Poemas de Sylvia Plath: seleção para um coração partido

Lígia Reyes
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6 min readMar 13, 2021

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Penso que a melhor parte de se estar apaixonado, é poder ouvir, ler ou rever obras de artistas que também estavam apaixonados. Também o mesmo se aplica para a melancolia de um coração partido. Sylvia Plath, artista no género da poesia confessional dos anos 50 e 60 nos Estados Unidos, poderá ser a melhor escolha para dias que parecem não fazer muito sentido. A sua voz feminina é cheia motivos naturais, escolhendo metáforas que não servem para esconder o sujeito poético dos seus textos — partilham a intimidade do quotidiano e uma sensibilidade transgressora.

Um coração partido em Sylvia Plath

Sylvia Plath nasce no ano de 1932 nos Estados Unidos e a sua vida é pontuada pelos múltiplos momentos de “crises de melancolia”. Conhecemo-la de perto no seu romance semi-biográfico, “The Bell Jar”, mas sua vida não será contada apenas por ela (ou como Ted Hughes tentou curar a sua própria culpa na obra “Cartas de Aniversário); assim como todos perseguiram uma busca incessante de perceber o quão é realidade e o quão poderá ser literatura. O coração partido de Sylvia Plath aparece como uma transfiguração de uma biologia singular. Desde o desgosto da morte precoce do pai, à humilhação das infidelidades do seu marido, Ted Hughes; tudo parece ser uma razão para o mundo não ser um lugar suportável. Mas esses grandes momentos na vida da poeta, não são o suficiente para explicar a ferida, para explicar as razões que a conduziram à poesia ou ao suicídio. Talvez devêssemos olhar para ela à luz da contemporaneidade: um diagnóstico de transtorno de personalidade, a possibilidade de escrever à luz da sua própria matéria traumática, sem que isso seja a causa do seu talento. O mais provável é que tenha sido a escrita a adiar a sua morte — a torná-la amiga, mãe ou amante — e o seu coração partido não seja mais do que uma persona. E a própria Sylvia poderá ter confundido o seu desgosto com a pessoa que realmente era.

A distância entre a poesia e o suicídio

Sabemos como a cultura pop acabou por ligar o sofrimento mental à criação artística. Sylvia Plath é esse sinónimo no feminino, mas também poderíamos falar sobre muitos outros artistas, como Van Gogh ou o português Mário de Sá Carneiro. O que se sabe hoje em dia sobre a doença mental, leva-nos a reconhecer que, na verdade, esse glamour é apenas uma perpretação do próprio estigma. A distância entre a poesia e o suicídio é apenas mais um dos temas humanos, dos quais a literatura se deve apropriar. Mas será muito diferente que a própria vida se aproprie dos espelhos múltiplos que a literatura concede. No caso de Sylvia, o seu suicídio é visto como um ponto final na sua obra, glorificando-a como uma mártir ao serviço da literatura. O misticismo do seu sofrimento acaba sempre por a devolver ao lugar injusto da “posteridade” — quando sabemos como os poetas só são realmente amados nos outonos das suas vidas.

O legado confessional para o movimento feminista

Sylvia Plath é vista como a apoteose do movimento literário “confessional”. À boleia deste movimento conseguiu ter a liberdade para referir-se à sua sexualidade (sem que esta se torne necessariamente erótica). Neste ponto podemos reconhecer uma autora à frente do seu tempo, libertando-se dos espartilhos da sociedade altamente conservadora dos anos 50 nos EUA — apenas uma década mais tarde estes autores acabariam por mover todo um movimento de contracultura. A importância deste legado não está na possibilidade de dar voz à poeta, mas sim na possibilidade de lhe devolver o corpo físico no seu devido lugar. Isto é da maior importância para qualquer que seja a mulher a debruçar-se sobre si mesma e em como esse lugar físico (o corpo) é pessoal e intransponível.

