2027 é Agora

Uma análise sobre o filme Filhos da Esperança

Malu Portela
Nexus: AOF
10 min readJan 18, 2016

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“Eu não quis fazer um filme que terminasse quando os créditos rolassem. Ao invés disso, queria fazer um filme em que, quando entrassem os créditos… Esse seria realmente o começo do filme”, palavras do cineasta mexicano Alfonso Cuarón sobre seu filme Filhos da Esperança.

Em 2016, seu primeiro longa de ficção científica é capaz de contemplar a frase de seu criador. Guerras civis atingem países socialmente desfavorecidos, tendo destaque para Síria que enfrenta o embate de forças contrárias e passou a ser o refugio de terroristas do grupo ISIS, levando ao seu povo a perda de familiares, amigos, a escassez de alimentos, o enfrentamento da iminência da morte todos os dias, não lhes dando alternativa a não ser fugir para um país estrangeiro.

2027. Diego Ricardo, aos 18 anos de idade, a pessoa mais jovem da Terra, morre. O mundo enfrenta um colapso geral e imigrantes não vêem outra saída a não ser ir para Grã Bretanha que vigia suas fronteiras de maneira ferrenha. A humanidade está condenada à extinção, uma vez que, por algum motivo sem explicação no próprio universo diegético fílmico, as mulheres são inférteis. Theo Faron (Clive Owen), um ex-ativista desesperançoso, concorda em transportar em segurança uma imigrante ilegal que está grávida.

Da tríade da literatura fantástica que engloba ficção científica, fantasia e horror, Filhos da Esperança abraça a primeira classificação de gênero por tratar de ambientes sociais que não existem ou não existiram (no caso, do filme, um futuro próximo), tal qual o é a fantasia, por exemplo, porém com algumas ressalvas: se trata de um filme em que os acontecimentos podem, sim, vir a se concretizar no mundo em que se conhece hoje; é um gênero extremamente imersivo, adentra-se 2027 sem nenhum tipo de introdução prévia, aos poucos entende-se o que poderia ter mudado nesse ano, especialmente em termos tecnológicos, tudo é trivial; existe uma preocupação maior com o saber tecno-científico, enquanto que no horror e na fantasia o destaque fica com a magia e o sobrenatural, e o filme problematiza uma questão do presente no futuro.

Das possíveis correntes de pensamento influentes no filme do diretor mexicano, o movimento New Wave se aproxima das características de Filhos da Esperança. Após o enfrentamento da Segunda Guerra Mundial e todas as atrocidades ocorridas, das quais a bomba atômica ganha destaque por gerar um clima de pânico e incerteza, a denominação New Wave abarca a contracultura responsável por contestar os valores e práticas vigentes, o maior uso de drogas como alternativa de desprendimento do mundo caótico, a presença da forte corrupção (por volta dos anos 60/70) e, dentro do contexto da ficção científica, a proeminência da criação de histórias com futuros distópicos.

Uma das engrenagens de Filhos da Esperança é o grupo ativista The Fishes que contesta o governo britânico, no momento em que o filme se desenrola, seu maior compromisso é por fazer com que os imigrantes passem a ter direitos iguais na Grã Bretanha, responsáveis por desobediência civil que promovia ataques não pacíficos, como forma de contestação e demanda por mudanças na atitude do governo; no 2027 de Cuarón, as drogas de hoje legais como o tabaco, são proibidas, porém, o uso de medicamentos como antidepressivos não são apenas legalizados pelo governo como são incentivados, em determinado trecho do filme Theo conversa com Jasper (Michael Caine) que revela ao público que o governo coloca antidepressivos na comida racionada da população; a imagem do governo corrupto é construída pelas palavras dos The Fishes que afirmam que as autoridades armam explosões e ataques para aterrorizar as pessoas, e pelo modo como tratam os imigrantes de forma opressora, até mesmo ‘fascista’, palavra utilizada no filme, e também é dada certa ênfase na prática de religiões alternativas as tradicionais do ocidente.

Fátima Régis, em seu livro “Nós, Ciborgues - tecnologias da informação e subjetividade homem-máquina” aponta para um dilema em classificar a ficção científica entre aqueles que dão prioridade ao saber científico e outros ao estudo humano, eis que surge a definição de ficção científica hard e soft: “A primeira utilizaria temas pertencentes ao campo das ciências teórico-experimentais, como a física, a biologia, a química, a astronáutica e a cibernética. Já a ficção científica soft trabalharia com conceitos das ciências sociais e humanas: psicologia, história, sociologia, comunicação, filosofia, entre outras.” (RÉGIS, 2011, p. 23).

