2112

Totalitarismo, Pensamento Coletivo e a Perda da Identidade

Juliana Andrade
Nexus: AOF
7 min readFeb 18, 2016

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2112 é um álbum conceitual lançado pela banda canadense Rush, em 1976. A música homônima de cerca de 20 minutos que inicia o álbum é considerada até hoje como um dos grandes clássicos do rock progressivo.

Baseada na obra de Ayn Rand (especialmente Anthem de 1937), a música conta a história, em 7 partes, de uma sociedade distópica e futurista, no ano 2112, governada pelo totalitarismo, onde a individualidade e criatividade são inexistentes. O protagonista, no entanto, inicialmente não tem consciência de tal fato e acaba descobrindo ao decorrer da história que sua vida era vazia sem a presença da arte e da liberdade, resultando em seu suicídio. Fato que, consequentemente, gera o questionamento na música sobre a prevalência do pensamento coletivo sob o individual dentro daquela sociedade como um todo.

O projeto ambicioso rendeu ao Rush seu primeiro sucesso comercial e liberdade artística de gravação. Na época, a gravadora Mercury os pressionou a fazerem músicas mais “radiofônicas” e curtas, pedido completamente ignorado pela banda, e que também os rendeu duras críticas na época.

O álbum é repleto de simbolismos e metáforas que refletem não somente a condição em que a banda se encontrava em relação à gravadora, como também seu interesse em escritos literários, ficção científica e diferentes experimentações estilísticas ao decorrer das músicas.

Poster promocional da Mercury de 1976

“Overture” e “The Temples of Syrinx”

As partes I e II de 2112 se apresentam como o setting do universo a ser explorado. A primeira parte, “Overture”, é basicamente instrumental, incorporando elementos das outras partes, assim como uma adaptação da “Abertura de 1812” de Tchaikovsky. A única frase proferida é “And the meek shall inherit the earth” (ou “Os mansos/humildes herdarão a terra”), em referência ao Novo Testamento.

Já em “The Temples of Syrinx” há a explicação e apresentação de quem são as figuras autoritárias - no caso, “The priests of the temples of Syrinx” (“os Sacerdotes dos templos de Syrinx”). Fica evidenciado através da letra que “todas as dádivas da vida” são guardados nos Templos, e tudo é controlado por seus computadores que preenchem as paredes dos mesmos.

“We’ve taken care of everything
The words you hear the songs you sing
The pictures that give pleasure to your eyes”

“Nós tomamos conta de tudo
As palavras que você ouve e as canções que canta
As imagens que dão prazer a seus olhos”

É durante esse momento inicial que somos apresentados à ideia de distopia na obra, mostrando uma “sociedade consideravelmente pior àquela contemporânea” onde se insere o leitor - ou, no caso da música, o ouvinte. O totalitarismo também se mostra presente a partir da figura dos “Priests”, seguindo o modelo dos regimes vigentes durante a Segunda Guerra Mundial.

As construções melódica e vocal são intensificados durante a aparição dos “Priests”, como forma de refletir a tensão e distorção do mundo causado por esses personagens, misturando o rock progressivo com heavy metal em diversos momentos de fala dos mesmos.

A aparição destes personagens também evoca a ideia da alienação social e a constante vigilância presente dentro da sociedade descrita na música, conceito que dialoga diretamente com problemáticas exploradas no universo da ficção científica. Em 1984, de George Orwell, por exemplo, há a exploração da constante vigilância na figura do “Grande Irmão” - já na música, a mesma percepção se apresenta com o governo instaurado pelos “Priests” e sue poder de censura.

“Discovery” e “Presentation”

Encarte do álbum contando um relato do protagonista

A partir de “Discovery”, parte III de 2112, o foco é alterado para o protagonista da história, que permanece anônimo até o final da música.

A reviravolta no enredo acontece, então, no momento em que o protagonista encontra um instrumento musical antigo (um violão) em uma caverna e percebe que se trata de um artefato anterior à época em que os “Priests” controlavam a sociedade. Durante esta parte, ele descreve seu fascínio pelo som, e enquanto tenta afinar as cordas do mesmo, reflete sobre a pureza daquele momento e seu novo desejo em mostrar aos “Priests” sua descoberta.

Durante “Discovery”, o protagonista simplesmente se apresenta e a seu novo interesse no instrumento recém descoberto. Ele permanece na crença de que é feliz naquele mundo e de que o governo mantido pelos “Priests” é bom. Essa passagem fica ainda mais evidenciada na letra quando ele acredita que será “parabenizado” por sua descoberta:

“I can’t wait to share this new wonder
The people will all see its light
Let them all make their own music
The Priests praise my name on this night”

“Mal posso esperar para compartilhar esta nova maravilha
Todas as pessoas verão sua luz
Permitam-nas fazer sua própria música
Os Sacerdotes celebrarão meu nome nesta noite”

É então em “Presentation”, na parte IV, que todo o setting começa a se tornar claro ao protagonista. Além de ter suas ideias rejeitadas, os “Priests” destroem o violão como forma de punição e censura e deixam claro que criação de música “é uma perda de tempo”.