Mad Girl’s Love Song*

“Fecho os olhos e o mundo inteiro cai morto
Abro as pálpebras e tudo renasce de novo
(Eu acho que te imaginei dentro da minha cabeça.)

As estrelas dançam em azul e vermelho,
Um vazio arbitrário galopa cá dentro:
Fecho os olhos e o mundo inteiro cai morto

Sonhei que me enfeitiçavas até à tua cama
Cantando de forma lunática, beijavas-me insanamente
(Eu acho que te imaginei dentro da minha cabeça.)

Deus cai do céu, o fogo do inferno desaparece
Serafins e homens de Satã fogem:
Fecho os olhos e o mundo inteiro cai morto

Gostei de ti da mesma forma que tu disseste gostar
Mas, entretanto, cresci e esqueci o teu nome
(Eu acho que te imaginei dentro da minha cabeça)

Em vez de ti, deveria ter amado uma ave mitológica
Pelo menos, quando a primavera chega, elas voltam sempre.
Fecho os olhos e o mundo inteiro cai morto
(Eu acho que te imaginei dentro da minha cabeça)”

Os Manequins de Munique**

A perfeição é terrível, não pode ter filho.
Fria como a respiração da neve, põe um tampão no útero.

Onde os teixos sopram como hidras
A árvore da vida e a árvore da vida

A libertar as suas luas, mês após mês, sem nenhum objetivo.
O fluxo do sangue é o fluxo do amor.

O sacrifício absoluto.
Quero dizer: não há outro ídolo senão eu,

Eu e tu,
Assim, no seu sulfuroso encanto, nos seus sorrisos

Estes manequins dormitam esta noite
Em Munique, a morgue que fica entre Paris e Roma.

Nus e carecas nos seus casacos de peles,
Chupa-chupas de laranja em pauzinhos de prata

Intoleráveis, ocas cabeças,
A neve deixa cair os seus bocados de escuridão,

Não se vê ninguém. Nos hóteis
Mãos estarão a pôr os sapatos

À porta dos quartos para que os engraxem com carbono
Neles hão-de amanhã entrar enormes pés.

Ó a domesticidade destas montras
As rendas de bebé, as folhas verdes de açúcar,

Alemães toscos a passar pelo sono metido nos seus stolz
Largos
E os telefones pretos no descanso

A brilhar
A brilhar e a digerir

Emudecidos. A neve não tem voz.

Carta em Novembro***

Amor, o mundo
De repente muda, muda de cor. A luz da rua
Perpassa por entre as vagens do laburno
Que lembram a cauda dos ratos, às nove da manhã
É o Ártico.

Este pequeno circulo
Negro, com estas trigueiras e sedosas ervas — cabelo de bebé
Há uma cor verde no ar,
Suave, voluptuosa
Conforta-me com amor

Estou corada e quente.
Se calhar isto é absurdo,
Sou tão estupidamente feliz,
As minhas galochas
Dão passos ruidosos, atravessam o vermelho maravilhoso.

É a minha propriedade.
Suas vezes ao dia
Percorro-a, cheirando-lhe
O bárbaro azevinho em conchas,
De verdete, ferro puro,

E a parede de velhos cadáveres.
Amo-os.
Amo-os como à história.
As maçãs são douradas,
Imagine-se –

As minhas setenta árvores
A prender as suas bagas vermelho-douradas
Num espesso e mortal caldo cinzento,
Com um milhão
De folhas de metal douradas e sem vida.

Ó amor, Ó celibato.
Mais ninguém senão eu
Caminha com água pela cintura.
As insubstituíveis
Riquezas sangram e afundam-se, as bocas das Termópilas.

*”Mad Girl’s Love Song — Tradução de Lígia Reyes

** “The Munich Mannequins” — Tradução de Maria Fernanda Borges na obra “Ariel” editada pela Relógio d’Água

*** “Letter in November” — Tradução de Maria Fernanda Borges na obra “Ariel” editada pela Relógio d’Água

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