Filhos da Esperança, nas palavras de seu diretor cedidas em entrevista ao site About Entertainment, usa o futuro próximo e a infertilidade apenas como um pretexto, uma metáfora para falar de algo, de questões do presente. Para ele, não é importante investigar o que causou a infertilidade ou construir um mundo altamente tecnológico, sua preocupação é discorrer sobre o estado das coisas no mundo presente.

Outro aspecto proeminente em Filhos da Esperança é o uso da linguagem documentária como forma de narrar o filme. Cuarón decupou o filme de modo que os planos fossem longos, muitas vezes, recorrendo a ensaios com os atores e equipe técnica para viabilizar essa possibilidade de conferir maior realismo e fluidez para as sequências. Assista parte do trecho do making of abaixo, no qual o uso desse recurso é explicado:

Alfredo Suppia discorre sobre o uso desse recurso usando, exatamente, Filhos da Esperança, como exemplo: “Também recentemente, Filhos da Esperança (Children of Men, 2006), adaptação do romance de P.D.James, dirigida por Alfonso Cuarón, retoma a vocação documentária de um certo cinema de ficção científica, desta vez sob perspectiva baziniana. Entrevistas com o elenco, equipe técnica e o próprio diretor deixam clara a intenção documentária do filme. Além disso, Filhos da Esperança prima pela tentativa de preservação da continuidade do espaço e do tempo numa espécie de apologia ao plano-sequência.”( SUPPIA,2011, p.25)

Suppia faz referência a André Bazin, teórico de cinema francês que defendia a idéia de que um espectador não poderia perceber que está assistindo a um filme, a técnica de decupagem e montagem deve ser tão bem feita a ponto de a fluidez colocar o espectador em uma imersão absoluta, “Qualquer que seja o filme, seu objetivo é dar-nos a ilusão de assistir a eventos reais que se desenvolvem diante de nós como na realidade cotidiana.”(André Bazin, 1972, p 66).

Essa transparência do discurso fílmico se soma a estética de jornalismo documentário com câmeras tremendo, seguindo seu objeto, falta de preocupação com a composição do quadro, apenas documentar o acontecimento, o fato. Esses dois modelos de passar uma impressão de realidade ao espectador são comuns de serem encontrados no gênero ficção científica, e são bastante explorados em Filhos da Esperança. Alfonso Cuarón revela “Escolhemos essa abordagem de documentário como se estivesse apenas seguindo os personagens com sua câmera digital no ano de 2027.”(Fala extraída do material especial do filme).

Três sequências se destacam pela sua continuidade (sequências com poucos cortes ou nenhum), todas elas tem em comum o fato de serem cenas de grande tensão e extremamente significativas para o filme, são elas: a cilada em que Julian (Julianne Moore) é baleada com, aproximadamente, q\uatro minutos, Kee (Clare-Hope Ashitey) dando a luz, com três minutos e meio, e a batalha da revolução no gueto de Bexhill, com sete minutos e meio. No primeiro trecho, abriu-se mão do recurso chroma key para captar o real o máximo possível, um carro foi projetado para uma câmera circular por dentro e coreografar junto dos atores.

Carro projetado, juntamente com a equipe de fotografia, para filmar o plano-sequência da morte da personagem Julian (Julianne Moore)

No terceiro e mais longo trecho, um pouco de sangue respinga na lente da câmera, Cuarón tentou cortar a cena, mas no embalo da filmagem, a câmera continuou rodando, o resultado na tela foi um efeito intenso que contribuiu para a retórica estética de uma reportagem jornalística. As observações anteriormente expostas se fazem interessantes do ponto de vista do esforço que é empregado por esse filme de gênero de ficção científica que não possui uma verossimilhança diegética com a realidade fora do suporte fílmico para passar ao espectador a ilusão de realidade e credibilidade do conteúdo.

Respingos de sangue na câmera

Se utopia se refere à ideia de uma civilização ideal, Filhos da Esperança é o oposto dessa definição, se enquadrando no conceito de distopia, ou seja, uma sociedade pior do que a sociedade em que se vive na atualidade que, segundo Philip E. Wegner: “A distopia se desenvolve no final do século XIX da fusão de dois gêneros que, a primeira vista, pareceriam muito diferentes: de um lado, a utopia literária, com sua visão de um outro mundo futuro e, por outro lado, o romance naturalista que oferece um retrato sombrio tanto do presente quanto da humanidade.”(2005, p. 89, tradução livre).

Segundo relatos coletados em entrevistas e making of do filme, quando Cuarón começou a reunir sua equipe técnica, especialmente o departamento de arte, e lhes disse que fariam um filme de ficção científica, todos começaram a reunir referências do estereótipo futurístico como carros supersônicos, arquitetura futurística, dispositivos eletrônicos até que Cuarón esclareceu o filme que tinha em mente: ele levou para a equipe de arte um material que havia reunido sobre Iraque, Somália, Irlanda do Norte, Sri Lanka, Chernobyl.

