Refugiados venezuelanos em Canoas falam sobre a situação política do país e perspectivas em solo brasileiro

Vanessa Hauser
Arquivo 11
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7 min readOct 16, 2018

Por Mariana Machado, Lucas Costa, Diego Silveira e Wellington Marques.

A situação atual da Venezuela pode ser resumida a um caos social. A tragédia humanitária, resultado da crise econômica e política, é a principal motivação para o fluxo migratório da população para outros países da América do Sul. No Rio Grande do Sul, a Prefeitura de Canoas firmou um acordo oferecendo abrigo a esses refugiados.

[CANOAS] Segundo a secretária de Desenvolvimento Social do Município de Canoas, Luísa Camargo, a decisão da Prefeitura de receber os imigrantes venezuelanos partiu de um pedido feito pelo Governo Federal, que entrou em contato diretamente com Prefeitos de cidades de diversos Estados brasileiros por conta da necessidade de amenizar a situação de caos que se instalou em Roraima após a chegada de cerca de centenas de refugiados vindos da Venezuela em agosto.

O processo de interiorização desses refugiados é baseado em um acordo em que as responsabilidades são divididas: enquanto a ONU é responsável pelo aluguel dos prédios e moradia, a Marinha do Brasil fornece a alimentação das famílias. Cada cidade tem então o compromisso de acolher, fornecer da educação, saúde e assistência social, fazendo com que os refugiados construam novos projetos de vida. O programa todo tem o tempo máximo de 6 meses para ser executado. A secretária, entretanto, esclarece que a adaptação está acontecendo muito rapidamente. Muitos dos venezuelanos já estão adaptados, inclusive com um novo emprego.

[CONTEXTO] Para entender o regime Maduro, é preciso considerar o contexto venezuelano de décadas atrás. Dominado por elites agrárias até os anos 1990, os venezuelanos viram no Chavismo uma grande possibilidade de mudanças profundas no contexto social do país. Hugo Chávez assumiu o poder em 1998 e conduziu a Venezuela para novos rumos através da chamada Revolução Bolivariana. Chávez passou a administrar com rédeas curtas a principal matriz energética do país, o petróleo, e prometeu uma ampla ação de distribuição de renda à população através deste recurso.

Na Venezuela, o chavismo ainda é muito marcante. Os eleitores de Maduro nas eleições de maio, majoritariamente, justificaram seus votos pela salvação do chavismo. Segundo reportagem da BBC Brasil, há muitos casos de pessoas que começaram sua trajetória eleitoral apenas pelo apreço ao ex-presidente. O jovem Jose Miguel, de 16 anos, refugiado venezuelano que atualmente reside no assentamento em Canoas, afirmou que a crise alimentícia da população é exclusivamente ocasionada pelo governo. “Se você tem, por exemplo, uma caixa de leite em sua casa, a polícia vem e toma de você” afirma. Porém, venezuelanos favoráveis ao regime têm outra visão sobre a crise de mantimentos generalizada. Sobre medicamentos, Obilia Madrid, moradora de Caracas, afirmou à BBC Brasil: “Há muito contrabando. O presidente desmantelou quadrilhas que retinham os medicamentos. A guerra econômica, e também social, está muito forte. Maduro deu tudo de si para o povo, mas há muita gente tentando boicotá-lo”.

[POLÍTICA] A situação se acentuou após as eleições em 2015. O governo tentou isolar a maioria oposicionista eleita para Legislativo ao convocar uma Assembleia Constituinte. O ato do governo gerou revolta. As eleições de maio deste ano tiveram um número recorde de abstenções, culminando com a reeleição de Maduro não reconhecida por diversos países. Os refugiados venezuelanos também não reconhecem a vitória de Maduro nas eleições. Para o casal José e Honoravis Nabaro, que classifica as eleições como uma “trampa”, palavra em espanhol para definir trapaça ou armadilha, os venezuelanos não viam motivo para ir às urnas. “Maduro sempre vence”.

Ainda em 2015, a oposição fez boicote ao pleito e denúncias de fraude jorraram diante de um governo que ainda conta com apelo popular. Maduro teve mais de 6 milhões de votos, apesar de ser preferido por 7 em cada 10 venezuelanos. Prisão de opositores, repressão sobre a mídia, controle total sobre o exército e o judiciário dão eco à voz de quem grita ao mundo que o regime venezuelano é antidemocrático.

Sobre a existência de grupos favoráveis a Maduro na Venezuela, o imigrantes de Canoas são taxativos ao dizer que existem, são muitos e que “são burros ou pagos pelo governo”. A polarização extrema, ao que parece, encontra algumas semelhanças com o contexto político brasileiro.

A oposição a Maduro recorrentemente está envolvida em acusações de estoque irregular de alimentos, uso intencional da violência com motivações políticas e atentados terroristas. Este tipo de notícia não costuma circular com tanta veemência aos olhos da comunidade internacional e da mídia brasileira. Por outro lado, apoiadores de Maduro fora da Venezuela, relutam em aceitar o caráter antidemocrático do governo venezuelano e seus erros. A crise humanitária do país vizinho parece ter servido de palanque político e moral para governantes e militantes.

