Faça o Impossível, Perfure os Céus!

A Jornada da Humanidade em Gurren Lagann

Lucas Pessoa
Nexus: AOF

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Quando alguém menciona animação/filme/série ou o que for sobre robôs gigantes, a primeira coisa que vem a cabeça da maioria são inúmeras cenas de ação e explosões. E estão certos, afinal, máquinas gigantescas como essas estão fadadas a lutarem entre si ou contra outros seres tão grande e ameaçadores quanto. Mas em termos de animações japonesas existem alguns exemplos onde há muito mais do que ação, como Neon Genesis Evangelion (Gainax, 1995), os primeiros Gundam (Sunrise, série animada começa em 1979) e, nesse caso, Tengen Toppa Gurren Lagann.

O anime em questão foi ao ar em abril de 2007, produzido pelo studio Gainax, o mesmo que fez Evangelion, e foi um caso incomum onde o anime veio antes do mangá; e foi um tremendo sucesso! Gurren Lagann se enquadra no gênero ‘Mecha’, abreviação de “mechanical”, termo utilizado para definir o gênero de animes que tem sua história relacionadas a robôs gigantes, mas ele vai muito além de seu gênero. Além das incríveis cenas de ação, tem um plot muito bem estruturado e personagens marcantes que faziam o espectador vibrar e sentir junto com eles, aqueles que acompanharam o anime esperando o episódio semanal com certeza sofreram. Gurren Lagann está longe de ser um Evangelion em termos de narrativa complexa, mas certamente é tão profundo quanto.

A história começa numa vila subterrânea onde os humanos acreditam não existir uma superfície, com exceção de Kamina e Simon, protagonistas da série, tudo o que importa para aquela vila é escavar mais para expandí-la. Mas logo no inicio a vila deles é invadida por um robô gigantesco, um ganmen, que estava combatendo Yoko, humana moradora da superfície. Com a ajuda de um pequeno robô que Simon encontra enquanto estava escavando, ativado por uma pequena “furadeira-chave”, eles derrotam o robô e conhecem pela primeira vez as grandes planícies e montanhas do Planeta Terra. É importante reparar no momento em que o “mundo verdadeiro” é apresentado para os personagens, o momento em que eles saem da vila, pelo teto quebrado que se torna um “portal” para o mundo real.

Primeira vista da superfície

A medida que a história vai progredindo o mundo começa a ser explicado, a superfície que era almejado como um tipo de utopia para Simon e Kamina na verdade é um grande campo de batalha. Mas como se trata de um shounen, termo utilizado para animes e mangas afim de definir o grupo demográfico alvo da obra, nesse caso para garotos jovens, ambos irão lutar para acabar com essas lutas e de fato transformar o mundo na utopia que imaginavam. O mundo, principalmente a superfície, é controlado por um homem chamado Rei Genome, um humano que criou e controla um exército de “homens-fera”, “substitutos” dos humanos, e esses usam os ganmen para exterminar aqueles que tentam viver na superfície.

O Poder Espiral

Avançando um pouco na história chegamos num momento crucial, final da primeira temporada e logo em seguida o inicio da segunda. Ao final da primeira, na luta contra o Rei Genome, ja foi revelado que os “homem-fera” não podem se reproduzir, pois foram criados artificialmente por Genome, e antes de sua morte o Rei identifica e alerta Simon sobre o seu “poder espiral” e como isso ira trazer sua ruína, o chamado “nêmesis espiral”. O poder espiral é um potencial de evolução infinito, comparável a ao nascimento de uma galáxia, que existe adormecido em cada humano, e alguns são capazes de manifestá-lo, como nosso protagonista Simon.

Segue então para o inicio da segunda temporada, alguns anos se passaram, um novo mundo está se formando, baseado no sonho utópico que Kamina e Simon tinham. Até que finalmente chega o momento profetizado por Rei Genome.

A maneira como essa sequencia foi montada é interessante, uma das personagens principais que estava grávida finalmente dá a luz; simultâneo a isso aparece um discreto painel na lua, e a cena seguinte mostra um contador chegando ao número de um milhão em vermelho, como se fosse algum erro, e partir desse momento começa o conflito contra os seres Anti-Espirais, a verdadeira ameaça para a Terra. A partir desse momento surgem alguns pontos que podem ser comparados a momentos da obra de Arthur C. Clarke, Childhood’s End.

A contagem a esquerda e o painel na Lua a direita.

O número que aparece na lua se refere a quantidade de humanos na superfície, ou seja, o nascimento daquele bebê simbolizou isso, o momento que a raça humana passou o limite aceitável de evolução e que, teoricamente, não será permitido que nasça nenhum ser humano a partir disso. É possível comparar esse acontecimento com o início da terceira fase de invasão dos Overlords, o início da última geração que estava relacionado ao nascimento de Jennifer, na obra de Clarke, pois após isso nenhuma outra criança nascerá no planeta. Por mais que as circunstâncias nas obras sejam diferentes, esse momento significa o início do fim do planeta Terra.

