A Ascensão dos Oprimidos

Uma análise sobre o filme Ex_Machina

Caio Melo
Nexus: AOF

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- Contém Spoilers -

A Inteligência artificial, tema recorrente na cinematografia de ficção científica — tendo sua primeira aparição sendo no filme expressionista Metropolis (Fritz Lang, 1927) — é constantemente utilizada para produzir questionamentos sobre a humanidade. Por trás da alegoria se escondem temas como a luta de classes, e é sob essa perspectiva que analisarei o filme Ex_Machina.

Ex_Machina é um filme de ficção científica britânico lançado em 21 de janeiro de 2015 escrito e dirigido por Alex Garland. Por ser uma produção independente, seu orçamento foi baixo se comparado a outras produções do gênero (apenas $15 milhões). Seu roteiro repleto de diálogos fortes e a atuação dos protagonistas renderam à obra diversas indicações, como a de melhor roteiro do Oscar e 5 indicações diversas no Bafta.

O filme, que se passa em um futuro bastante próximo — talvez até na atualidade —, começa quando Caleb (interpretado por Domhnall Gleeson) ganha um suposto sorteio interno da empresa na qual ele trabalha como programador, a Blue Book — análoga ao Google, dentro da verossimilhança do filme, por ser uma engine de busca que colhe dados de seus usuários — , que presentearia uma estadia de 7 dias na casa do fundador da empresa.

Lá, Caleb conhece Nathan (interpretado por Oscar Isaac), seu CEO, que, mais tarde, revela para ele o real motivo de ter sido escolhido: ele não fora o vencedor de um sorteio, foi escolhido para ser o fator humano em um Teste de Turing. O Teste de Turing testa a capacidade de uma máquina exibir comportamento inteligente equivalente a um ser humano, ou indistinguível deste. Nathan vive recluso porque está desenvolvendo um robô com inteligência artificial perfeita, e o papel de Caleb é justamente testá-la.

O filme é dividido em sete sessões (uma para cada dia) com Ava (interpreada por Alicia Vikander), a ginóide criada por Nathan. Em cada sessão, Caleb tem que interagir com ela, testar até onde sua inteligência vai. Nathan observa tudo o que acontece pelas câmeras — exceto quando acontecem as quedas de energia.

Quando a energia cai, tudo desliga, as portas se trancam e uma luz vermelha acende. Uma dessas quedas ocorre durante a segunda sessão, é então que Ava se mostra mais que um simples robô; ela alerta Caleb sobre as mentiras de Nathan. Esse é o ponto de virada do longa, quando o funcionário começa a desconfiar de seu chefe.

O corredor claustrofóbico é bastante presente no filme

Quando chega na reclusa casa de seu superior, Caleb se depara com uma casa bastante esquizofrênica, no sentido de possuir locações abertas, com vista para a natureza, e salas e corredores subterrâneos e fechados, que passam uma sensação claustrofóbica. Essa sensação claustrofóbica se reforça a partir de certos enquadramentos.

Os enquadramentos utilizados — praticamente todos simétricos — procuram exaltar dois aspectos: (1) o cenário apertado, que passa uma sensação de enclausuramento causada pelos corredores com paredes que parecem não ter portas e pelas cenas com luz vermelha e (2) as feições dos personagens, cuja proximidade transmite uma intimidade para com o espectador—fator que se mostra desde a primeira cena do filme, quando Caleb ganha o sorteio.

Simetria é uma das principais características estéticas do longa

Para aliviar a tensão, há um conjunto de cenas externas. As árvores e as cachoeiras tomam o lugar da casa predominantemente cinza e servem de cenário para conversas entre Nathan e Caleb. Além dessa função de fuga, é interessante pensar na relação entre a singularidade proposta por Nathan — a evolução da humanidade na forma de uma inteligência artificial perfeita em um corpo melhor que o humano — e os arredores do seu laboratório; essa dicotomia entre a locação remota e o laboratório em que Ava é criada pode fazer alusão à bíblia no sentido de algo maravilhoso ser desenvolvido onde antes não havia nada — como Aslan criando Nárnia, por exemplo.

Algumas das cenas externas
Dancinha fazendo referência a Pulp Fiction

Conforme a trama se desenrola, o telespectador vai entendendo mais sobre o universo diegético do longa, que não é entregue de primeira, característica das ficções imersivas. Os diálogos do filme são o prinicpal ponto forte, que rendeu à produção a indicação de melhor roteiro original no Oscar de 2016. Ava é uma personagem incrível do início ao fim, instigando e enganando tanto Caleb quanto o espectador do filme a todo momento. Outros aspectos interessantes do filme são suas diversas referências a grandes obras, como Jornada nas Estrelas e Pulp Fiction.

Talvez a única parte do diálogo que peque em comparação às outras é a parte didática do roteiro. Caleb é um personagem questionador, todas as dúvidas que ele poderia ter — e, consequentemente, dúvidas do próprio espectador — são perguntadas e respondidas logo em seguida. E isso inclui questionamentos sobre os jargões científicos; tudo é explicado minuciosamente, como se o espectador não possuísse bagagem para entender o que foi exposto.

