A utopia distópica de Rapture

Como a cidade de Bioshock foi de capital da prosperidade a capital da ruína

Luiz Gabriel Monteiro
Nexus: AOF

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Qualquer um que tenha jogado Bioshock (2K Games, lançado em agosto de 2007) e não tenha prestado atenção na história (o que é muito difícil, tendo em vista a beleza e complexidade da mesma) pode achar estranho o termo utopia ser aplicado nela. Afinal, assim que chegamos à cidade fictícia do jogo, vemos vários elementos de horror, o tipo de lugar que ninguém gostaria de sequer passar um fim de semana. Mas à medida que avançamos no jogo descobrimos que Rapture não foi sempre assim.

Para Darko Suvin, crítico de ficção científica, a definição de utopia é “a construção verbal de uma comunidade particular quasihumana onde instituições sociopolíticas, normas e relações individuais são organizadas de acordo com um princípio mais perfeito que a comunidade do autor”. O termo se derivou do livro homônimo de Thomas More, de 1516, onde ele descrevia algo que na visão dele era a sociedade ideal. A palavra utopia atualmente serve como sinônimo de um lugar que beira à perfeição, mas muito difícil (ou impossível) de alcançar.

Andrew Ryan

Mas antes de falar da cidade, é preciso falar de seu idealizador diegético. Andrew Ryan, nascido em 1911 na Rússia, sob outro nome, era forte defensor da lógica individualista, acreditava piamente na meritocracia e repudiava fortemente o comunismo de seu país. Fugiu então para os Estados Unidos, e com seu intelecto genial, conseguiu prosperar e ganhar muito dinheiro em pouco tempo, criando grande afeição por sua nova pátria. Afeição que foi posta à prova quando programas sociais se alastraram nos anos 30. Na sua visão, as pessoas só mereciam aquilo que conquistavam com seus próprios esforços, aqueles que conseguiam de qualquer outra forma não passavam de parasitas se aproveitando do esforço alheio. A gota d’água, entretanto foi no final da Segunda Guerra Mundial, com a explosão de Hiroshima. Aquilo representou na visão de Andrew a deturpação dos ideais científicos, dando aos parasitas a habilidade de destruir aquilo que não conseguiam conquistar.

Um ano após o final da Segunda Guerra, foi dado início à construção de Rapture, uma cidade subaquática localizada no fundo do Oceano Atlântico. Pronta em 1951, Ryan convidou os maiores intelectuais de sua época para morar na cidade, aqueles que ele considerava dignos de levar a lógica do empoderamento individual à diante. Seu objetivo era criar uma sociedade onde

“o artista não temerá o censor, o cientista não será limitado pela moralidade mesquinha, onde o grande não será limitado pelo pequeno.”

Rapture tinha o objetivo de ser um lugar onde o capitalismo radical prevaleceria aliado a uma total liberdade econômica, onde aqueles que conseguissem seus ganhos não teriam que dividi-los com os parasitas que queriam se aproveitar dos outros. Livre da religião, do governo, e de qualquer outra instituição que queira impedir os avanços capitalistas.

O lema de Rapture — “Sem deuses ou reis. Apenas homens.”

Por um tempo Rapture cresceu muito economicamente, além de possuir estabilidade política. Na visão de seu criador, a mais perfeita das utopias. Aqueles indivíduos fortes o suficiente poderiam prosperar sem medo, a alta-classe vivia seus anos dourados e várias descobertas científicas foram feitas, principalmente a descoberta do ADAM, uma substância encontrada em lesmas marinhas ao redor da cidade. O ADAM possui o potencial de curar pessoas ou reestruturar o DNA humano, capaz de dar habilidades sobrenaturais a um indivíduo, produto que começou a ser comercializado com o nome Plasmid. Mas o sonho de Ryan tinha data de expiração. Vários foram os fatores que contribuíram para o início da Guerra Civil de Rapture (alguns deles serão tratados mais à frente), e logo em seguida, sua ruína.

Splicer — como ficaram conhecidos os viciados em ADAM

E sua ruína foi devastadora. É durante esse período que o protagonista do jogo chega à cidade, deparando-se com um estado de caos e decadência. Uma verdadeira distopia. Se utopia é a comunidade a que todos almejam, distopia é o seu oposto. De acordo com o teorista político Lyman Tower Sargent distopia é “uma sociedade consideravelmente pior do que a sociedade em que o leitor vive”. Aqueles que sobraram em Rapture são meras sombras daquilo que já foram um dia. Perderam totalmente a noção de realidade devido ao abuso do ADAM, que se provou fortemente viciante, sua abstinência causando deformações — tanto físicas quanto mentais — e atacam qualquer um em seu caminho, procurando qualquer resquício da substância. Não há autoridades ou a quem pedir proteção. Qualquer perspectiva de viver uma vida pacífica foi totalmente eliminada. O sonho de Andrew Ryan falhou miseravelmente — uma cidade arruinada para ser esquecida para sempre no fundo do oceano.

