Brazil - O Filme

E O Incrível Estado Falho de Terry Gilliam.

Raul Carneiro
Nexus: AOF
9 min readJan 26, 2016

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Polêmico por criticar as sociedades e suas instituições como um todo em seus filmes (quase sempre se utilizando das comédias nonsenses), em 1985 Terry Gilliam dirige seu primeiro longa do rico gênero da ficção científica, gênero ao qual ele revisitou muitas vezes em seus trabalhos posteriores. A obra em questão é Brazil — O filme, uma comédia Britânica de ficção científica escrita por Charles McKeon, Tom Stoppard e Terry Gilliam. O roteiro acompanha o protagonista Sam Lowry (Jonathan Pryce), um funcionário de médio nível do governo, vivendo em um futuro imaginado dentro de algum momento do século XX, onde o estado controla e vigia todas os âmbitos da vida privada dos cidadãos, sua vida começa a mudar e ganhar muitos aspectos dramáticos quando seu chefe descobre um erro burocrático, colocando assim a eficiência e a estrutura da divisão de Recuperação de Informações em Xeque.

Brazil foi filmado em 1984 em paralelo com o longa 1984 de Michael Radford, baseado no livro homônimo de ficção científica de George Orwell. As duas obras guardam muitos pontos em comum e pertencem a um subgênero da ficção científica, popularizado nos anos 60, conhecido como New Wave. O New Wave é onde a ficção científica deixa de lado o fascínio e encantamento pelos avanços tecnológicos, passando a explorar suas implicações sociais, onde mundos novos e exóticos são substituídos por futuros caóticos, distópicos e geralmente vítimas de instituições governamentais violentas.

Enquanto George Orwell em seu romance nos apresenta um Estado vigilante, milimetricamente projetado para ser assustadoramente eficaz, através do controle de sua população, o peculiar da obra de Gilliam é que seu estado sequer funciona, sua burocracia exacerbada afoga seus agentes em infindáveis formulários, mas é também o único motivo que garante sua existência, funcionando como objeto de repressão e afastamento os cidadãos que são empurrados de divisões a divisões com suas reclamações. Não é difícil traçar um paralelo entre as instituições de poder hoje existentes e a fantasia do diretor, com ferramentas de governo já ha muito tempo extremamente burocratizadas, onde inúmeros erros são cometidos porém devido as leis de autopreservação das grandes organizações é quase impossível se atribuir a culpa.

Em seu livro “Nós, Ciborgues — tecnologias da informação e subjetividade homem-máquina”, a autora Fátima Régis fala da mudança no modo de se fazer ficção científica pós segunda guerra e o lançamento das bombas atômicas:

“A desilusão com a ciência, os movimentos de contracultura e a liberdade de expressão são alguns dos fatores responsáveis pelas mudanças acentuadas no modo de se conceber e produzir a literatura de ficção científica em meados da década de 60, sintetizadas pelo nome de New Wave”(Régis,2011,p.21).

Essa desilusão com a ciência é um sentimento trabalhado durante o filme, em seu mundo, a tecnologia flui por onipresentes tubos, responsáveis por gerenciar todas as ações do dia a dia, como, café da manhã, banho e aquecimento, porém como tudo dentro da distopia de Gilliam ela não é nada funcional. Sempre defeituosa se torna mais um estorvo que um conforto para os habitantes do futuro. Novamente voltando às comparações com 1984, os autores das duas obras veem a tecnologia como uma futura forma de controle da população, divergindo novamente no ponto de se ela vai funcionar ou não. Os dois se apegam à uma crítica muito comum do estilo New Wave, onde a dependência e o inevitável crescimento tecnológico passam a dominar a vida humana.

Sam após uma avariação no sistema de temperatura de seu apartamento.

Após o surgimento do New wave e o novo modo de pensar ficção científica, os estudiosos do gênero começam a tentar classificá-lo entre Hard e Soft de acordo com seu engajamento científico. Essas diferenciações ficam claras na fala de Fátima Régis

Alguns autores e estudiosos do gênero adotam a classificação entre ficção científica hard e soft. A primeira utilizaria temas pertencentes ao campo das ciências teórico-experimentais, como a física, a biologia, a química, a astronáutica e a cibernética. Já a ficção científica soft trabalharia com conceitos das ciências sociais e humanas: psicologia, história, sociologia, comunicação, filosofia, entre outras.”(Régis,2011,p.23).