[HISTÓRIAS] “Saudade” (Anhelo) e “distância” (Lejos) foram duas das primeiras palavras em português aprendidas pelo casal de venezuelanos José Nabaro, 49, e Honoravis Nabaro, 43. Saudade, pois há cinco meses não encontram seus três filhos, e nem quatro dos seus cinco netos. Distância, porque além das 20 horas de voo enfrentadas de Roraima até Porto Alegre, agora mais de 7.000km separam o casal da casa onde viviam na Venezuela. Eles fazem parte da primeira etapa de transferência de imigrantes ao município de Canoas ocorrida no dia 12 de setembro, com a vinda de 201 pessoas. O segundo grupo foi composto de 87 pessoas e desembarcou no dia 25. O perfil dos imigrantes é variado, sendo composto de crianças, adolescentes e adultos. Com pouco dinheiro e condições para encarar a longa viagem, o casal pôde trazer apenas um de seus netos. Mas a esperança é que aos poucos consigam reunir a família de novo. “Não há mais postos de trabalho e os poucos que restam pagam um salário mensal que não consegue sustentar uma família por apenas dois dias”, destaca Honoravis.

A atividade econômica da Venezuela encolheu 50,61% desde que o presidente Nicolás Maduro assumiu o cargo em 2013. O Fundo Monetário Internacional projeta uma inflação de 1.000.000% para 2018. Definindo as últimas eleições como uma “trampa” (armadilha) de Maduro, o casal não alimenta nenhuma espectativa de retorno ao país enquanto o atual presidente estiver no comando. “Se voltar será somente para visitar nossa família e amigos” afirmam. Segundo eles, as pessoas que ainda apoiam o governo só o fazem porque ocupam cargos ou recebem dinheiro para isso. Com um misto de esperança e gratidão, os imigrantes que desembarcaram no Rio Grande do Sul foram acolhidos pela população. “Não posso ocultar o que está diante dos meus olhos. Muita gente aqui nos receberam com muito amor e carinho. Me sinto muito orgulhosa. Posso enxergar aquí um futuro para pessoas que trabalham”, emocionada, contou Honoravis.

A Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico (SMDS) de Canoas está organizando o processo de acolhimento e o cadastramento da rede de voluntários. Qualquer pessoa que queira auxiliar no processo de adaptação dos venezuelanos a Canoas pode se voluntariar, independe de formação específica. O telefone de contato para informações sobre voluntariado é (51) 3236–2708.

Loantriz Rivero tem 31 anos e veio da Venezuela para Canoas com seu esposo, Moisés Adrián, 21 anos, e seus três filhos. Mulher de sorriso largo, conquista amizades facilmente. Em pouco mais de 15 minutos com a reportagem, não teve dúvidas em tratar-nos como amigos de longa data. O sorriso e a expressão alegre, entretanto, se fecham diante das perguntas sobre o governo. “Queres mesmo que eu comente sobre isso?” pergunta. Falemos de saudade, por hora. Loantriz conta que o que mais sente falta é de seu pai, sua mãe e seu irmão que ficaram no país natal. O básico, tendo em vista que a tragédia humanitária que assola o país, não permite que se tenha saudade de muita coisa. Dos cinco irmãos, apenas um ficou enquanto os demais traçaram o mesmo destino de peregrinar pela América do Sul. Em um raro momento de tristeza, Loantriz relembra do primeiro contato com a mãe já em solo gaúcho: “Me disse que se eu amo ela e meu pai, que nunca mais volte à Venezuela”. Com os irmãos, ela tem pouco contato. O que os une é a vontade de construir uma nova vida, criarem seus filhos com dignidade e enviar dinheiro para manter os país na Venezuela. Ainda assim, Loantriz afirma que para ter uma pequena ceia de Natal em dezembro, sua mãe precisaria da ajuda de ao menos três de seus filhos.

Para quem vem do caos, as pequenas conquistas significam grandes felicidades. O fato dos seus três filhos terem ao menos brinquedos aqui no Brasil a emociona. Ter o dinheiro para comprar os ingredientes e fazer um pudim em solo brasileiro significou mais que uma refeição. Foi o começo de uma nova trajetória, pequenos gestos impensáveis na Venezuela pela falta de alimentos e dinheiro.

A família Rivero passara por grandes provações de resistência e união incondicional durante a estadia em Roraima. A mãe, lembra que não foram poucas as vezes em que ela e o marido Moisés choraram copiosamente abraçados aos filhos. Loantriz confessa que não sabia muito sobre o Rio Grande do Sul antes de desembarcar em terras gaúchas. Brinca que ao pesquisar na internet, conheceu o chimarrão antes mesmo de chegar aqui. E admite que gostou da especialidade rio-grandense.

Sonhos para o futuro? Muitos. Moisés é lutador de boxe e se sente realizado ao encontrar imediatamente a oportunidade de treinar novamente aqui no Brasil. É o orgulho da família, que conta animada sobre a “peleia” que acontecerá no próximo dia 21. Loantriz se diz apaixonada pelo estado, inclusive preferindo Porto Alegre e o chimarrão às badaladas praias do Rio de Janeiro. “Me perguntaram qual estado do Brasil jamais pisaria. Respondi: Rio de Janeiro. Queria um lugar que pudesse estar bem com meus filhos” pondera.

Muito bem estabelecida e adaptada, ela afirma que não pretende mudar-se para o Chile ou para a Colômbia, para ficar junto dos irmãos. No momento de mais emoção da conversa, os olhos da venezuelana se enchem de lágrimas ao revelar seu maior desejo: “Quero meu pai e minha mãe morando aqui comigo no Rio Grande do Sul”. Um sonho que parece tão simples, mas que para os refugiados da Venezuela vale muito. A história de Loantriz mostra que a maior resistência venezuelana em terras brasileira é a capacidade de sonhar.

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Vanessa Hauser
Arquivo 11

Brazilian journalist living in Barcelona. Rebuilding a life style and trying to come back to writing as a real passion.