O Espelho do Exterminador

O Processo de Empatia n’O Jogo do Exterminador

Debora Moraes
Nexus: AOF
Published in
7 min readJan 25, 2016

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É o século XXII e a Terra enfrenta sua terceira guerra contra alienígenas insetóides que querem nos destruir. Essa poderia ser a premissa de dezenas de livros de ficção científica, mas o que chama a atenção em O Jogo do Exterminador são os heróis: crianças superdotadas que são vigiadas, analisadas e treinadas desde a infância. Elas são a esperança de um exército que não vê limites em até onde precisam ir para salvar a Terra.

O conto Ender’s Game foi publicado em agosto de 1977 na revista de ficção científica Analog Science Fiction and Fact. O livro lançado em 1985 era apenas uma extensão do conto homônimo, que incluia uma história de pano de fundo para o personagem principal. O objetivo do autor era que o leitor entendesse suas motivações melhor no segundo livro, que era planejado para ser a história principal. Orson Scott Card utilizava como inspiração Isaac Asimov, mas alegando que nunca conseguiria escrever como um cientista “de verdade”, recorreu aos livros de história e biografias como fonte para sua ficção científica.

Tanto O Jogo do Exterminador como sua sequência, Orador dos Mortos, ganharam os prêmios Hugo e Nebula (os dois principais prêmios da ficção científica em língua inglesa) nos seus anos de lançamento, assim como aclamação do público e de outros autores. Os dois livros acabaram por se tornar uma série com seis livros, e ganhou uma série spin-off com outros cinco. A adaptação cinematográfica do primeiro livro foi lançada em 2013 e traz Asa Butterfield no papel principal, além de contar com Harrison Ford, Ben Kingsley e Viola Davis no elenco.

Pôsteres para o adaptação cinematográfica lançada em 2013.

Ender Wiggin, assim como muitos protagonistas da ficção, não se encaixa no mundo onde vive e está destinado à aventura por causa de uma tarefa que só ele pode executar. Assim como Harry Potter é o único capaz de derrotar Voldermort, Ender será o general que irá destruir os fórmicos de uma vez por todas.

Nessa ficção imersiva, acompanhamos o protagonista sendo tirado do convívio do seu irmão sociopata e de sua carinhosa irmã e levado até a Escola de Combate, uma base militar espacial onde as crianças são enviadas a partir dos 6 anos de idade para aprenderem estratégias de guerra. Mas o que à primeira vista parece ser a chance de Ender se encaixar, se mostra uma extensão do que ele vivia na Terra, com os professores manipulando tudo para que ele seja excluído pelas outras crianças e o atirando a desafios que parecem impossíveis.

Mais importante que estratégias e táticas brilhantes que fizeram o livro ser adotado por militares ou os elementos de ficção científica que chamam a atenção, Orson Scott Card nos apresenta um livro sobre relações sociais. E seja o leitor um excluído ou alguém que se encaixa, é impossível não mergulhar nos pensamentos de Ender, seja para se ver refletido neles ou pela vontade de proteger a criança que tem o mundo nos ombros.

Cena da adaptação para HQ, lançada pela Marvel em 2008, em que os outros alunos encurralam Ender no banheiro

Mesmo falando sobre outros planetas e raças alienígenas, séculos no futuro e inovações tecnológicas que podemos apenas imaginar por enquanto, a ficção científica é sempre um retrato do que está acontecendo no momento, e talvez por isso nos chame tanto a atenção. O fato da história não acontecer no nosso tempo ou espaço, gera um afastamento que nos permite ler e analisar problemas que não reconhecemos imediatamente como nossos. Mesmo assim, acabamos por entendê-los e colocá-los em paralelo com o que acontece em nossas vidas.

Poderíamos argumentar sobre como O Jogo do Exterminador reflete talvez a necessidade da nossa sociedade em ensinar as crianças cada vez mais cedo para que elas saiam na frente em uma corrida para o sucesso que não vai ser percebida por elas mesmas até sua adolescência. Mas apesar de ter mais responsabilidade do que daríamos a qualquer criança nos dias de hoje, não sentimos pena de Ender por isso, afinal, assim como ele, acreditamos veemente que ele vai conseguir triunfar no final. O que nos faz sentir pelo personagem é o jeito como ele se relaciona com as outras pessoas.

Alguns fãs escreveram a Orson Scott Card falando sobre se viram refletidos em Ender, porque eram crianças prodígios que não se encaixavam em sua escola. É fácil entender porque elas sentiram tanta empatia por Ender: é um personagem exatamente como eles, e que acaba por alcançar o objetivo no final, apesar dos problemas que enfrenta. Mas por que as pessoas que não se encaixam no perfil de Ender se sentem tão atraídas pela história dele?

