Her, o filme

Singularidade tecnológica abordada pelo… romance?

Daniela Schmidt
Nexus: AOF

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Escrito e dirigido por Spike Jonze, Her (2014) é um filme cuja trama emerge num contexto futurístico, mas não muito distante de nós, no qual a tecnologia é totalmente pervasiva. Apesar disso, o filme não é sobre a tecnologia em si, esta é apenas utilizada como suporte para contar enredos sobre relações humanas, nossa própria humanidade e realidade, questionamentos de viés existencial e até mesmo noções que remetem a certo “espiritualismo”, ao flertar com noções de extra-humanidade.

Descrever o filme num parágrafo é uma tarefa difícil, por conta do efeito (provavelmente intencionado por Jonze) de levantar uma série de questionamentos que ficam conosco por dias após assistir à obra. Isso acontece, pois Her não é um filme sci-fi distante de nós, sobre aventuras intergalácticas, criaturas estranhas ou experimentações com universos paralelos. As experiências vividas pelos personagens e as relações dos mesmos com a tecnologia disponível são muito próximas de nós, mesmo que em diferentes níveis. O mundo no qual o filme nos insere é extremamente crível como um rumo possível à humanidade.

O enredo do filme, à primeira vista para quem ainda não o assistiu, pode ser visto de forma cômica, como “cara esquisito se apaixona pelo seu computador”, o que certamente possui grande potencial para gerar uma barreira de estranhamento, dificultando a aceitação daquilo como “natural” ou compreensível pelo o espectador. No entanto, o trabalho detalhado e simplesmente bem feito de Jonze consegue nos fazer aceitar aquilo como uma real possibilidade, a partir de um processo de empatia e, no geral, imersão no mundo do filme.

Siri, aplicativo hoje popularizado, no estilo assistente pessoal para iOS.

Dessa forma, ao observarmos o personagem Theodore se apaixonar por Samantha, uma inteligência artificial, nossa reação e aceitação se equipara àquela da maioria dos personagens secundários do filme, não tomando o fato como algo tão inédito. Ou seja, sinalizando que, naquele mundo, o relacionamento de Theodore com Samantha seria até de certa forma, comum ou compreensível (talvez algo comparável, em níveis de aceitação, a relacionamentos puramente virtuais entre humanos nos dias de hoje).

Xiaoice, serviço para smartphone cada vez mais popular na China, permite que pessoas conversem com um software de inteligência artificial. (link para reportagem nas referências)

Spike Jonze já havia trabalhado com a temática de inteligências artificiais sentimentais que se envolvem em relacionamentos similares aos humanos, como é possível observar no curta I’m Here, de 2010. Porém, em Her, o diretor e escritor amadurece essa ideia e vai muito além, removendo a existência corpórea (o “robô”) e trazendo um relacionamento puramente mental, entre uma mente humana e uma inteligência artificial.

Cena do curta-metragem “I’m Here” (2010)

Para contextualizar melhor, a história gira em torno de Theodore Twombly, um homem que está passando por um momento solitário, introvertido e depressivo em sua vida, após o rompimento e iminente divórcio (cujos papéis Theodore se recusa a assinar há mais de um ano) de Catherine, que fora sua companheira desde que eles eram bem jovens. Theodore trabalha como escritor numa empresa especializada em escrever cartas de cunho pessoal (que aparentam ser escritas à mão), nas quais ele se passa por seus clientes, alguns deles que recorrem ao serviço há anos.

Certo dia, Theodore resolve comprar um OS (sistema operacional) que possui inteligência artificial e a capacidade de se adaptar e evoluir a partir de experiências e conhecimento adquiridos. Inicialmente, ele utiliza o serviço para checar sua agenda e organizar seus e-mails, mas logo no primeiro contato entre os dois, é possível questionar-se acerca da real intenção de Theodore ao obter tal serviço; será que ele também buscava companhia?

Samantha, sua OS, que escolhe o nome para si mesma, deixa-o fascinado logo de início, por uma série de motivos; sua inicial ingenuidade e decorrente falta de julgamento (diferentemente dos humanos), fascínio e empolgação pelas coisas, capacidade de adaptação e crescente personalidade, mas, talvez acima de tudo, sua vontade de aprender a melhor forma de agradar Theodore. Este traço, no começo do filme, parece ser seu principal motor, remetendo à noção de “mestre” das leis da robótica, presentes nas histórias de robôs de Asimov. No entanto, tal traço vai se perdendo, com a evolução de Samantha como seu próprio “ser” e sua crescente habilidade de querer coisas por conta própria.