Ao longo do filme, vamos percebendo que Nathan não é uma pessoa muito sã. O prepotente cientista está sempre bebendo, sempre vigiando e sempre abusando de Kyoko, sua empregada japonesa que “não entende uma palavra de inglês”. Durante o filme todo ela é destratada e objetificada pelo empregador. O cientista durante todo o filme oprime Kyoko, a colocando “no seu devido lugar” como empregada, como servente dele.

Uma das ginóides anteriores à Ava tentando escapar do cárcere

E não é só com Kyoko que o personagem é abusivo; em certa altura do filme, Caleb embebeda seu chefe e consegue entrar na sua sala de observação. Navegando no computador, ele acha arquivos de vídeo que mostram como Nathan tratava as ginóides anteriores a Ava, como ele, mesmo sabendo que elas se sentiam enclausuradas, as mantinha em cativeiro. Após essa sequência, há uma cena de Caleb com Kyoko bastante forte: Kyoko, retirando sua pele artificial, revela que também é um robô, que também possui inteligência artificial e entende mais do que está ao seu redor do que seu criador imagina.

Kyoko revelando a Caleb sua identidade

O mais interessante no filme é a crítica que ele se propõe a fazer. A “ascensão dos oprimidos” que ele arquiteta, com os robôs contornando os humanos com sua inteligência superior, faz uma analogia com praticamente todos os tipos de opressão da atualidade, principalmente levando em conta a maneira que Nathan diminui Kyoko, ação essa que exemplifica sua relação com as ginóides anteriores — o cientista age de maneira autoritária, sem perceber que suas criações possuíam necessidades, o que chega até a ser irônico: Nathan fecha os olhos para a “humanidade” das ginóides, sendo que o que ele almejava era a criação da mesma. Essa alusão não é novidade na ficção — a relação entre as ginóides e Nathan pode ser comparada à relação entre a Capital e os distritos mais pobres dos Jogos Vorazes, por exemplo –, mas é realizada de uma maneira interessante por tratar de “raças” diferentes (robô X humano). O animismo — atribuição de alma a seres inanimados — causa um efeito dualístico de distanciamento e empatia para com o ser em questão.

Torcemos por Ava por ela ser humana, mas sem a carga negativa que o ser humano traz. Um efeito recorrente em produções em que todos os protagonistas são animais (ex.: My Little Pony) humanizados. Segundo Paul Wells diz em seu livro The Animated Bestiary, produções de animais antropomorfizados funcionam como um canal para “significados historicizados e ideologicamente carregados”. A empatia acontece porque, apesar das problemáticas serem semelhantes às problemáticas reais da humanidade, os personagens não possuem o estigma de ser humano.

Em determinado momento do longa, já sabendo dos planos de fuga de Ava e Caleb, Nathan tenta convencer seu funcionário de que não é uma boa idéia o realizar. A discussão vai além de ela ter ou não a capacidade de gostar dele, o ponto é se ela está fingindo que o faz ou não.

Durante o filme, o espectador é levado a acreditar que a relação entre Ava e Caleb é genuína. A inteligência artificial dela é perfeita, o Teste de Turing foi um sucesso! O filme cria uma tensão na hora em que o plano de fuga é posto em ação, quando Nathan ameaça estragar tudo, o espectador se pega torcendo para que ele não consiga. No clímax, nos é revelado que Ava estava enganando Caleb o tempo todo, o utilizando como um meio de fugir para a sociedade. Nathan não estraga tudo, mas as coisas não acabam tão bem quanto Caleb gostaria, uma vez que Ava o deixa trancado na instalação enquanto parte para explorar o mundo de fora, em uma cena bela e filosófica fazendo alusão à história de “Mary no quarto preto e branco”, que Caleb conta para Ava em uma das sessões.

Na história, Mary era uma cientista que sabia tudo que era possível saber sobre cores (comprimentos de onda, efeitos neurológicos e todas as outras propriedades), mas nasceu e nunca saiu de um quarto preto e branco. Um dia, alguém abre a porta possibilitando que Mary saia de lá. Ela vê o céu azul e, nesse momento, aprende uma coisa que seus estudos nunca poderiam lhe ensinar — ela aprende como é ver as cores. Caleb explica que essa história é feita para ilustrar a diferença entre um computador e uma mente humana. O computador é a Mary no quarto preto e branco, enquanto a mente humana é quando ela sai de lá.

Os momentos finais do longa, quando Ava some na multidão

A transição de máquina para humano é representada na longa sequência em que Ava sai da instalação. Quadro-a-quadro, Mary saindo do quarto é representada por Ava na natureza, numa calçada repleta de transeuntes… Ava se liberta das amarras de robô, sem ainda ser humana, Ava é algo novo, algo melhor.

Ficha Técnica

Título: Ex_Machina (Original)
Ano de Produção: 2015
Dirigido e roteirizado por: Alex Garland
Estreia: 21 de Janeiro de 20015 (Reino Unido)
Duração: 108 minutos
Gênero: Ficção Científica
Países de Origem: Inglaterra

Referências

Wikipedia — Ex Machina (film)

Wikipedia — Metropolis (1927 film)

ROBERTSON, Venetia Laura Delano: “Of ponies and men: My Little Pony: Friendship is Magic and the Brony fandom”

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