Os seres anti-espirais possuem características que comparáveis aos Overlords e aos próprios humanos da história de Clarke. Quando a humanidade em Childhood’s End aceita a condição inevitável da paz fornecida pelos Overlords, eles param de trabalhar e produzir de uma maneira geral, alguns personagens dizem que a cultura estava morrendo, assim como a ciência. E ai vem outro ponto, o personagem cientista Rodricks questiona a morte da “curiosidade científica”, que os Overlords estavam impedindo que os humanos avançassem de uma certa forma, em resposta o invasor Karellen diz que essa curiosidade estava indo em direção a algo perigoso que os levaria a própria destruição. Os anti-espirais em Gurren Lagann compartilham dessas situações, primeiro a questão da “morte da cultura”, porém de forma mais extrema, pois eles renunciaram a própria evolução, entrando num estado de inatividade completa sem produzir ou fazer qualquer coisa. E a revolta contra a evolução está relacionada a destruição da “curiosidade científica”, pois antes de se tornaram como são, eles eram seres espirais, e por isso estariam caminhando para seu própria extermínio, devido ao “nêmesis espiral”, assim como os humanos de Childhood’s End. Então quando eles partem para outros mundos a atitude deles é destruir tudo para não evoluírem, pois seu objetivo é impedir o nêmesis. E os Overlords, caso não servissem ao Overmind, quem sabe também não destruiriam os humanos por terem um potencial perigoso? Mas como tinham a “obrigação” de “fornecê-los” para o Overmind, eles pacificaram o planeta de forma que evoluíssem da maneira que poderia ser aproveitada pelo Overmind.

Existe uma diferença clara nos duas obras em relação a esse “grande poder”, em Gurren Lagann o nêmesis espiral não tem uma “consciência”, é apenas uma consequência do overflow de uma energia de potencial infinito, por isso os anti espirais desejam impedí-lo, nem que essa luta seja eterna. Já o Overmind ele é um tipo de ser que se liberou dos limites materiais, e consome aquilo que julga essencial nas diferentes raças espalhadas no universo. E os Overlords, por terem atingido o limite de sua evolução e progresso, não tem como serem assimilados por esse poder, por isso ajudam o Overmind a fim de tentar estudá-lo e sair dessa situação onde não existe mais para onde avançar.

Seres anti-espirais manifestados no universo (esquerda) e como são em seu planeta (direita)

Quando o herói Simon toma o conhecimento de toda a verdade, ele repudia a decisão tomada pelos anti espirais, ou seja, ele iria contra os desejos dos Overlords. E diferente dos humanos da “liga pela liberdade” que eram contra a invasão dos Overlords, Simon tem o poder necessário para a mudança, para impedir o anti espiral. Simon levanta uma questão, será impossível mesmo impedir o nêmesis espiral? Será que se os humanos em Childhood’s, caso tivessem o poder para tal, poderiam impedir o Overmind? Mesmo não conseguindo, não poderia ser o Overmind um grande vilão egoísta consumidor de civilizações ao invés de uma criatura divina?

E é por isso que Simon surge com sua “furadeira que irá perfurar os céus”, para fazer o impossível. Por que a atitude tomada pelos seres anti-espirais não pode ser considerada como “viver”, os seres anti-espirais apenas “existem” num estado semelhante a morte, eternamente parados num mundo isolado.

Chegando no final da história ao derrotar os seres anti-espirais, Simon já consegue manipular uma quantidade de energia espiral o suficiente para compreender o problema que ela pode gerar. Mas justamente por isso ele resolve que “vai cuidar do universo, pois acredita na humanidade”, como todo jovem herói de um shounen, e os anti-espirais são destruídos confiando que os seres espirais vão salvar a todos, o que é extremamente problemático, pois essa atitude de heroísmo não tem nenhuma garantia concreta de salvação.

A partir de 20:45 até o final, luta e diálogo final entre Simon e o Anti-Espiral

A partir desse momento a obra de Clarke já não compartilha um final semelhante. A Terra é salva, e é possível dizer, comparando, que os terráqueos e heróis de Gurren Lagann estão se preparando para impedir o “Overmind” do universo deles.

Tengen Toppa Gurren Lagann desde o início trabalha com o potencial humano, como ele pode ser desenvolvido, mostrando o quanto os humanos podem alcançar. A história conclui com uma suposta paz, onde não há mais um inimigo declarado, mas onde a ameaça da auto destruição espiral ainda existe. As ultima cenas do anime levam a entender que todos os seres espirais espalhados pelo universo trabalharão juntos para combater o nêmesis espiral, mas, como mencionado acima, nada garante que um futuro como o final da obra de Clarke não vai chegar. Até porque, por mais que seja apenas um homenagem, ou uma tradução imprecisa, o subtítulo do filme de Gurren Lagann é “Childhood’s End”, o que provavelmente está relacionado ao fato de Simon ter uma infância roubada e ter que amadurecer cedo, mas que também pode ser uma dica dos criadores em relação a história contada.

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