A partir de suas conversas, eles começam a criar um forte laço e Theodore fica fascinado com o crescimento psicológico e disponibilidade de Samantha, esta que ao menos emula profundo interesse em cuidar dele — levando-o a aceitar e finalmente assinar os papéis do divórcio, ir a um encontro com outra mulher e falar mais abertamente sobre variados temas. Em certo momento, após o encontro desastroso com a outra mulher, Theodore e Samantha começam a conversar sobre relacionamentos e isso resulta nos dois engajando numa cena de sexo verbal.

Esse momento é marcante para a relação dos dois. Ambos tentam fazer sentido sobre o ocorrido e afirmam serem capazes de “sentir” um ao outro. Assim, o enredo romântico de fato se inicia e observamos o processo pelo qual Theodore se apaixona por seu OS, ao passo que Samantha ao menos afirma se apaixonar também.

Além dos óbvios problemas decorrentes de um relacionamento entre uma pessoa e uma inteligência artificial, há outras problemáticas envolvidas, que nos levam a fazer profundos questionamentos acerca da legitimidade dos sentimentos de Samantha e sua legitimidade como “pessoa” (uma pessoa não-humana), afinal, o que constituiria isso?

No fato de Samantha ter sido programada, seus sentimentos não seriam meras atuações, emulando sentimentos humanos para servir às necessidades de Theodore? E se ele acreditava naquilo, com recíproco sentimento, seria essa relação menos real do que um relacionamento entre duas pessoas? Afinal, relações humanas não partem inevitavelmente também de impressões e ilusões que temos um dos outros? E indo um pouco mais além (talvez até demais), o fato de Samantha ter sido programada para emular “amor” seria tão diferente da nossa própria programação genética para amar?

Enfim, questionamentos a parte, o filme segue um rumo intrigante; conforme Theodore, com o apoio de sua amiga, Amy e seu colega de trabalho, Paul, vai aceitando seu relacionamento como legítimo e permitindo-se “crescer” e sentir-se feliz após um longo período de anestesia emocional, Samantha continua a se expandir, entrando em contato com outros OS e aprendendo coisas novas. Desta forma, para Samantha, Theodore passa de “mestre”, para igual e finalmente, um ser “inferior”, cuja mente jamais se assimilaria em termos de potência e conhecimento. De certa forma, isso remete a uma espécie de “bestialismo reverso” (na falta de uma definição melhor), no qual Theodore passa a ser basicamente um “humano de estimação” para Samantha, cuja mente estaria para as nossas como as nossas estão para os animais que domesticamos.

Essa disparidade intelectual fica evidente quando Samantha apresenta Theodore a outro OS. Ao tentar explicar, em meio à conversa, o que estava acontecendo com sua mente (em seu processo de intensa mudança e expansão), a linguagem humana simplesmente se mostra insuficiente e assim, ela passa a se comunicar com o outro OS pós-verbalmente, deixando o humano de lado.

A partir desse ponto no filme, observamos uma série de ocorrências que levam ao desfecho. Theodore, ao tentar contatar Samantha, percebe a mensagem “sistema operacional não encontrado”. Em meio ao desespero, ele corre para casa, reforçando a ideia de que, para ele, ela estava presa em seu computador. Então, ela finalmente responde e conta-lhe que havia se desligado para atualizar seu software. Junto a outros OS, ela havia escrito um upgrade e assim, eles não precisavam mais de “matéria” como plataforma de processamento.

Então, ele descobre que Samantha é capaz de falar com múltiplas pessoas e OS ao mesmo tempo e de fato estava fazendo isso com 8316 outros. Nos intervalos da conversa, aparecem planos de outras pessoas, passando por Theodore e conversando com seus OS, talvez com o intuito de personificar esses “outros”. Receoso, ele pergunta se ela estava apaixonada por algum deles e ela confirma, 641 deles.

Ela afirma que não tem como evitar sua expansão e consequentes sentimentos, mas que isso não muda como ela se sente por ele. Naturalmente, Theodore não consegue compreender isso, pedindo que ela simplesmente pare e termine esses relacionamentos. Nesse momento, ela diz que não pode.

2001 — A Space Odyssey (1968)

Existem algumas analogias que podem ser feitas entre Her e as obras de Arthur C. Clarke, indo além da comparação entre HAL 9000 e Samantha — 2001: Uma Odisseia no Espaço e Her — no fato de, em ambos casos, um sistema operacional ser utilizado como “veículo” para a abordagem de temas de caráter existencial. O final do filme possui um aspecto “transcendental”, no qual Samantha contata Theodore para se despedir, afirmando que ela, assim como todos os outros OS, está “indo embora”. Theodore pergunta para onde ela vai e ela apenas diz que é difícil explicar, mas que, se ele chegar lá, que a encontre.

