A sociedade tem todo o direito de se pronunciar relativamente ao que quer preservar e descartar nos espaços que são de todos, mas não podemos cair no erro de banir tudo aquilo de que não gostamos ou com que não nos identificamos, pois assim não restaria nada. Tenhamos em conta que o espaço público é, por si só, parte da nossa memória colectiva, pelo que não podemos descaracterizá-lo dos elementos que lhe conferem a identidade. A função dos marcos históricos é justamente recordar o percurso das sociedades, com todos os seus feitos e falhas, delinear um caminho iniciado há milhares de anos e com troços bastante conturbados, mas sempre em construção. A História não existe para engrandecer nações ou para fomentar falsos estatutos de superioridade, deve ser isenta de heroísmos e narrar os acontecimentos tal como se deram, incluindo os episódios mais obscuros e degradantes para o ser-humano. O património histórico, como tal, tem o dever de educar o público relativamente ao espaço que o rodeia e deve ser olhado como uma ferramenta de aprendizagem cultural, não como um intruso na contemporaneidade.

É necessário sensibilizar o público para a consciência patrimonial, mas também dar-lhe voz para expressar os seus argumentos. Os espaços alteram-se e a porta não deve estar fechada a eventuais mudanças, desde que movidas pelos motivos certos e não porque essas medidas agradam a um determinado governo ou autarca. Não discutamos estes temas de ânimo leve, estamos a lidar com um problema que, mais do que cultural, tem uma origem maioritariamente social e que exige um debate sério, inclusivo e aberto a todos. Acredito piamente que boa parte das contestações se resolveria se existisse uma preocupação institucionalizada em educar pela via do património, em vez de nos servirmos dele somente como ornamento urbano.

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