A destruição de bens diocesanos pela mão dos bem-intencionados

Ana Caeiro
arLt
Published in
9 min readMar 29, 2021
Pintura mural com o Ecce Homo restaurado por Cecília Giménez. Fonte: Público

Na última década, muitos têm sido os casos noticiados que dão conta de restauros amadores com desfechos catastróficos, particularmente nos acervos diocesanos e a pedido dos párocos locais. Este é um tema que cada vez mais marca presença na comunicação social e que suscita opiniões bastante fortes por parte do público, mas parece sempre existir uma falta de entendimento quanto aos motivos que levam a estes episódios insólitos na área da conservação e do restauro. São justamente as causas do problema que esta breve reflexão procura analisar.

Os acervos diocesanos e o espírito regionalista

Uma característica bastante comum das zonas rurais, e mesmo de alguns bairros citadinos, é o gosto pelo que é regional. Nos meios pequenos, todos os habitantes conhecem a sua terra, desde as pessoas aos lugares, passando pelas igrejas, estátuas, fontes e ainda pelas lendas, mitos e crenças populares. No entanto, este conhecimento do património local não resulta necessariamente de um interesse pessoal pelos temas da cultura, mas antes de uma infância passada a ouvir os pais e avós narrarem as histórias que os seus antepassados lhes transmitiram. Ou seja, a preocupação em preservar os bens patrimoniais assenta essencialmente num apego comunitário à tradição e aos bens da terra, mas carece de uma definição daquilo que é o património cultural enquanto conceito.

Esta disparidade entre excesso de regionalismo e escassez de consciência patrimonial gera uma enorme preocupação comunitária em estimar os seus bens, ainda que sem as bases deontológicas aplicadas a intervenções em acervo histórico. A estas condicionantes, juntam-se ainda as gritantes falhas de comunicação entre instituições e as típicas demoras das respostas dadas aos problemas de cariz patrimonial, o que por vezes leva a um verdadeiro estado de desespero por parte das comunidades. Estamos a falar de peças que, para estas pessoas, são parte da sua identidade local e, no caso dos acervos das igrejas, constituem ainda o seu epicentro espiritual, motivo pelo qual a responsabilidade de intervencionar estes espaços acaba por ser assumida pelos membros das paróquias.

Um restaurador amador, capaz de dar nova vida a mobiliário gasto, ou uma pessoa que tenha como passatempo pintar figurinos, não tem competências para exercer em património cultural. Faltam-lhe, logo à partida, uma série de conhecimentos laboratoriais, histórico-artísticos e técnicos imprescindíveis para atingir o objectivo de qualquer restauro: devolver a peça ao seu estado original. Não basta maquilhá-la superficialmente, o que só por si pode revelar-se desastroso, mas compreender todas as suas propriedades materiais e artísticas por forma conceber um plano interventivo com vista, para além do seu aspecto, à sua longevidade. Quando se toma a decisão de delegar a recuperação de património a pessoas sem formação, a população está, mesmo que inadvertidamente, a contribuir para a sua degradação.

Verifica-se, assim, um conjunto de factores propício à destruição patrimonial, que quase paradoxalmente se dá com uma genuína intenção de preservar. As comunidades paroquiais querem cuidar dos seus acervos, mas nem sempre sabem como o fazer, ou nem sempre compreendem os requisitos que esse processo exige, e acabam por atribuir a tarefa à pessoa que, a seu ver, é a mais adequada dos seus membros para exercer essa função.

A autonomia dos párocos

Não é por acaso que os acervos públicos mais afectados por restauros amadores são os paroquiais. Os bens diocesanos desempenham uma dupla função do ponto de vista prático, uma vez que, para além de se tratar de objectos de arte sacra, são simultaneamente peças de culto. Uma vez que as suas instituições de acolhimento são as igrejas e as dioceses, o pároco responsável pelo espaço dispõe de relativa autonomia para tomar as medidas que considerar necessárias à preservação dos acervos. Ainda assim, estes procedimentos deveriam ser aprovados pelos serviços especializados de cada diocese, pertencentes ao Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, o que, como sabemos, nunca acontece nestas situações.