Brazil se encaixa na categoria soft, pois explora o lado humano dentro da ficção científica, usando como plano de fundo e base para sua crítica, uma distopia onde muitos aspectos são exacerbados para criar críticas à sociedade de sua época, como a mecanização do mundo e a crescente claustrofobia vinda da evolução do sistema capitalista, representadas no filme através dos minúsculos escritórios onde os funcionários trabalham e as cenas onde cria de maneiras nonsense, alegorias para representar as inconstâncias do sistema em que vivemos.

Onde a Obra de Gilliam se diferencia da maioria das obras do gênero, até mesmo, do estilo New Wave, está na presença de elementos surrealistas serpenteando a trama principal, como a construção de uma utopia, dentro de sua distopia. Essa utopia existe nos sonhos do protagonista Sam, onde ele se vê como um cavaleiro alado, livre de quaisquer amarra do mundo amargo e claustrofóbico, presente em sua realidade, indo de encontro a sua musa, a qual se encontra voando pelos céus, envolta em lençóis brancos. O mundo particular de Sam é esteticamente criada para remeter um sentimento bucólico, aspecto muito encontrado nas narrativas críticas aos avanços científicos, onde uma possível cura aos males da sociedade, mora no se retroceder aos “bons tempos”. A utopia é sempre acompanhada da repetida trilha sonora que dá nome ao filme, Aquarela do Brasil de Ary Barroso (Música a qual Terry Gilliam declarou ter se apaixonado e seria a única explicação para o nome de seu filme).

O mundo analisado nós é apresentado logo após uma explosão, com um expressivo letreiro em neon formando o nome do filme. Seguindo a trama, Gilliam nos presenteia com uma cena que ilustra como funcionam as ferramentas governamentais de seu mundo. A câmera passeia pelo corredor em um prédio do governo, onde funcionários apressados e atarefados, exercem sua função de modo robótico e eficiente, enquanto são observados por um líder impassível. Quando esse líder deixa a sala e entra em seu escritório, todos os funcionários deixam seus afazeres e se unem em frente aos monitores mais próximos para assistirem um filme. Essa cena se repete toda vez que o chefe entra e sai de seu escritório.

A problemática inicial que move os acontecimentos e desdobramentos de roteiro, se deve à entrada de um inseto em um dos computadores da sessão de Recuperação de Informações, gerando um erro em uma emissão de mandato de apreensão do terrorista e engenheiro térmico Tuttle (Robert De Niro), para o inocente Sr. Buttle (Brian Miller).

O desenrolar do erro é visto na cena da prisão do Sr. Buttle, onde uma invasão em pleno natal se dá por policiais em uniformes negros e mascarados, a invasão também é uma cena muito característica do filme, se repetindo de forma quase idêntica, sempre quando há uma intervenção das forças policiais. As invasões, são resultado violento de um sistema, falho até no ato de reprimir os que fogem às suas regras, tratando com truculência aqueles que vivem sobre seu domínio. Clara critica aos governos fascistas vigentes na época e ainda vistos até espalhados pelo mundo contemporâneo.

A atriz Katherine Helmond dá vida à matriarca de alta classe, excêntrica e viciada em cirurgias estéticas, mãe do protagonista, a personagem foi construída como uma critica escrachada, às buscas incessante pela perfeição estética, a busca desenfreada para deter os efeitos do tempo, as excentricidades e perda de empatia dos altos escalões sociais.

A personagem é apresentada em uma das talvez cenas mais marcantes e exageradas do filme, onde seu cirurgião puxa e estica a pele da personagem, já muito danificada e elástica devido a muitos processos cirúrgicos. A personagem usa uma sucessão de chapéus em forma de sapatos e protagoniza a cena, onde atentados terroristas explodem um restaurante onde está almoçando, não gerando comoção alguma aos que estavam presentes e não foram atingidos,os garçons pedem desculpa pelo incomodo e estendem biombos para esconder os escombros. Essa cena ilustra uma temática recorrente do New Wave, a perda da empatia e o crescimento do blasé comum as altas castas.