Tais correspondências ficam claras na cena em que Theo é levado pelos The Fishes para um cubículo encoberto por jornais, confeccionados para o filme, com reportagens acerca de catástrofes ocorridas no mundo. Nas palavras do diretor: “A regra que eu estabeleci é que esse filme não é sobre imaginação mas, sim, sobre referência”(Fala extraída do material especial do filme). Cuarón deixa bem claro que se passar em um futuro é um recurso utilizado por ter se tratar de uma sociedade onde as mulheres são inférteis, apenas como um pretexto, não como uma condição absoluta. Ou seja, a idéia do diretor se aproximaria muito mais da definição de naturalismo com lados sombrios sendo explorados, porém, no futuro.

Cubículo com reportagens de jornal sobre catástrofes em diversos países

Tudo mudou e nada mudou. Houve um balanço entre passado (2006, data de lançamento do filme) e futuro (2027, data em que o filme se passa), os carros são parecidos com os do presente apenas com pequenas alterações, assim como os outdoors, os computadores, os transportes públicos, a arquitetura. A falta de planos muito fechados (praticamente não existem close ups no filme) mistura o ambiente com os personagens, todos parte de uma mesma catástrofe causada pelo ser humano.

Como Philip E. Wegner (2005) pontua, no naturalismo o homem é apresentado como animal, governado pelo seus instintos mais primitivos. Filhos da Esperança tem algumas características que se enquadram no movimento da distopia por volta dos anos 60/70 quando havia uma preocupação com o aspecto da superpopulação, decadência urbana e catástrofe ambiental, todos esses elementos presentes no filme, de uma forma ou de outra.

A detenção de alta tecnologia é restrita a uma elite e vem ligada de uma ideia de alienação total do indivíduo e controle do homem sobre a natureza de maneira pouco respeitosa tal qual retirar as tetas das vacas para produção de leite: um plano geral com um movimento de câmera travelling frontal que faz com que pareça que as vacas estão em um leito de hospital, sugerindo uma resposta para o porquê de as mulheres serem inférteis, culpa da própria raça humana.

Tecnologia desenvolvia requer que se arranque parte das tetas das vacas para a retirada do leite

Entretanto, diante do cenário crítico que a Terra se encontra daqui a onze anos, o título em português tenta dar conta da essência do filme. Theo, protagonista clássico, encontra-se abatido e desesperançado depois da perda de seu filho para uma epidemia que se alastrou anos antes. Porém, vê sua fé na humanidade restaurada no milagre da mulher grávida que desafia as leis naturais da sua época. Assim como no fim dos anos 80 surge um movimento alcunhado de “distopia crítica” (Philip E. Wegner 2005, p. 92), o qual vê os erros da humanidade, mas tenta arranjar formas de consertar esses erros, de transformar o futuro, um “otimismo militante” (MOYLAN 2001, p. 133). Após o choro de um bebê cessar fogo, monopolizar olhares e renovar esperanças em meio a um conflito, um final nada em aberto mostra Kee sendo encontrada com sua filha Dylan pelo barco chamado Tomorrow. A salvação da humanidade.

FICHA TÉCNICA

Título: Filhos da Esperança / Children of Men;

Direção: Alfonso Cuarón;

Elenco: Clive Owen, Michael Caine, Chiwetel Ejiofor, Julianne Moore, Danny Huston, Pam Ferris, Clare-Hope Ashitey…;

Roteiro: Alfonso Cuarón, Timothy J. Sexton, Mark Fergus…;

Cinematografia: Emmanuel Lubezki;

Edição: Alfonso Cuarón, Alex Rodríguez;

Música: John Tavener;

Produção: Hilary Shor, Iain Smith, Tony Smith;

Ano: 2006;

País: Inglaterra, Estados Unidos;

Gênero: Drama, Ação.

BIBLIOGRAFIA

RÉGIS, Fátima. Nós, ciborgues: tecnologias da informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Editora Champagnat, 2011.

SUPPIA, Alfredo Luiz Paes de Oliveira. A verdade está lá fora: sonre a retórica documentária no cinema fantástico ou de ficção científica . In: Revista Fronteiras- estudos midiáticos. 2011, pp. 20–31

SEED, David. A Companion to Science Fiction. Oxford: Blackwell, 2005, p 79–94

AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. 9ª edição. Campinas: Papirus, 2013, p 74

http://www.imdb.com/title/tt0206634/?ref_=ttfc_fc_tt http://www.comingsoon.net/movies/news/513840-exclusive_alfonso_cuaron_on_children_of_men

http://movies.about.com/od/childrenofmen/a/childac122006_2.htm

https://www.youtube.com/watch?v=l_WFtQV_Ek8

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