Poderíamos apontar, uma vez mais, as falhas de comunicação institucionais, mais concretamente a falta de serviços partilhados que incluam oficinas de restauro especializado, mas parece existir sempre uma tremenda falta de consciência patrimonial por parte do pároco, que não se acanha em atribuir a tarefa a um dos membros mais artísticos da sua paróquia. Seja por sua iniciativa ou por mera negligência, a figura paroquial constitui-se no principal agente de validação da destruição dos acervos eclesiásticos.

Santo sem cabeça na igreja de S. João Baptista (Tondela). Fonte: Expresso

A imagem acima corresponde a um desses casos, ocorrido na igreja de S. João Baptista, em Tondela. A comunidade conseguiu angariar 13 mil euros para a recuperação dos caixotões do tecto da capela-mor e o resultado gerou duas correntes de opinião encabeçadas, respectivamente, pelo pároco que autorizou o trabalho e por um professor de História residente no concelho, que teceu duras críticas à actuação dos envolvidos. Esse mesmo pároco tomou a decisão de se eliminar a cabeça de um santo por não conseguir identificá-lo, alegando assim uma causa pastoral para tomar uma decisão que não deveria sequer ser da sua competência. Uma vez que esta empreitada partiu de uma iniciativa à qual o Departamento de Bens Culturais da Diocese de Viseu ficou alheio, a intervenção foi levada a cabo sem qualquer regulamentação.

Pinturas murais da igreja de Santa Clara (Beja). Fonte: Expresso

Em 2012, é noticiado um caso semelhante na igreja de Santa Clara, em Beja. Um conjunto de seis pinturas com episódios da santa padroeira, executadas a óleo e têmpera, sofreu um desastroso restauro às mãos de um octogenário que se dizia pintor, residente no lar de Boavista, situado nas redondezas da igreja. Para o repinte, utilizou tinta plástica, extremamente difícil de remover, para além de ter adulterado permanentemente o desenho e os cromatismos. Este indivíduo, com severas dificuldades de mobilidade e de visão, foi requisitado pelo pároco que, ao ser confrontado com a situação, alegou somente “não perceber nada disso do património”. Ao tomar conhecimento do sucedido, o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja cessou de imediato a autoridade do pároco em todas as questões de natureza patrimonial.

Detalhes do conjunto escultórico de Nossa Senhora das Preces (Oliveira do Hospital), restaurado pelos alunos da Universidade Sénior de Coimbra. Fonte: Fórum de Conservadores-restauradores

Embora em Portugal estes sejam os dois casos em que a iniciativa parte flagrantemente da figura do pároco, é ainda de assinalar o insólito restauro de um conjunto escultórico da Última Ceia, no Santuário da Nossa Senhora das Preces, em Oliveira do Hospital. Este caso é particularmente preocupante, uma vez que a intervenção foi dirigida por um alegado profissional de restauro que decidiu delegar a tarefa aos seus alunos da Universidade Sénior de Coimbra. O resultado, como sabemos, foi uma total desfiguração das figuras intervencionadas, aspecto que ressalta à vista quando olhamos para o antes e o depois. Ainda assim, os membros da paróquia ficaram extremamente satisfeitos com o trabalho, com uma especial ênfase nos comentários do tesoureiro. Entre as suas observações, refere que “estava tudo estragado, com rachadelas, esculturas sem dedos e sem olhos”, e ainda que gostaria de ver o mesmo tipo de restauro aplicado ao restante acervo.

Em Espanha: antes e depois de Cecília Giménez

Não há dúvida de que o caso mais mediático do século relativamente a restauros desastrosos se deu na vizinha Espanha. Refiro-me, naturalmente, ao Ecce Homo da igreja do Santuário da Misericórdia, em Borja, uma pintura mural com a representação de Cristo que foi desastrosamente restaurada por Cecília Giménez. Temendo a degradação da obra, a senhora, de idade avançada, tomou a iniciativa de tentar recuperá-la, decisão que foi autorizada pelo pároco da igreja. Ainda que a situação seja lamentável, é seguro afirmar que, desde então, o perigo dos restauros amadores deixou de ser uma questão exclusiva aos profissionais do sector para passar a ser um dos temas da actualidade.