Mas afinal, quais foram os fatores para essa queda de Rapture? Ryan tinha realmente as coisas sob controle ao criá-la, ou era apenas um iludido em busca de uma utopia inalcançável? Dentre os problemas da cidade, um dos maiores (ou talvez o maior impulsionador para a guerra civil) foi a imensa desigualdade social. Ao criar uma sociedade repleta de cientistas, artistas, e todo o tipo de gênios de alta-classe, era preciso outros para assumir tarefas que eram desdenhadas por essa elite, trabalhos de baixa renda, criando assim um imenso abismo entre as classes. Segunda a ótica de Ryan, um indivíduo só precisa de força de vontade para alcançar a prosperidade, àqueles parasitas que se aproveitam dos outros, lhes faltam determinação. Se aceitarmos pensar por esse ângulo e que esses indivíduos mudariam de profissão, seria sempre necessário outros para assumi-las, uma vez que são indispensáveis. Causando o paradoxo de que os mais pobres ao se tornarem mais ricos necessitariam de outros indivíduos realizando sua antiga função. Uma vez que a melhora dos salários desses trabalhadores braçais não é uma opção, por eles precisarem de seus empregos para conseguir sobreviver, mesmo que a contragosto, continuariam trabalhando e assim o ciclo se repetiria infinitamente, onde sempre haverá desigualdade social.

Cartaz de propaganda encontrado em Rapture

Outro ponto que culminou na queda de Rapture foi o banimento de religiões e governo. Ao proibir a primeira, Ryan alimentou um mercado negro de contrabando de artigos religiosos. Muitas pessoas se recusavam a abandonar suas religiões, praticando-as em segredo. Ao bani-las, ele feriu com um dos conceitos da cidade, o de liberdade de escolha e de expressão. Com a ausência do governo, o poder se tornou algo instável. Andrew era praticamente visto como o governante de Rapture, mas seu poder não era absoluto. Entre seus rivais “políticos” estava a doutora Sofia Lamb, psiquiatra e que tinha uma visão de utopia quase contrária à de Ryan. Ao invés do individualismo, ela pregava o coletivismo, que as pessoas se unissem para alcançar o “bem comum”. Numa tentativa de minar a influência que a doutora foi ganhando na cidade, principalmente com os mais pobres, Andrew realizou debates contra ela. O efeito entretanto, não foi como ele imaginou, e ela ganhou mais força, obrigando-o a recorrer a outros meios e conseguir orquestrar sua prisão. Seu outro principal adversário era Frank Fontaine, empresário por trás de uma rede de pescarias, mas que serviam de fachada para seus contrabandos de itens ilegais. Fontaine, por ter criado apartamentos para a população mais pobre da cidade, conseguiu bastante influência com eles, e usou-a para fomentar a guerra civil, sendo seu maior agente catalisador. Sem governo, não havia um poder capaz de colocar fim às disputas.

Big Daddy (à esquerda) e Little Sister (à direita)

A ausência da moral também teve seu impacto nessa sociedade. Avanços científicos foram feitos, mas o custo pode ter sido muito alto. Vale a pena realizar avanços para a humanidade se o custo disso for perder aquilo que nos torna humanos? Como dito acima, a produção em larga escala de ADAM se dava de um modo macabro. O único jeito encontrado era inserir essas lesmas no estômago de crianças pequenas do sexo feminino (que ficaram conhecidas como Little Sisters — ou Irmãs Pequenas), e desse modo, fazendo-as ingerir o ADAM de corpos mortos. Para forçar meninas pequenas a realizar essa tarefa que seria considerada medonha e impraticável até por adultos, era realizada hipnose nessas garotas, que viam um mundo extremamente colorido e brilhante e acreditavam que os corpos na verdade eram anjos. Não bastando a crueldade realizada com essas crianças, ainda usavam presidiários como guardiões delas. Não simples guardiões, mas humanos que tiveram seus órgãos fundidos em trajes de mergulhador, suas vozes modificadas a ponto de impedir a fala normal e seu cérebro totalmente apagado, deixando-lhes apenas um objetivo, proteger as Little Sisters não importa como. Esses são os famosos Big Daddies (algo como Grandes Pais — o maior ícone do jogo, junto com as Little Sisters), seres cuja existência, depois de ligados às meninas, se resume em cuidar delas, a quem são conectados através de laços mais fortes do que os laços de pais e filhas. Ambos os experimentos foram apenas alguns daqueles feitos com seres humanos em Rapture (e ambos sem o consentimento dos experimentados) e mostram o perigo que uma sociedade sem regras morais pode ter.

No fim, Rapture tornou-se uma prisão submarina para desafortunados que sonhavam viver uma utopia. Mas será que uma cidade pode ser considerada uma utopia quando apenas uma parcela de sua população vive no paraíso e o restante é olhado de cima enquanto tem condições de vida muito piores? Uma distopia eminente que, como a cidade a qual foi espelhada — a lendária Atlântida –, apesar de todos seus avanços tecnológicos para seu tempo, no fim, caiu em desgraça e foi engolida pelas águas, perdida para sempre.

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