Uma Memória de Johnny Mnemonic

A Ficção Cyberpunk e o Futuro que nos Espera

Ivy Souza
Nexus: AOF
6 min readJan 18, 2016

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Poster do filme

Johnny Mnemonic (Johnny Mnemonic — O Cyborgue do Futuro, no Brasil) é um filme de ficção científica americano-canadense lançado em abril de 1995, dirigido por Robert Longo e baseado no conto homônimo de William Gibson (também roteirista do filme). A história se passa em 2021 e acompanha a última missão de Johnny, uma espécie de transportador de informações sigilosas que acaba se envolvendo em problemas e sendo perseguido pela Yakuza.

Johnny vive em um mundo dominado por grandes Corporações, pela intensa presença de modificações tecnológicas nas pessoas, pela guerra de informação entre as Corporações e os Loteks (hackers, piratas da informação etc) e pela epidemia de uma doença, NAS, causada pela sobrecarga de informações no cérebro. Johnny está no meio dessa guerra por ser um transmissor de informações importantes, graças ao implante de memória que ele possui no cérebro. Para exercer essa função Johnny apagou suas memórias de infância e agora quer recuperá-las, mas para isso precisa pagar sua dívida fazendo um último trabalho. Ele acaba sendo contratado para transportar informações muito mais pesadas do que seu implante consegue suportar, colocando em risco a própria vida. Não demora muito para que a Yakuza, contratada por uma das grandes Corporações, comece a persegui-lo, querendo, literalmente, sua cabeça.

O filme pertence ao estilo Cyberpunk, criado na década de 1980, do qual William Gibson é um dos principais expoentes, com suas super metrópoles dominadas por Corporações que disputam a Mídia com os grupos hackers, sua Newark cheia de becos escuros e prédios abandonados, a intensa presença de tecnologia se contrapondo ao baixo estilo de vida da população, as mais diversas modificações corporais, vistas na maioria dos personagens e inclusive no protagonista. Todo esse cenário representa bem o universo que Gibson criou em seu livro Neuromancer. Há várias referências a tecnologias presentes em Neuromancer, como os implantes de melhorias físicas que as personagens usam, a menção ao Black Ice (programas de vírus que as Corporações usam contra hackers), a presença de inteligências artificiais que são importantes para o desenrolar da história e a própria Matrix, o ciberespaço.

O Ciberespaço

Além de todos os elementos visuais presentes no filme, algumas outras características cyberpunk também chamam a atenção e merecem ser observadas e relacionadas com nossa realidade. Uma delas é a relação de Johnny com suas memórias. Ele teve suas memórias de infância apagadas para poder instalar o implante que o permite transportar as informações sigilosas de quem o contrata. Em algum momento ele decidiu que valia mais a pena ter espaço em seu cérebro para esse trabalho do que manter memórias de quando era criança, o que é bem representativo desse mundo onde a tecnologia prevalece. As memórias afetivas são depreciadas em favor de uma memória “útil”, através da qual ele ganha dinheiro. Isso remete a nossa própria sociedade, onde há essa tendência de racionalizar tudo, até mesmo o que é afetivo. Mesmo sendo sua fonte de renda, isso o incomoda, o fato de não conseguir se lembrar da infância, tendo apenas vislumbres durante sonhos. Ele quer ter suas memórias de volta.

Jones, o golfinho ciborgue

Outro ponto, já mencionado, é o fato de quase todos os seres humanos terem modificações corporais, implantes, que servem como melhorias de performance ou estéticas. Nesse contexto, é difícil separar humano e máquina, os limites se confundem e todos são, na verdade, ciborgues (seres que possuem partes orgânicas e partes cibernéticas). Não à toa, em seu título brasileiro, Johnny é chamado de ciborgue do futuro. Talvez o exemplo mais interessante dessa mistura entre orgânico e cibernético seja Jones, um golfinho capaz de decodificar informações graças ao implante colocado nele pela Marinha. Também consegue se conectar às pessoas e ao ciberespaço, ajudando Johnny a extrair as informações que o estão colocando em risco.