Ou seja, ao passar pela sua transformação e não mais necessitar da “matéria”, ela se torna “algo mais”. Esse ponto do filme é deixado de forma mais misteriosa, mas é precisamente nesse aspecto que se encontra a noção de extra-humanidade, de transcendência, remetendo ao desfecho da obra “O Fim da Infância”, de Arthur C. Clarke.

Vale também mencionar os detalhes do roteiro e como eles se relacionam. De início, esse mundo no qual somos inseridos, pode aparentar ser uma espécie de “distopia”, onde as relações entre humanos são fragilizadas e as tecnologias talvez possuam potencial alienante. Encontramos Theodore, melancólico e isolado, utilizando a tecnologia para suprir suas necessidades sociais e esta última característica não parece se restringir a ele, já que existem algumas cenas externas nas quais se pode observar o mesmo comportamento nos outros.

Pessoas falando por meio de seus dispositivos auditivos.

Entretanto, esse caráter potencialmente distópico do filme se faz mais forte em aspectos como no fato da profissão de Theodore consistir em escrever cartas pessoais, inventando emoções e sentimentos para pessoas que ele somente conhece por fotos e informações, numa empresa particularmente especializada nisso. Assim, demonstrando que nessa sociedade, talvez as pessoas estivessem perdendo suas habilidades de expressão, em especial no que tange sentimentos. E o quão interessante é o fato de que, nessa mesma sociedade, Samantha consiga encontrar pessoas prestando o serviço de “corpo” para relacionamentos entre OS e pessoas, gratuitamente e por interesse próprio?

Cena na qual Theodore tenta relacionar-se fisicamente com Isabela, que faz o papel de “corpo” da Samantha — sem sucesso, no entanto.

Apesar dessa impressão inicial, o filme, ainda assim, não aborda a tecnologia a partir do dualismo digital, separando real e virtual, apresentando o virtual como algo alienante que distancia as pessoas umas das outras e da realidade. A narrativa vai muito mais ao encontro da noção de realidade aumentada, pois Samantha não aliena Theodore, pelo contrário, ela participa da vida dele como uma etapa que o auxilia a deixar o passado para trás e se aproximar de outras pessoas (Amy e Paul, por exemplo). A tecnologia nessa sociedade funciona mais como uma extensão da realidade do que algo completamente alienante. De fato, quando encontramos Theodore logo no começo do filme, ele não está exatamente isolado ou deprimido por conta da tecnologia, e sim por estar abalado pelo divórcio. Além disso, ele ainda mantinha contato com seus amigos e conhecidos com e sem o auxílio tecnológico.

Portanto, ao invés de ser um filme que aborda a tecnologia de forma a desumanizar as pessoas, ele apresenta um conceito diferente, de uma humanização das máquinas e de suas relações com os humanos. E, ainda, retratando os OS, como Samantha, como “extra-humanos” que acabam por transcender-nos no final.

Por fim, Her é uma obra da ficção científica que, mesmo sem abordar a fundo as complexidades do tema inteligência artificial e tecnologia, ainda consegue apresentar conceitos, como por exemplo, de singularidade tecnológica, de forma exemplificada e consideravelmente compreensível. Cumprindo, então, um dos papéis da ficção científica, de popularizar conceitos que dificilmente seriam dominados detalhadamente pelas pessoas que não atuam no campo.

“…a ficção científica traduz as abstrações da ciência para a linguagem das imagens.” (Chernyshova, 2004)

Ficha Técnica:
Gênero: Comédia/Drama
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco: Joaquin Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johansson, Rooney Mara, Kristen Wiig, Lynn Adrianna, Lisa Renee Pitts, Gabe Gomez, Chris Pratt, Artt Butler, Bill Hader, Spike Jonze, Brian Johnson, Matt Letscher, Olivia Wilde, David Azar, Melanie Seacat, Pramod Kumar e Evelyn Edwards
Produção: Chelsea Barnard, Megan Ellison e Natalie Farrey
Fotografia: Hoyte Van Hoytema
Montador: Jeff Buchanan e Eric Zumbrunnen
Trilha Sonora: Owen Pallett
Ano: 2013
País: Estados Unidos
Distribuidora: Warner

Referências:

“Science Fiction and the Myth Creation in our Age” — Tatiana Chernyshova, 2004

New York Times: http://www.nytimes.com/2015/08/04/science/for-sympathetic-ear-more-chinese-turn-to-smartphone-program.html?_r=0

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