Katherine Helmond

Cada vez mais envolvido com a trama e o desenrolar de acontecimentos ao longo do filme, Sam tem seu refúgio utópico, invadido por gigantes colunas que lembram gavetas, como pode ser observado no pôster do filme, fazendo ligação com seu pesadelo burocrático onde ele é obrigado a trabalhar e viver. Não há uma vontade inicial do personagem de mudar o sistema onde vive, Sam se encontra perfeitamente confortável em sua posição e seus únicos contatos com os rebeldes foi através do personagem de Robert De Niro, Harry Tuttle, quando o mesmo aparece para consertar seu sistema de refrigeração depois que a companhia governamental responsável se recusa, mostrando de forma novamente nonsense que essa era a atividade ilegal que o perigoso Tuttle exercia e o porque era procurado.

Depois de conhecer Jill Layton (Kim Greist), a personificação da musa que habita sua fantasia utópica, Sam se envolve em muitas tais ações consideradas rebeldes pelo estado e em uma fuga desnecessariamente destrutiva. Essa falta de motivação inicial, não reflete uma apatia do personagem para com os que sofrem com os erros do estado, por exemplo depois de se encontrar com a viúva do já sabido a esse ponto da história, falecido Sr. Buttle, o protagonista se mostra extremamente abalado, tendo reflexos desse episódio até em seus devaneios utópicos onde criaturas com rostos de bebês o acusam de ter sido negligente com a morte.

A faceta mais crua, amarga e a que mais engloba o espírito da ficção científica New Wave do filme, fica a cargo do também Ex-Python Michael Palin, atuando como o funcionário da Recuperação de Informações Jack, que se revela em uma cena exemplo dos gags que constroem o filme, onde uma escrivã digita tudo que é ouvido em uma sala fechada com extremo desinteresse, um torturador, o qual se utiliza de choques elétricos e o que mais for conveniente para extrair informações e confissões de quem é levado pelos soldados, final que infelizmente Sr. Buttle encontrou pelo erro gerado por um inseto. A presença do Jack, tem como objetivo também, inserir o personagem omisso, acusado de ter errado, ele se desvencilha da culpa e diz ter feito só seu trabalho, pratica muito comum aos funcionários de instituições abusivas.

O final do filme brinca com os sentimentos de esperança e desilusão apresentados durante o desenrolar dessa trama, recheada de alfinetadas a burocracia britânica e às diferentes formas de fascismo vividas em muitas sociedades, na época, no passado ou mesmo futuramente à construção do mundo retratado em Brazil. Devido a essa visão amargurada e da pouca comercialidade assistida no filme, Terry Gilliam enfrentou muitos problemas com os executivos da Paramount Pictures, os quais alegaram ser muito grande, amargo e com um final muito pouco atrativo ao grande público. Os executivos tentaram cortar o final e tornar o filme mais “leve” e “aventuresco”, gerando grande revolta a Gilliam, depois de muitas brigas internas, o diretor conseguiu entregar o final desejado, abrindo mão de 20 min cortados do filme. Seu objetivo ao entregar essa obra de ficção cientifica, da forma como foi feita e com o final, originalmente imaginado, fica bem explicitado na frase do próprio diretor: ‘’Nós não damos respostas, apenas apontamos para o óbvio que ninguém quer ver, de um modo engraçado. E quando as pessoas pegam-se rindo daquilo, esperamos que elas pensem: ‘Ei, eu não deveria estar rindo, isso é horrível!’’’.

Ficha Técnica

Gênero: Ficção Científica, Comédia, Drama.
Direção: Terry Gilliam
Roteiro: Tom Stoppard, Terry Gilliam, James Acheson.
Produção: Arnon Milchan.
Elenco: Jonathan Pryce, Robert De Niro, Katherine Helmond, Ian Holm, Michael Palin, Kim Greist…
Fotografia: Roger Pratt
Trilha Sonora: Michael Kamen
Duração: 132 min.

BIBLIOGRAFIA:

RÉGIS, Fátima. Nós, ciborgues: tecnologias da informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Editora Champagnat, 2011.

http://www.imdb.com/title/tt0088846/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Brazil_(filme)

http://www.epipoca.com.br/filmes/critica/6111/brazil-o-filme

http://filmow.com/brazil-o-filme-t2326/

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