Esse mundo decadente e caótico não poderia deixar de ser assolado por uma doença de alcance global. Nesse caso, a doença não é causada por um vírus ou bactéria, mas sim uma consequência de como esse mundo se construiu. A NAS, Síndrome de Atenuação dos Nervos, é causada pelo excesso de informação absorvida pelas pessoas, provocando convulsões e podendo causar a morte. Sua cura não é conhecida e milhares de pessoas padecem dela, enchendo os hospitais. Esse quadro não é nenhuma novidade em nossa realidade, se substituíssemos “NAS” por alguma outra doença teríamos uma boa representação do que de fato acontece no mundo, milhares de pessoas morrendo por causa de epidemias para as quais ainda não há uma cura. O fato da NAS ser causada pela tecnologia também não é um conceito totalmente inimaginável, já sabemos que há pessoas no mundo sofrendo dos mais diversos distúrbios por causa da tecnologia (transtornos de dependência da internet ou a síndrome do toque fantasma, por exemplo).

Ao invés de poderes estatais definidos, o que realmente serve como representação de poder no filme são as grandes Corporações. Os países estão lá, mas são as Corporações que detém poder sobre as informações, sobre a Mídia, estando sempre em conflito com os Loteks, que não aceitaram se render à essas Corporações, ao Sistema. O que acontece entre essas duas esferas é um conflito de interesses, as Corporações controlam qualquer informação divulgada e os Loteks sabem que nem tudo é mostrado, pegam imagens de todos os canais transmitidos, alteram e mandam de volta como forma de resistência. Quase exatamente o que vivemos hoje, uma guerra da informação, tendo a grande Mídia controlada por empresas privadas de um lado e do outro grupos de resistência que se negam a aceitar o que é mostrado como verdade universal e começam a produzir outras verdades na rede (ciberativismo).

Por último, falando sobre a personagem principal, Johnny não é o herói comum que se engaja no salvamento do mundo desde o início. A princípio tudo o que ele quer é se livrar das informações e salvar a própria vida, quando confrontado com o fato de que provavelmente ele não sobreviverá, mas que mesmo assim as informações que ele carrega salvarão milhares de pessoas, Johnny não fica feliz, ele quer viver. Johnny é um herói cyberpunk, está acima da moral, não se preocupa prioritariamente com o que é certo ou errado.

Johnny no esconderijo dos Loteks

Johnny Mnemonic foi lançado em 1995 e mostra um futuro alternativo de nosso mundo. É uma boa representação de como o mundo pode vir a ser um dia, ou de como já estamos nos encaminhando para uma realidade parecida com essa. Todas as questões apresentadas nele são razoavelmente plausíveis e mostram as consequências do desenvolvimento exacerbado da tecnologia. Não é impossível que num futuro próximo sejamos todos ciborgues, processo que parece já estar em andamento se levarmos em consideração todos os apetrechos que já usamos como melhorias físicas (aparelhos auditivos e marca-passos, por exemplo), ou aqueles que já estão tão intrincados a nós que servem como extensões do corpo (celulares, computadores, tablets, etc). Será tão impossível assim imaginar uma doença de causas tecnológicas no contexto de desenvolvimento e relações informacionais em que vivemos?

Assim como várias outras obras cyberpunks, o filme apresenta um futuro que até certo ponto é interessante, mas que não se compromete em parecer maravilhoso e agradável, pelo contrário, mostra em que nível nosso mundo poderia chegar. Assim como em outras obras de William Gibson, Johnny Mnemonic mostra esse mundo, meio destruído, dominado por corporações privadas e assolado por doenças causadas pelo próprio excesso de informação. Um mundo criado pelo desejo do ser humano de evoluir. Nada parecido com aqueles filmes que exibem futuros incríveis, onde a qualidade de vida é alta, onde tudo é mais fácil e rápido e o mundo é mais legal. Ele apresenta o lado negativo desse avanço absurdo da tecnologia e todas as implicações no dia a dia das pessoas. É uma boa obra dentro de seu gênero, que incomoda por mostrar uma realidade nada simpática, mas bem possível.

Ficha Técnica

Gênero: Ficção Científica
Direção: Robert Sal Longo
Roteiro: William Gibson
Produção: Don Carmody
Elenco: Barbara Sukowa, Dennis Akayama, Dina Meyer, Dolph Lundgren, Henry Rollins, Ice T, Keanu Reeves, Takeshi Kitano, Udo Kier
Fotografia: François Protat
Trilha Sonora: Brad Fiedel
Duração: 96 min.

Referências

GIBSON, William. Neuromancer. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2008.

REGIS, Fátima. Nós, ciborgues: Tecnologias da informação e subjetividades homem máquina. Curitiba, Ed Champagnat, 2012.

Wikipedia - Cyberpunk. https://en.wikipedia.org/wiki/Cyberpunk

Wikipedia - Johnny Mnemonic (filme).https://pt.wikipedia.org/wiki/Johnny_Mnemonic_%28filme%29

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