“Você acha que eles irão me seguir?”. Cena do filme onde Ender duvida que as outras crianças aceitarão ser lideradas por alguém que odeiam.

Ender tem que enfrentar o maior medo do ser humano — o isolamento. Somos seres sociais, e temos uma predisposição para viver em comunidade, pois foi isso que ajudou os nossos antepassados a sobreviverem. A vida em comunidade passou de apenas útil para a sobrevivência para uma necessidade sentimental da humanidade. Queremos não apenas ser aceitos nas comunidades e fazer amigos, como também queremos ser reconhecidos até pelas pessoas das quais não gostamos. Por mais que tentemos nos isolar ou queiramos acreditar que os outros não nos afetam, eles têm um estranho poder sobre nós e não ser aceito nos assusta.

Ver os professores da Escola de Combate isolarem Ender de propósito, glorificando-o para fazer com as outras crianças o odeiem, nos aborrece porque no fundo acreditamos que ninguém deveria ficar sozinho. Estamos sempre procurando fazer parte das comunidades que frequentamos, seja na família, com a escola ou o trabalho, e ver uma pessoa que não tem essas relações nos deixa com pena. Tendemos a lamentar pelas pessoas se elas não tiverem uma boa relação com a família ou se não tiver amigos.

Do mesmo jeito que as pessoas que não se encaixam veem a superação de Ender com esperança, já que ele foi capaz de superar a falta de relações sociais e se tornar um herói, as pessoas que pertencem enxergam a mesma esperança em sua história. Ao mesmo tempo que seu isolamento representa nosso grande medo, suas ações diante disso nos inspira. Ele não deixa o jeito como é tratado afetar quem ele é. Ele continua sendo um héroi nobre, que pensa antes de fazer qualquer coisa com as pessoas, e todas as suas ações são necessárias. Ender é a criança que vai salvar a Terra mesmo que a humanidade nunca o tenha feito se sentir acolhido.

“Ele deve acreditar que ninguém nunca o ajudará”. Cena do filme após a chegada de Ender na Escola de Combate onde o diretor da escola orienta os professores sobre o que fazer.

Ele é a representação da persistência que todos gostaríamos de ter. A capacidade de superar todos os problemas jogados em nossa direção, mesmo que sejam a coisa que nos assusta mais. Ender continua seguindo em frente apesar de tudo o que é jogado contra ele, sejam novas provas, novos combates, ou mais alguma pessoa que o odeie. Ao mesmo tempo em que não queremos ser como o protagonista, já que ele tem que lidar com ser isolado por todos, queremos ser exatamente como ele e aprender a superar os obstáculos em nosso caminho. Orson Scott Card acredita que nós, humanos, somos criaturas horríveis na maior parte do tempo, mas que se nos propormos a aprender, podemos nos tornar pessoas decentes. Os leitores terminam o livro querendo aprender a ser como Ender.

“Por que mais lemos ficção, afinal de contas? Não para nos impressionarmos com a linguagem deslumbrante de alguém — ou, pelo menos, espero que essa não seja a nossa razão. Acho que a maior parte de nós, de qualquer forma, lê essas histórias que sabemos que não são “verdadeiras” porque temos fome de outro tipo de verdade: a verdade mítica sobre a natureza humana em geral, a verdade particular sobre aquelas comunidades de vida que definem nossa própria identidade, e a mais específica de todas: nossa própria narrativa de nós mesmos. A ficção, por não ser sobre alguém que efetivamente viveu no mundo real, sempre tem a possibilidade de ser sobre nós mesmos.”

Orson Scott Card, Introdução da versão definitiva de O Jogo do Exterminador

A premissa da história é interessante, mas o que nos chama a atenção nela é Ender. Ele é responsável por você gostar do livro e acompanhar a história até o fim. Por vermos em Ender quem somos, ou quem queremos ou não ser, é que entendemos suas angústias e questionamos junto com eles as escolhas da humanidade e o sentido dessa guerra.

Sem a visão de Ender e suas observações sobre as pessoas e o mundo que o cerca, o Jogo do Exterminador seria só mais uma ficção científica sobre a humanidade vencendo a guerra contra uma raça alienígena.

Título O Jogo do Exterminador

Autor Orson Scott Card

Editora Devir

Edição 1ª/2006

Número de Páginas 380

ISBN 9788575322575

Título Original Ender’s Game

Lançamento 1985

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