A cobertura mediática dada a este caso, bem como o aspecto caricato da pintura, tornaram-no na referência por excelência a más práticas de conservação e restauro e expressões como “isto ainda foi pior do que aquele Cristo em Espanha” banalizaram-se nas conversas sobre intervenções que resultaram em atentados ao património. Porém, apesar da larga visibilidade dada a este episódio, não parece ter havido uma diminuição de ocorrências, mas antes uma maior cobertura mediática das mesmas, o que não deixa de ser um indicador de que o público se interessa cada vez mais por este tema.

Estátua de S. Jorge (séc. XVI), proveniente da igreja de S. Miguel (Estella). Fonte: BBC

Menos conhecido é o caso de uma escultura de S. Jorge do século XVI, pertencente à igreja de S. Miguel, em Estella. Sem notificar qualquer entidade competente, o pároco recorreu aos serviços de um professor local de artesanato para o restauro da peça que, uma vez mais, acabou desfigurada às mãos de um amador. Felizmente, seguiu-se uma segunda intervenção especializada dirigida pelo Departamento de Património Histórico de Navarra, que conseguiu reverter a maioria dos danos infligidos e aproximar a peça do seu estado original.

A comunicação social dá conta de outros casos semelhantes, mas que se prendem com a questão da propriedade privada de arte (imóveis históricos situados em terrenos privados ou peças pertencentes a colecções particulares) e não com a acção das paróquias. Ainda assim, no tocante aos danos infligidos nos acervos diocesanos com o aval da figura paroquial, estas são, sem dúvida, as situações mais noticiadas e a sua análise permite retirar algumas ilações relativamente às causas por detrás dos acontecimentos.

O conformismo perante a adversidade

Analisados os casos, o grande denominador-comum a todas estas más decisões parece recair no conformismo. Ou seja, as populações procuram soluções imediatas para a conservação dos acervos, que estimam como sendo parte da sua própria identidade. Quiçá devido às demoras burocráticas, ou simplesmente por negligência, escusam-se de reportar estas decisões às entidades competentes, procedendo a restauros com os meios humanos disponíveis localmente. Uma vez que o objectivo destas intervenções é, acima de tudo, estético, as peças são sujeitas a processos que podem revelar-se extremamente danosos, para além de ficarem totalmente descaracterizadas das suas versões originais, pois carecem de metodologia laboratorial e de uma preparação rigorosa das técnicas e materiais a usar.

Poderá parecer estranho que, por vezes, os membros das paróquias se regozijem com os resultados destas empreitadas, mas a verdade é que, aos seus olhos, as peças que tanto tempo esperaram por uma intervenção finalmente conseguiram tê-la. Só o facto de se taparem buracos, brechas ou de se avivarem as cores traz uma enorme alegria à população. Casos insólitos como o de Cecília Gimenez seguramente não constam desse repertório, mas em Portugal assim tem sido esta dinâmica entre o domínio científico e o popular nos acervos diocesanos.

Possíveis soluções

Assim sendo, a última questão que se coloca é: como solucionar o problema da destruição patrimonial dos bem-intencionados?

Existe um lado positivo, que é o gosto genuíno que as comunidades nutrem pelos seus bens, pelo que a lacuna que falta colmatar é a consciência patrimonial. Uma vez que não são tomadas as diligências necessárias, há que apelar ao lado sentimental das populações e fazê-las entender que, se querem legar esses bens às gerações futuras, estão a proceder da forma errada.

Para além das regulamentações estabelecidas, que não parecem sortir efeitos significativos, devem ser criados serviços partilhados entre as dioceses, as autarquias e as universidades, designadamente oficinas de restauro especializado e a inventariação rigorosa dos acervos. Com o estabelecimento de um sistema de partilha, os processos burocráticos seriam simplificados e o tempo de resposta aos problemas consideravelmente menor.

Em suma, aquilo que realmente importa é alertar as comunidades paroquiais para os riscos dos restauros amadores a longo prazo, mas também oferecer-lhes os meios necessários para uma recuperação qualificada dos seus bens culturais. Tudo isto passa por uma boa comunicação institucional e agilização burocrática, uma vez que não faltam jovens qualificados em Portugal em situação de desemprego. As populações decerto agradeceriam ver os seus tão estimados bens serem estudados, inventariados e restaurados por profissionais especializados.

--

--