É possível traçar um paralelo com outras obras literárias a partir deste ponto, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, por exemplo - onde as autoridades não permitem a leitura de livros - ou até mesmo em Minority Report, de Philip K. Dick, que questiona a autonomia e o livre arbítrio numa sociedade que vive em constante vigilância. No caso de 2112, o protagonista só se dá conta de sua situação neste momento. Até então, ele claramente acreditava que a paz reinava através dos cuidados dos “Priests”, e é também a partir daqui que ele começa a refletir sobre sua vida e sentimentos, assim como o papel do governo na sociedade.

A problematização também se encontra na ideia de que o “coletivo” prevalece sob o “individual”. Na música, os “Priests” tentam, através do uso da força (característica marcante de regimes autoritários), passar a mensagem ao protagonista de que não é beneficial à sociedade que as pessoas tenham liberdade para fazer música (ou qualquer outro tipo de liberdade). Eles manipulam o protagonista: “Just think about the average/ What use have they for you?” (“Apenas pense nas pessoas comuns/ Que utilidade elas têm para você?”), fazendo-o acreditar que são, de fato, a voz da maioria, e que ninguém teria uso para o instrumento. Alguns dos fortes questionamentos que prevalecem são sobre até que ponto um governo pode ser a voz de uma sociedade inteira e interferir na liberdade individual de escolha das pessoas, ou, até que ponto esse mesmo governo consegue manipular a sociedade sobre o que é certo ou errado para se manter no controle.

“Oracle: The Dream”, “Soliloquy” e “Grand Finale”

É durante a parte V, “Oracle: The Dream”, em que, tomado por uma severa tristeza, o protagonista retorna a sua casa. Este é o momento de confrontação do personagem com todos os aspectos de seus sentimentos que até o momento foram inexplorados, e também mais uma metáfora para “a morte da arte e do individualismo”.

Ainda durante esta parte, a história nos revela que, ao dormir, o protagonista tem um sonho com um Oráculo, que o mostra uma sociedade livre, onde as pessoas tocam sua própria música tendo sua liberdade preservada. É também revelado pelo sonho que as pessoas dessa sociedade livre já viveram anteriormente onde se encontram os Templos, e que estariam se fortalecendo para retornar a seu lar de origem.

É em “Soliloquy”, enfim, que após uma severa depressão causada pelo sonho, o protagonista retorna ao local onde encontrou o violão e tem seus últimos pensamentos antes de cometer o suicídio, evidenciando sua sensação final de desespero.

“Just think of what my life might be
In a world like I have seen
I don’t think I can carry on
Carry on this cold and empty life”

“Pense em como poderia ser minha vida
Em um mundo como aquele que eu vi
Eu não acho que consigo suportar
Suportar essa vida fria e vazia”

O suicídio aqui vem junto a ideia de ambiguidade, uma vez que, em seu desespero por liberdade e viver em mundo como aquele do sonho, o protagonista finalmente se “liberta” das correntes ideológicas em que vivia, mesmo que de maneira trágica. Por outro lado, esse ato também faz prevalecer a percepção de que a liberdade é “derrotada” pelo autoritarismo - o “individual” é destruído perante o “coletivo”.

A parte VII, conhecida como “Grand Finale” é acompanhada de mais um momento instrumental, seguida eventualmente pelas frases “Attention all planets of the Solar Federation” (“Atenção todos os planetas da Federção Solar”) e “We have assumed control” (“Nós assumimos o controle”), dando um final ainda mais ambíguo ao fechamento da saga. O baterista e escritor da música, Neil Peart revelou que sua intenção era fazer o final parecer mais “positivo”, já que as pessoas foram aparentemente libertadas da tirania da “Solar Federation” dos “Priests”. Porém, não fica claro em momento algum sobre quem assumiu o controle ou se, com esse acontecimento, o mundo melhoraria ou não - o conceito da distopia permanece.

Simbolismo

Rush em turnê em 2012, tocando 2112 com o logo “Starman” ao fundo

Um dos símbolos mais fortes do álbum, que permanece popular entre os fãs até hoje, é o “Starman” - um homem nu de frente para uma estrela vermelha. Também de acordo com Peart, o homem reflete a pureza e o pensamento abstrato, ao passo que a estrela representa o pensamento coletivo e das massas - mais uma metáfora para representar o protagonista e os “Priests” descritos na música, tendo a estrela como símbolo da organização a qual pertencem.

O álbum inteiro (embora nem todas as músicas restantes sejam diretamente conectadas à história original de 2112) é uma obra de reflexão em relação à sociedade, à abdicação do individualismo e da arte, e, a seu modo, também uma crítica à indústria fonográfica durante aquela época. Além de ter sido a porta de abertura à própria liberdade da banda, que os rendeu muitos sucessos posteriores e a continuação de seus modelos de álbuns conceituais misturando a literatura, ficção científica e até mesmo a fantasia.

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