“Eu faço o que faço porque gosto do que faço”

A moralidade e o poder da escolha em Laranja Mecânica

Lucas Benicá
Nexus: AOF
4 min readFeb 20, 2016

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Alcançando um público maior por causa da adaptação do cineasta Stanley Kubrick, a obra de Anthony Burgess por si só já é um grande clássico da literatura distópica. “Laranja Mecânica”, publicado em 1962 no Reino Unido, segue uma linha mais popularmente traçada por “Admirável Mundo Novo” (Aldous Huxley, 1932), “1984” (George Orwell, 1949) e “Fahrenheit 451” (Ray Bradbury, 1953). Apesar de não apresentar uma bibliografia amplamente conhecida como as dos autores citados e ficando restrito a esse único sucesso, Burgess se destaca por exibir um ponto destoante dentre as obras citadas: a sua maior atração é seu personagem principal.

“Laranja Mecânica” conta a história de Alex, um jovem de 15 anos que é membro de uma gangue que pratica violências diversas. O livro se passa numa visão da Inglaterra composta por Burgess a partir do surgimento de uma juventude mais presente e rebelde na sociedade que acabava por a amedrontar.

A adaptação cinematográfica de “Laranja Mecânica”, dirigida por Stanley Kubrick em 1971.

É fácil compreender o intuito de Burgess quando ele comenta a sobre as diferenças entre a sua obra e a adaptação fílmica de Kubrick de 1971. Esta recebe críticas de Burgess (1985), por “aparentemente glamorizar o sexo e a violência”, resultando em uma interpretação que frustra o autor ao ponto de arrepender-se de sua criação pois não era por ele pretendida¹.

Como Burgess (2012a) indica, a versão americana do livro omitia o último capítulo que mostra a completa redenção do personagem e Kubrick utilizou o final ambíguo do penúltimo capítulo para a sua adaptação (estaria Alex realmente curado?). O autor diz que “não há porque escrever um livro em que não existe uma possibilidade de transformação moral ou um aumento em sabedoria”. Consolandi [2015] diz que:

Uma vez que seu propósito moralizador vem à tona, claramente observamos a intenção da escrita de Burgess de não contar apenas um conto distópico acerca da ultraviolência de Alex, sua experiência na cadeia e redenção através do tratamento experimental de Ludovico […] para entreter seus leitores, mas para ensiná-los o que Kubrick definiu como uma lição de livre-arbítrio.

Sem o glamour acrescentado por Kubrick, Burgess propôs uma história de advertência. Com “Laranja Mecânica”, pretendia mostrar um jovem infrator arrependendo-se de seus atos e atentando-se à moral no final, então produzindo uma história de completa redenção. Porém seria Alex realmente um personagem imoral?

Capa da primeira edição de “Laranja Mecânica”.

Se com “Laranja Mecânica” pretendia apresentar ao leitor uma história de aprendizado, Burgess abre margem a algo diferente. Sua narrativa rica e bem escrita faz com que videar a vida de Alex não seja apenas um ato de julgamento, porém de imersão e identificação. Gioia [s.d] diz:

“Então alguém pode ler Laranja Mecânica como um olhar sobre a moralidade de um indivíduo. Outro pode entender como uma crítica à moralidade do Estado.”

No final, o Estado é o grande vencedor. Alex, após as duras sessões de tortura promovidas pelo governo, admite que foi curado. Ele foi forçado a abandonar sua personalidade e sua própria moral a fim de agradar uma maior moral que demonstra-se ser bem questionável, sendo até mesmo privado de ouvir novamente suas sinfonias favoritas. É essa dicotomia, mesmo que não intencional, que a faz divergir das obras clássicas citadas no início. Enquanto estas constroem vítimas de uma figura governamental opressora mas que ainda dividem preceitos morais conosco, o herói de “Laranja Mecânica” tem seus próprios conceitos de moralidade e, através dos olhos da sociedade, pode ser considerado imoral. Mas o que é moral numa história em que o Estado transforma a sociedade em algo mecânico, sujeita seus cidadãos à encarceragem e então submete seus encarcerados à tal violência?

Cabe ao leitor decidir.

Notas:

  1. “O filme deixa a entender aos leitores algo que o livro não representava e essa falta de compreensão me perseguirá até eu morrer. Eu não deveria ter escrito esse livro devido a esse erro de interpretação.” (BURGESS, 1985)

Referências:

BURGESS, A. A Clockwork Orange (Restored Text). Nova Iorque: W. W. Norton & Company, 2012a.

BURGESS, A. Flame into Being: The Life and Work of D. H. Lawrence. Londres: Heinemman, 1985.

BURGUESS, A. (2012b). The Clockwork Condition. Disponível em:<http://www.newyorker.com/magazine/2012/06/04/the-clockwork-condition>. Acesso em: 30 jan. 2016.

CONSOLANDI, P. Can literature function as Moral Philosophy? Moral Philosophy in A Clockwork Orange. Disponível em: <https://www.academia.edu/19781725/Can_Literature_Function_as_Moral_Philosophy_Alexs_Moral_System_in_A_Clockwork_Orange>. Acesso em: 27 jan. 2016.

GIOIA, T. A Clockwork Orange. Disponível em:<http://www.conceptualfiction.com/a_clockwork_orange.html>. Acesso em: 30 jan. 2016.

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