The Entire History Of You

A ciborguização humana a partir de um episódio de Black Mirror

Isabelle Medeiros
Nexus: AOF
Published in
5 min readFeb 20, 2016

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A ficção científica é um gênero que desde o início do século XX se apresenta em grande ascensão. Suas obras geralmente apresentam sociedades regulamentadas por leis científicas ali vigentes que são coerentes consigo mesmas, não necessariamente obedecendo o funcionamento da ciência do mundo real, mas se utilizando dela como grande fator de inspiração.

Dito isto, um grande motor seu são temáticas como viagens no tempo, inteligência artificial, ciborgues e aventuras intergalácticas. Porém, a ficção científica não se limita a expor e discorrer sobre esses temas puramente para impressionar, mas se utiliza deles em diversas obras para articular críticas sociais diversas, seja no aspecto político ou sobre igualdade de gênero, em questionamentos sociológicos ou fascínio tecnológico.

Mesmo com as críticas à sociedade sendo recorrentes e movendo noções de distopias e eutopias — de acordo com Sargent (apud WEGNER, 2002, p. 81), distopia sendo uma sociedade funcional consideravelmente pior que a existente em seu contexto de criação e eutopia sendo seu oposto, uma sociedade consideravelmente melhor, como uma esperança para o futuro — , essas críticas não são as únicas que se presentificam no gênero. Há também a articulação de reflexões acerca do comportamento humano diante dos avanços tecnológicos e os limites humanos morais e éticos (impostos ou rompidos) para alcançar seus objetivos.

O espelho negro

A série britânica Black Mirror, criada por Charlie Brooker e exibida pela Channel 4 (2011-atualmente), faz a utilização dessa lógica em seus episódios antológicos, que sempre exploram cada um uma tecnologia em um futuro próximo e suas relações de causa e efeito para com os humanos.

Mais especificamente, no episódio a ser analisado, “The Entire History Of You”, o protagonista Liam Foxwell vive em uma sociedade onde vigora popularmente o uso de Grains, dispositivos do tamanho de pílulas implantados atrás da orelha que são capazes de armazenar um backup de todas as memórias do indivíduo que o utiliza e permite que o mesmo reassista às memórias, em seus olhos ou projetadas em uma tela.

Em um primeiro momento, o elemento parece constituir uma sociedade ligeiramente eutópica, a qual o espectador “contemporâneo veria como consideravelmente melhor que a sociedade onde ele vive” (cf WEGNER), uma vez que um histórico automatizado das ações, reações, pensamentos e comportamentos dos indivíduos poderia contribuir para uma realidade em que tudo funcionasse perfeitamente de acordo com a lei. Em tese, essa modificação permitiria por exemplo a investigação de crimes com uma precisão nunca antes possível, podendo assistir as memórias de uma testemunha.

Ou mesmo em escala mais pessoal, permitiria uma reavaliação e revisão de momentos particulares de um casal, por exemplo, onde mentiras e segredos não teriam vez, já que haveriam sempre as memórias para garantir a verdade. E é esse o cenário ilustrado no episódio, quando em um jantar reunindo amigos de longa data de sua esposa Fi, Liam desconfia que ela tem um caso com Jonas.

A desconfiança e o ciúme fazem com que Liam assista copiosamente as memórias daquele jantar e avalie comparativamente o comportamento de Fi com ele e com Jonas. Seu descontrole emocional o faz compilar memórias que sugerem sua desconfiança racional e ir em busca de satisfações com Fi e, posteriormente, com Jonas, descobrindo a verdade através do replay das memórias de ambos.

Assim, vem a tona a questão de até que ponto a psiquê humana é aprimorada através dessa tecnologia. Como é sugerido no episódio, os usuários do grain tendem a reassistir as memórias boas no lugar de viver novas memórias boas, se conformando com a mecanização de algumas atitudes futuras.

Durante o jantar a personagem Collen, que trabalha no setor de desenvolvimento de grains, afirma “que metade das memórias orgânicas que nós temos são lixo. Não são confiáveis” e reforça que “com metade da população você pode implantar memórias falsas só fazendo perguntas indutivas em terapia. Você pode fazer as pessoas se lembrarem de ficarem perdidas em shoppings que nunca estiveram, terem sido abusadas por babás que nunca tiveram”.

Os grains vêm com a noção de que, a partir do momento do implante, os usuários serão capazes de não esquecer, de armazenar sua memória com extrema precisão mecânica. É uma tentativa humana de maximizar o controle sobre o próprio cérebro, alterar a pequenez de suas habilidades orgânicas, que não tão confiáveis. Porém, além de colocá-los em um permanente estado de saudosismo, vemos que não é bem assim o armazenamento preciso.

Os usuários têm a possibilidade de editar e apagar memórias através do controle remoto do grain, que funciona de maneira dúbia e análoga a 1984 de George Orwell, onde “A história não passa de um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes fosse necessário. Uma vez executado o serviço, era absolutamente impossível provar a ocorrência de qualquer tipo de falsificação.”

Uma reflexão

Aprimoramentos biotecnológicos existem e são utilizados nos dias de hoje de forma já tão naturalizada que a grande população não os percebe como chocantes da mesma forma que o exemplo do episódio. Mas existe um detalhe que diferencia próteses, cirurgias de correção de vista, transplantes de órgãos, dentre outros, de um dispositivo capaz de reter e reproduzir memórias.

A utilização da ciência para corrigir e aperfeiçoar funções que já são intrínsecas ao ser do ser humano — e, por algum motivo, se apresentam falhas em alguns espécimes — difere de implantar nos seres humanos funções que destes não são próprias. Como afirma Stephen T. Asma sobre ciborgues em seu livro On Monsters, “a tecnologia pode nos alienar de nós mesmos, nos desumanizar e nos transformar em monstros feitos por nós mesmos de um tipo completamente novo”¹.

Toda a construção e apresentação a possibilidade de maior controle sugere uma espécie de solução para os problemas cotidianos, uma invenção que guiaria a vida humana a um novo patamar de como lidar com o redor. É apenas mais uma representação de como a humanidade vem buscando esse tipo de saída. Mas mais uma vez é um recurso que a faz acabar voltando-se contra si mesma, potencialmente intensificando o que há de pior em sim.

Uma tentativa exacerbada de controle sobre si mesmos, outros e o desconhecido coloca os humanos em posição de estarem brincando de Deus. A obtenção dos meios para desenvolver um avanço tecnológico fascina e impele os humanos a concretizarem ações das quais não possuem o conhecimento necessário sobre e muitas vezes perdem o controle, gerando consequências catastróficas.

¹ technology may alienate us from ourselves, dehumanizing us and turning us into self-made monsters of a new sort altogether

Bibliografia

WEGNER, Phillip E. Imaginary Communities: Utopia, The Nation, and the Spatial Histories of Modernity

ASMA, Stephen T. On Monsters: An Unnatural History of Our Worst Fears

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